domingo, 19 de janeiro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM - O CORDEIRO DE DEUS - 19.01.2014

COMENTARIO LITURGICO – 2º DOMINGO COMUM – O CORDEIRO DE DEUS – 19.01.2014

Caros Confrades,

Na liturgia deste domingo, 2º do tempo comum, Jesus é apresentado como o Cordeiro de Deus, no evangelho de João. Mas essa figura do cordeiro já estava preconizada na profecia de Isaías, com o título Servo de Javé. De acordo com o Profeta, Ele viria para reunir novamente o povo de Deus e conduzi-lo à salvação e, por intermédio desse povo, estender a salvação a todos os confins de terra. João evangelista reescreve a narração do batismo de Jesus de forma diferente dos evangelhos sinóticos, afirmando que foi pela manifestação do Espírito em forma de pomba que o Batista reconheceu Jesus como o Cordeiro de Deus-Servo de Javé, prefigurado na profecia de Isaías.

De início, lembremo-nos que o livro de Isaías era o preferido por Cristo para fazer referências a respeito de si próprio, sempre que isso era necessário. Na leitura de hoje (Is 49, 6), destaco o seguinte trecho: “'Não basta seres meu Servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel: eu te farei luz das nações, para que minha salvação chegue até aos confins da terra'.” Vejam só o trocadilho dos nomes: Jacó e Israel eram a mesma pessoa, o terceiro Patriarca, neto de Abraão. Jacó foi aquele que “tomou” do seu irmão gêmeo Esaú (que embora sendo gêmeo, havia nascido em primeiro lugar) os direitos de primogenitura, naquele estratagema armado pela mãe deles, Rebeca, que preferia Jacó a Esaú. Este ficou iradíssimo com o irmão, com toda razão, pois teve o seu direito usurpado, passou a ameaçar Jacó. Para evitar uma carnificina entre os irmãos, Rebeca mandou Jacó para passar uns tempos bem longe, com um tio chamado Labão (que não era o que se chamaria de cidadão exemplar), na esperança de que a ira de Esaú se acalmasse. Lá nos confins onde morava com o tio, Jacó casou com as duas primas (Lia e Raquel), porque o tio também trapaceou com ele e entregou a filha “errada”, em vez de devolver, Jacó ficou com as duas. Meus amigos, esses fatos narrados na Bíblia não são, de forma alguma, modelos de comportamento compatíveis com a aliança entre aquele povo e Javé, quantas tramóias estão aqui envolvidas de parte a parte. Mas a história do povo de Deus é assim mesmo, cheia de contradições.

Fiz aqui esse breve retrospecto para contextualizar com a leitura do profeta Isaías, deste domingo, quando ele diz que o Servo de Javé virá restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel. Para compreendermos isso, devemos também lembrar que Jacó teve seu nome mudado para Israel após uma luta misteriosa que travou com um anjo, cuja personalidade a Bíblia não explica, mas que os intérpretes entendem que tenha sido o próprio anjo protetor de Esaú, que veio batalhar com Jacó, a fim de evitar que os dois irmãos se matassem num encontro que se aproximava. Essa é uma passagem nebulosa da Bíblia, pois o fato é que, quando os irmãos raivosos finalmente se encontraram, abraçaram-se e choraram mutuamente, celebrando a paz. Porém, isso só foi possível por causa de uma mudança radical que aconteceu com Jacó, após a luta deste com o anjo, que mudou o seu nome para Israel, porque ele havia vencido alguém mais poderoso do que ele. Hoje, se poderia explicar essa “luta” misteriosa e simbólica como se Jacó estivesse duelando consigo mesmo em espírito, levando-o a uma mudança completa no seu comportamento, após o que ele ter-se-ia tornado uma pessoa com um outro perfil psicológico, operado pela interveniência de Javé. A troca do nome significaria isso, assim como Javé mandou que Abrão mudasse o nome para Abraão, que significava pai de uma multidão. Essa questão do nome no AT tem um simbolismo muito curioso e um sentido próprio, que não se encontra nas demais culturas.

Pois bem, retomando o trecho de Isaias (49, 6), restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel significa a reunião do passado com o presente, do antes com o depois, dos descendentes de Jacó com os descendentes de Esaú, que agora não são mais rivais, mas fizeram as pazes, enfim, a união de todo o povo de Deus. No sentido trans-histórico dessa imagem, podemos vislumbrar aí a união de todos os povos dos diferentes continentes, raças e costumes sob a mesma liderança do Servo de Javé, aquele que foi preparado desde o nascimento para ser a luz das nações e o portador da salvação a toda a humanidade.

