COMENTÁRIO LITÚRGICO
– EPIFANIA DO SENHOR – 05.01.2014
Caros Confrades:
Celebramos, na liturgia
deste domingo, a Epifania do Senhor. É a festa popularmente
conhecida como dos Santos Reis, contudo, eles nem são reis nem são
santos (no sentido estrito). O folclore trazido para cá pelos
portugueses introduziu o costume dos “reizados”, tradição que
se encontra em franco declínio, mas ainda se pratica em algumas
localidades. Tempos atrás, era mais comum verem-se pessoas “tirando
reis” de casa em casa. Atualmente, com o crescimento da violência
urbana e sobretudo depois do vício da televisão, esses folguedos
populares foram caindo em desuso e somente alguns “heróis” os
mantêm. Os jovens e as crianças de hoje não reconhecem mais essas
práticas, que eram muito fortes há 40 ou 50 anos.
A epifania do Senhor
designa a universalidade da salvação trazida por Cristo. Apesar de
os profetas sempre se referirem ao Messias como salvador de todos os
povos, havia entre os judeus uma crença de que a salvação
alcançaria apenas os descendentes das doze tribos de Jacó (Israel).
Então, logo por ocasião do nascimento de Cristo, a presença de
pessoas ilustres vindas de terras orientais, isto é, de fora do
território judaico, vem confirmar os profetas acerca da salvação
extensiva a todos. Mateus, cujo evangelho tem como tema básico a
apresentação de Jesus como salvador, reforça a ideia da salvação
universal. O texto bíblico não informa de que cidade eles vieram,
mas apenas que vieram de terras distantes no oriente, guiados pela
estrela. O evangelho fala somente nos 'magos', não diz que eles são
reis e também não se deve entender esta palavra no sentido da
prática de magias. Muito provavelmente, eles eram sacerdotes de uma
religião diferente, talvez do zoroastrismo, religião fundada por
Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo e praticada na região
que hoje corresponde ao Irã. Há pouco tempo, um colega me informou
sobre a existência de um romance intitulado “O quarto sábio”,
havendo também um filme com o mesmo nome, abordando a provável
existência de um quarto “mago”, que se desencontrou dos outros
três, por ter chegado atrasado ao local combinado, e saiu seguindo
os passos dos outros, vindo a encontrar-se com Jesus somente quando
ele já estava sendo levado para o Calvário. Trata-se de uma
história bem interessante, que eu sugiro aos Colegas lerem o livro
ou verem o filme, ajuda a esclarecer algumas noções acerca desses
estudiosos antigos.
Gramaticalmente, o
termo grego “epiphania” é um substantivo derivado do verbo
“epiphainow”, que significa aparecer, mostrar-se, apresentar-se.
A epifania é a festa da manifestação do Salvador, e isso se deu
efetivamente no seu nascimento. Por essa razão, as igrejas católicas
orientais celebram hoje o seu dia de Natal. A Igreja Católica Romana
separou as comemorações do nascimento de Jesus em duas festas: uma
em 25 de dezembro, o Natal – nascimento de Cristo, e hoje, a
manifestação de Cristo às nações do mundo, representados na
pessoa dos “magos” orientais. Se observarmos bem, a tradição
das igrejas orientais, mais antiga, é mais coerente, porque
realmente a manifestação de Cristo ao mundo se deu com o seu
nascimento. A divisão da festa em duas representou uma interferência
indevida da cultura romana sobre o cristianismo, o que foi repudiado
pelos Padres orientais, que mantiveram a sua tradição.
As leituras litúrgicas
da Epifania procuram integrar os textos do antigo e do novo
testamento, no caso, o livro de Isaías com o evangelho de Mateus. No
livro de Isaías, na verdade, o deutero-Isaías, cap. 60, 1, o autor
conclama Jerusalém a se alegrar, porque “sobre ti apareceu o
Senhor e a sua glória se manifestou”. E diz mais adiante (60, 6):
“será
uma inundação de camelos e dromedários de Madiã e Efa a te
cobrir; virão todos os de Sabá, trazendo ouro e incenso e
proclamando a glória do Senhor.
” Por certo, os “magos” viajavam em camelos, o transporte
característico do Oriente Médio, mas a narração de Mateus parece
sugerir que a chegada deles não foi motivo de alvoroço, porque diz
que eles encontraram o Menino e Maria, sua mãe, ofereceram os
presentes e o adoraram. Depois foram embora.
Parece que Mateus (2,
2) quis mostrar a realização da profecia de Isaías: “eis
que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde
está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela
no Oriente e viemos adorá-lo.'
