COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – A CURA DO CEGO – 30.03.2014
Caros Confrades,
Neste 4º domingo da quaresma, a liturgia traz um outro tema relacionado com a água, assim como foi no domingo passado, com o poço de Jacó. Hoje, lemos o caso do cego a quem Jesus mandou ir lavar-se na piscina de Siloé (o Enviado), ficando assim curado da sua deficiência. O propósito dessas leituras relacionadas com o elemento água relembra uma antiga tradição dos primórdios do cristianismo, quando os catecúmenos se preparavam para receber o batismo na vigília pascal, chamando a atenção para o simbolismo da água, que lava o corpo e purifica também o espírito.
Na primeira leitura, do livro de Samuel (1Sam 16, 1-13), narra-se a unção de Davi como futuro rei de Israel. Samuel foi mandado por Javé para ir até a casa de Jessé e ali ungir um dos seus filhos, o qual Samuel não sabia quem era. Chegando lá, ficou tentando adivinhar e passou cada um sem que Javeh confirmasse nenhum. Mas a sua viagem até lá não poderia ser em vão, faltava um dos filhos de Jessé, justamente o caçula, o escolhido. Davi foi ungido, mas não se tornou logo rei, porque então Saul ainda vivia. Somente após a morte deste, Davi foi aclamado rei, porém, teve de enfrentar a disputa com Isboset, um descendente de Saul, que também fora aclamado rei, causando a divisão do povo. Após a morte deste e com grande habilidade, Davi conseguiu reunir todos os israelitas sob o seu comando, unificando o povo de Deus. Davi é um dos personagens centrais do Antigo Testamento, pela escolha especial de Javeh sobre ele, pelos grandiosos feitos realizados, pela sabedoria que ele sempre demonstrou, de modo que todos os profetas anunciaram que o Messias surgiria de alguém descendente de Davi. E assim o foi. O que não significa que ele nunca tenha sido censurado por Javeh, basta lembrar o famoso episódio da sua cobiça por Betsabé, esposa do seu general Urias, a quem ele ordenou que se arriscasse numa zona de combate, vindo assim a morrer e Davi casou- se com a viúva. É verdade que Davi fez muita penitência por causa disso, quando foi repreendido pelo profeta Natan, mas não largou Betsabé. Como já tivemos oportunidade de comentar em outras ocasiões, a Bíblia não traz apenas relatos exemplares do procedimento dos líderes do antigo povo hebreu, mas apresenta também suas fraquezas, mostrando que, apesar disso, Javeh não os desautorizava. Para nós, fica a certeza de que Deus não nos abandona, apesar das nossas fraquezas, mas está sempre do nosso lado, vem sempre em nosso socorro.
Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 5, 8-14), o apóstolo evolui com o tema da luz, dizendo que os cristãos são filhos da luz, portanto, devem renunciar às coisas das trevas. A cidade de Éfeso era uma das maiores da sua região, sendo a capital da chamada Ásia Menor, território que hoje corresponde à Turquia. Em Éfeso, havia um grande templo em homenagem à deusa grega Ártemis (que os romanos chamavam de Diana), deusa da lua e da caça. Esse templo era considerado uma das sete maravilhas da antiguidade. As festas religiosas pagãs ali celebradas anualmente eram muito famosas e atraíam pessoas de todas as partes da região, dominada pelos romanos. Essas festas eram verdadeiras bacanais, com profusão de bebidas e licenciosidades. Daí Paulo adverte aos efésios para que não se comportem como antes, quando ainda estavam no paganismo, mas sejam fiéis à sua conversão à doutrina de Cristo. Com firmeza, ele os conclama: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz chama-se: bondade, justiça, verdade. Discerni o que agrada ao Senhor. Não vos associeis às obras das trevas, que não levam a nada; antes, desmascarai-as.” (Ef 5, 8-11) Os rituais pagãos ainda representavam uma grande tentação aos novéis convertidos e, certamente, alguns se deixavam levar pelos antigos costumes. Mas o tema da luz também serve como ponte para a leitura do evangelho, quando Cristo cura o cego de nascença, dando-lhe a luz dos olhos. Paulo faz uma espécie de trocadilho com a oposição de conceitos luz-trevas, que tanto se relaciona com o contexto da visão corporal quanto também com a visão espiritual, decorrente da conversão. Os efésios, antes do evangelho, eram como cegos que não conheciam a luz da verdade. Por isso, não devem agora retroceder ao estado anterior.