Na segunda leitura, do início da carta de Paulo aos Coríntios, o apóstolo repete esse mesmo mote de Isaías, já citando o nome de Cristo, quando coloca como destinatários da carta assim: “à Igreja de Deus que está em Corinto: aos que foram santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos junto com todos que, em qualquer lugar, invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso.” (1Cor 1, 2). Firme na fé de que Cristo é o Servo de Javé, aquele que veio para unir todas as nações, povos e culturas, Paulo destina sua carta a todos que, em qualquer lugar, invocam o nome de Jesus, isto é, a nós e a todos os cristãos. Isaías referiu-se àquilo que ainda iria acontecer no futuro, enquanto Paulo se refere a algo que já havia se tornado realidade, com o novo mandamento de Cristo. O discurso de Paulo dá sequência e complementa o discurso de Isaías. As tribos de Jacó, infelizmente, não reconheceram em Cristo o Messias, mas os remanescentes de Israel, os povos de boa vontade, gentios e de terras distantes, ouviram a sua palavra e a ela aderiram. Coincidentemente, hoje mesmo eu estava vendo na internet uma videoconferência com uma professora de Bíblia de Jerusalém e, quando um dos assistentes perguntou a ela o que significava Jesus para os judeus, ela respondeu assim: ele foi um judeu famoso, não mais do que isso. Cabe lembrar aqui a frase de Cristo a Tomé: felizes os que creram mesmo sem ter visto... ou seja, felizes somos nós, cristãos.

Agora, uma referência ao evangelho de João (1, 29-34). No domingo passado, lemos o texto de Mateus (3, 13-17), no qual o evangelista diz que, após Jesus ter sido batizado, o Espírito Santo apareceu sobre ele em forma de pomba. A narração do evangelista João inverte a ordem desses fatos. Diz que, quando Jesus ia se aproximando para ser batizado, o outro João, o Batista, disse logo: este é o Cordeiro de Deus (Jo 1, 29). É uma afirmação curiosa, porque o próprio Batista disse que não conhecia Jesus: “Também eu não o conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que ele fosse manifestado a Israel'.” (Jo 1, 31). Então, se o Batista não conhecia Jesus, como foi que o identificou de imediato? O próprio evangelista explica como o Batista o reconheceu: “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele. Também eu não o conhecia, mas aquele que me enviou a batizar com água me disse: `Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo'.” (Jo 1, 32-33) Com essa leitura, faz sentido aquela outra exclamação do Batista ao ver Jesus, conforme narra Mateus (3, 14): “'Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?'” Ora, se o Batista não conhecia Jesus, por que teria dito isso antes de batizá-lo? Assim, a narrativa de João é mais coerente: quando o Batista avistou Jesus, mesmo antes que ele se aproximasse para ser batizado, viu já o Espírito sobre ele e desse modo o reconheceu. Pode até ser que a forma de pomba tenha se tornado visível para os demais presentes após o batismo de Jesus, porém, com certeza, o Batista já o havia vislumbrado bem antes. Foi por isso que o Batista pôde afirmar: “'Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Dele é que eu disse: Depois de mim vem um homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim. ” (Jo 1, 29).

Alguém poderia admirar-se com certas discrepâncias observadas no texto bíblico e, de fato, isso faz com que pessoas não crentes se utilizem desses pormenores para justificarem sua falta de fé. No entanto, devemos sempre contextualizar para melhor entender. O evangelho de João foi escrito cerca de 40 a 50 anos após os primeiros. Estima-se que os evangelhos sinóticos datem dos anos 50 ou 60, enquanto o evangelho de João teria sido escrito por volta dos anos 95 a 100. Além do mais, João deu seu testemunho pessoal dos ensinamentos de Cristo, enquanto os outros três escreveram baseando-se em fontes escritas por terceiros. Isso não significa que os outros estejam errados e só João esteja certo, não devemos concluir assim. Cada um deles representa um traço comunitário da fé cristã dos tempos primitivos e pequenas divergências são perfeitamente justificadas com as diferenças espácio-temporais. Apesar delas, contudo, a fé no Cristo Cordeiro de Deus é a mesma e não fica comprometida. Que a nossa vida brilhe sempre mais com a felicidade que brota desta fé.


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