” Até o Salmista (71, 10), faz coro com essa proclamação, ao
cantar: “Os
reis de Társis e das ilhas hão de vir e oferecer-lhes seus
presentes e seus dons; e também os reis de Seba e de Sabá hão de
trazer-lhe oferendas e tributos.
” A escritura está permeada de passagens assemelhadas, nas quais
essas referências se reproduzem. Os evangelistas, que conheciam a
Lei e os Profetas, trataram de integrar as profecias nos seus textos,
como forma de comprovar que Jesus é o Messias prometido, numa época
em que muitos judeus duvidavam e teimavam em não admitir isso.
É curioso notar que
nem o evangelista Lucas nem Marcos se referem ao episódio da visita
dos “magos”. É de admirar sobretudo que Lucas não trate dessa
visita, quando se sabe que os detalhes mais particulares da infância
de Cristo se encontram no seu evangelho, talvez porque lhe tenham
sido repassados por Maria. Ora, a visita dos “magos” nos
primeiros dias após o nascimento de Jesus devia ser um fato
importante, do qual Maria certamente se lembraria. E por que não o
teria repassado a Lucas, assim como fez com outros acontecimentos? De
acordo com os estudiosos, uma explicação para o fato de que apenas
Mateus relata isso seria porque esse evangelho foi escrito
originalmente em aramaico e só depois traduzido para o grego, isto
é, certamente, o local onde foi escrito era distante de onde moravam
os outros dois evangelistas, os quais assim não chegaram a conhecer
essa tradição dos “magos”. Bem, nunca se saberá com certeza o
que há por trás dessa narrativa. Mas visto que os evangelhos não
são propriamente registros históricos e sim proclamações de fé
das comunidades primitivas, o que mais importa nessa narrativa é a
doutrina da universalidade da salvação.
Com efeito, a aliança
original de Javé foi com os judeus, mas estes não reconheceram em
Jesus o Salvador que veio confirmar a promessa. Então diante da
descrença deles, a boa nova trazida por Jesus, o seu evangelho foi
pregado aos gentios, ou seja, àqueles que não descendem dos antigos
patriarcas. Num contexto trans-histórico, esses gentios somos nós,
cristãos, que não descendemos do povo hebreu. A figura dos “magos”
colocada nesse contexto próximo (ou mesmo junto) com o nascimento de
Jesus faz parte do propósito do evangelista de mostrá-Lo como o
Salvador de todas as nações, e não apenas do povo de Israel. É
verdade que alguns judeus aceitaram o evangelho e creram em Cristo,
porém sabemos que foram em minoria. Os diversos episódios,
conhecidos através das epístolas de Paulo, acerca do problema dos
“judaizantes”, isto é, daqueles que queriam manter as tradições
judaicas junto com o evangelho, demonstram que houve adesão por
parte dos judeus. No entanto, a pregação do evangelho aos gentios
não foi somente porque os judeus, enquanto povo da aliança, não o
aceitaram, mas é da natureza da própria mensagem de Cristo. Ou
seja, mesmo que todos os judeus tivessem crido e se convertido ao
evangelho, ainda assim o anúncio do cristianismo teria sido feito
também aos gentios, porque essa era a sua proposta.
A universalidade da
salvação trazida por Cristo é também o tema da carta de Paulo aos
Efésios (3, 2-6), onde ele retoma a ideia da recusa dos judeus e o
anúncio do evangelho aos gentios: “os
pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são
associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.
” Sabemos, pelos estudos históricos, que foi nas colônias gregas
do império romano onde o cristianismo começou a ganhar corpo como
religião, foi lá onde se fundaram as primeiras comunidades e se
ergueram as primeiras igrejas formalmente organizadas, aquelas que
hoje nós chamamos de “Igrejas orientais”. Antioquia, Alexandria,
Filipos, Éfeso, Galácia, Colossos, Esmirna, Tessalônica, só
bastante tempo depois, o cristianismo ao mundo romano. Foi por esse
motivo que os Patriarcas das Igrejas orientais não aceitaram a
mudança da data do Natal para 25 de dezembro, porque as suas Igrejas
eram muito mais antigas e a sua tradição já muito consolidada. E
eu, sinceramente, gostaria que a Igreja Romana reparasse esse
equívoco histórico e se unisse à liturgia das igrejas orientais,
onde se encontra a tradição cristã mais genuína.
Meus amigos,
independentemente dessas polêmicas históricas e literárias, o que
nos interessa é destacar o símbolo da universalidade da mensagem
cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou. Com a
festa da Epifania, a liturgia encerra o ciclo do Natal e passa para o
tempo comum, que irá até a quarta feira de cinzas, quando se inicia
a quaresma.
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