Na leitura do evangelho de João (9, 1-38), temos a narração do longo trecho referente à cura de um cego de nascença, cujo milagre os fariseus teimavam em não aceitar. Tratando-se, conforme já anunciamos, de um texto destinado à catequese dos novos cristãos, João descreve o episódio com grande riqueza de detalhes, destacando a messianidade de Cristo e a incredulidade dos fariseus. João aponta ainda para o simbolismo da água da piscina de Siloé, local que é referido por diversas vezes na Bíblia, sendo um poço muito antigo, nos arredores de Jerusalém, que era utilizado como fonte de abastecimento de água da cidade e era também local de abluções rituais por ocasião da festa dos Tabernáculos.
Nessa narração da cura do cego, há vários detalhes importantes a serem destacados. Primeiro, o fato de que Jesus, como ocorreu em outras ocasiões, não realizou diretamente o milagre, ele apenas o iniciou. Fez uma gosma de areia com saliva e colocou nos olhos do cego, mandando que ele fosse lavar-se em Siloé. Era como se Jesus estivesse pondo à prova a fé daquele homem. Ele poderia não ter ido a Siloé, poderia ter se lavado em outro lugar e o milagre não teria se completado. Ele acreditou em Jesus e acreditou também no poder das águas rituais de Siloé, assim como Naaman, o sírio, foi banhar-se no rio Jordão, a mando do Profeta. Isso indica que os milagres divinos não acontecem como passes de mágica, mas Deus se serve da nossa participação para realizar seus feitos admiráveis. Ele inicia a tarefa e deixa para que nós a completemos, tal como fez o cego do evangelho.
Em segundo lugar, temos a associação entre a cegueira e o pecado. Era comum, na cultura hebraica, relacionar um infortúnio, uma calamidade, uma doença a um castigo de Javeh pelo pecado de alguém. A narrativa do livro de Jó fora um ensinamento inserido na literatura religiosa hebraica com o intuito de bloquear essa crença cultural antiga, mas ela persistia mesmo assim. Os discípulos logo perguntaram: Mestre, quem pecou: ele ou os pais, para que nascesse cego? (Jo 9, 2) João faz questão de inserir esse diálogo na narrativa certamente porque, no seu tempo, essa tradição ainda era sintomática no pensamento dos judeus e os catecúmenos precisavam romper com isso. Jesus deu-lhes uma resposta muito elucidativa: nem uma coisa nem outra, mas isso aconteceu para que se manifestasse nele a glória de Deus. Trazendo o fato para a nossa vida cotidiana, devemos estar cientes de que os infortúnios acontecem para que, através deles, se manifeste a glória de Deus na nossa vida. Assim deve ser a dimensão da nossa fé. Jesus veio ensinar, de forma definitiva, que o Deus castigador apresentado no Antigo Testamento era uma visão deturpada desenvolvida pelos antigos hebreus, pois na verdade, Deus é amor.
Em terceiro lugar, podemos notar a caturrice dos fariseus, teimando em não aceitar o óbvio. Pediram ao ex-cego que relatasse várias vezes o episódio, duvidaram que ele fosse mesmo um cego e que estivesse apenas fingindo, alegaram que o cego era outra pessoa parecida com ele, não ele próprio, foram entrevistar os pais do ex-cego para confirmar a história, lembraram que aquele dia era um sábado e, portanto, alguém da parte de Deus não poderia fazer aquilo no sábado, porque estaria contrariando a lei divina, enfim... E o ex-cego contava sempre a mesma história. Por fim, não tendo mais como refutar a veracidade do caso, apelaram para ignorância, porque o cego disse que Jesus era um profeta: tu nasceste no pecado e estás querendo nos ensinar? E o expulsaram da cidade. (Jo 9, 34) Meus amigos, devemos estar atentos para não agirmos assim como os fariseus, deixando de reconhecer Jesus no rosto do irmão que nos procura e pede a nossa ajuda. Às vezes, somos demasiadamente incrédulos diante dos acontecimentos e o nosso orgulho não nos permite ver a mão de Deus agindo na história e nos conclamando a fazermos a nossa parte. Ficamos esperando um milagre automático e não nos damos conta de que Deus espera a nossa participação, para que os milagres aconteçam, esquecemos que Ele age por nosso intermédio. Lembremo-nos sempre do conselho paulino: agora que somos luz, deixemos a luz brilhar em nós.
domingo, 30 de março de 2014
domingo, 23 de março de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA QUARESMA - A ÁGUA VIVA DO BATISMO - 23.03.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – A ÁGUA VIVA DO BATISMO– 23.03.2014
Caros Confrades,
Na liturgia deste 3º domingo da quaresma, o tema principal é o simbolismo da água e sua importância para a vida material e espiritual. Dois fatos bíblicos são narrados, ambos associados à figura da água, como o elemento mais importante do contexto: as reclamações dos israelitas em Massa e Meriba, quando a água faltou, e o diálogo de Jesus com a samaritana, que ficou curiosa pela água viva, que não deixa mais sentir sede. É também um dos raros textos evangélicos nos quais uma mulher exerce um papel de destaque, pois através daquela samaritana, todo o povo da sua cidade acreditou em Jesus.
Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 3-7), lemos sobre as reclamações do povo contra Moisés, quando tiveram de acampar nas quebradas do monte Horeb, num local extremamente seco, estando todos (pessoas e animais) cansados e sedentos. O povo murmurava contra Moisés, dizendo: “Por que nos fizeste sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede, a nós, nossos filhos e nosso gado?” (Ex 17, 3) e Moisés foi socorrer-se de Javeh, porque temia até ser apedrejado pelo povo irado. Depois de alguns meses vagando pelo deserto, o povo pareceu ter esquecido de todos os prodígios feitos por Javeh em seu benefício e, naquela situação, em vez de se voltarem para Ele novamente pedindo sua proteção, passaram a praguejar. É curioso como essa situação está sempre bem próxima do nosso dia-a-dia. Por mais favores que recebamos de Deus, sempre que acontece de algo não correr do modo como queremos, passamos a murmurar palavras de infortúnio. Fazemos exatamente como o povo hebreu no deserto.
Mas Javeh, na sua misericórdia, teve piedade daquele povo, porque na dureza dos corações deles, não mereciam consideração. Mandou que Moisés, na presença dos anciãos, batesse com o cajado na pedra, aquele mesmo cajado com o qual Ele operara o milagre anterior nas águas do rio Nilo, e fez brotar água daquela pedra seca. Moisés deu àquele lugar os nomes de Massa e Meriba, palavras que significam reclamação, murmuração, porque os israelitas foram injustos para com Javeh, quase que desafiando-o. Esse fato ficou tão presente na memória do povo e teve um impacto tão forte, que o salmista (possivelmente Salomão), muitos séculos mais tarde, ainda fê-lo incluir no salmo, que também se recita neste domingo: “Não fecheis os corações como em Meriba, como em Massa, no deserto, aquele dia em que outrora vossos pais me provocaram, apesar de terem visto as minhas obras”. (Salmo 94). Não sei se vocês se recordam, mas este salmo 94 era rezado por nós todos os dias, na hora das Laudes, era uma introdução ao Oficio desta hora. Moisés deu esses nomes àquele lugar para que a sandice daqueles incrédulos nunca fosse esquecida. Esta fonte, que jorrou em pleno deserto, por obra e misericórdia de Javeh, salvando a todos de uma provável morte naquela região inóspita, tornou-se o símbolo da água que vivifica e que Jesus vai retomar, em diversas outras ocasiões.
Na leitura do evangelho de João (4, 5-42), num texto bem longo, ele narra com riqueza de detalhes o diálogo de Jesus com uma mulher da Samaria. Esta narrativa unicamente joanina não consta nos textos sinóticos, o que demonstra ser do conhecimento apenas de João. Além disso, o conjunto dos detalhes demonstra que essa narrativa era utilizada na catequese das primeiras comunidades da Ásia Menor, onde atuava João, e fora enriquecida com as reflexões e os comentários dos narradores. Atentemos para uma importante observação no versículo 4, 8: os discípulos tinham ido à cidade a fim de comprar alimentos. Jesus estava sozinho, sentado em alguma pedra ao lado do poço, quando chegou uma mulher, proveniente da cidade de Sicar, na Samaria, a fim encher sua vasilha com a água daquela fonte. Portanto, ninguém testemunhou o diálogo entre Jesus e a samaritana, no entanto, pela repercussão causada naquela cidade, deve ter-se tornado um fato muito comentado na região. Todos sabem que quem conta um conto aumenta um ponto. Logo, quando a narrativa foi colhida por João, para incluí-la no seu texto, essa história já havia passado de boca em boca inúmeras vezes.
Através dela, João nos traz diversos ensinamentos importantes. O primeiro deles está na própria figura da samaritana, pelo fato de ser uma mulher e por ser da Samaria. Vejamos primeiro a questão do bairrismo ali embutida. Judeus e samaritanos eram intrigados e não se falavam, isso desde o tempo do cativeiro da Assíria. Sim, houve o cativeiro da Assíria, antes do cativeiro da Babilônia. Os dois filhos de Salomão se desentenderam após a morte do pai e o reino ficou dividido em duas regiões: a região norte, com a capital em Samaria, reunia 10 tribos; a região sul, com capital em Jerusalém, reunia as outras duas tribos. Alguns anos após, o reino do norte (Samaria) foi vencido pelo rei assírio Assurbanipal e muitos foram levados cativos. Os que ficaram se misturaram com povos pagãos e com estes se miscigenaram, o que era proibido pela lei mosaica. Por isso, os judeus do sul não consideravam mais os samaritanos como se fossem da sua mesma raça e criou-se grande animosidade entre eles. Então, num primeiro momento, a narrativa de João mostrando Jesus dialogando com uma samaritana procura mostrar que, para Ele, não há diferença entre judeus e samaritanos, todos são chamados à salvação. E João diz que, naquela ocasião, muitos samaritanos acreditaram em Jesus. Vemos aí o aspecto da superação de uma antiga rivalidade através do ensinamento de Jesus, o que era muito importante para unir as comunidades locais.
Agora vejamos o aspecto da mulher de vida livre. Essas mulheres eram mal vistas pela comunidade e Jesus, em diversas ocasiões, as acolheu e as valorizou. Ela nem precisou dizer, porque Ele se antecipou e disse logo: eu sei que tu já tiveste cinco maridos e o que tens agora nem teu marido é. Ela ficou impressionada e logo correu até a cidade para avisar aos moradores de que estava ali um profeta, um profeta diferente, que não fazia discriminação com os samaritanos. E eles pediram para que Jesus permanecesse com eles e, diz João, Jesus ficou dois dias naquela cidade. E foi tamanha a adesão do povo que logo o identificaram como o Messias. Através dessa narrativa, João quer significar que até os não judeus (na verdade, eles eram judeus misturados) acreditaram em Jesus, logo não havia motivo para que os judeus (puros) desacreditassem nele. João é tão detalhista nesse episódio, a ponto de registrar que os discípulos de Jesus, ao retornarem, o viram conversando com uma mulher e se admiraram, mas nenhum teve coragem de perguntar sobre o que falavam. Certamente, a admiração deles não era por ser uma mulher, mas por ser uma mulher samaritana, o que era duplamente de admirar, pelo fato da dupla discriminação: da feminilidade e da cidadania samaritana.
Vejamos agora um pouco sobre o tema do diálogo propriamente dito, que deve ter sido conservado pela própria tradição dos samaritanos, já que nenhum dos discípulos estava presente. A mulher logo estranhou o fato de haver um judeu naquele local, pois os judeus evitavam passar por ali. E achou ainda mais estranho aquele judeu pedir-lhe água, pois os judeus nem falavam com os samaritanos, muito menos pediam alguma coisa. Obviamente, o pedido de água foi apenas um pretexto para iniciar a conversa, porque antes que ela se negasse, Jesus despertou logo a curiosidade dela dizendo que tinha a água viva, aquela que sacia a sede para sempre. Ela ficou logo interessada e pediu: dá-me dessa água também, para que eu nunca mais precise voltar aqui. Até então, ela pensava apenas no líquido material, mas depois que Jesus esmiuçou a vida dela, ela passou a entender que ali estava alguém que era maior do que o pai Jacó, que havia deixado aquele poço para os seus descendentes. E João insere nesse diálogo a referência ao Messias, como se a samaritana tivesse de imediato reconhecido com quem falava: “Sei que o Messias (que se chama Cristo) vai chegar. Quando ele vier, vai nos fazer conhecer todas as coisas”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que estou falando contigo”. (Jo 4, 25-26) Notem mais uma vez o detalhismo: João explica para os leitores que o Messias é o Cristo, até a samaritana desconfiou disso. Foi quando Jesus se identificou: sou eu. Mas nesse momento, os discípulos se aproximaram e o diálogo terminou.
Vejam, meus amigos, quantos ensinamentos estão embutidos nesse episódio, porém a liturgia se concentra apenas no simbolismo da água. Ao meu ver, o tema maior é o messianismo de Jesus. A figura da água apenas ilustra uma dimensão do Seu poder, que é a oferta de uma água especial, pela qual nos vem a salvação. A água do batismo é a vivência religiosa dessa água viva, que nos abre o caminho da vida eterna. Ela não é ingerida, mas aspergida, no entanto, o seu poder curador ultrapassa o de qualquer outro remédio purificador tanto do corpo quanto do espírito.
Caros Confrades,
Na liturgia deste 3º domingo da quaresma, o tema principal é o simbolismo da água e sua importância para a vida material e espiritual. Dois fatos bíblicos são narrados, ambos associados à figura da água, como o elemento mais importante do contexto: as reclamações dos israelitas em Massa e Meriba, quando a água faltou, e o diálogo de Jesus com a samaritana, que ficou curiosa pela água viva, que não deixa mais sentir sede. É também um dos raros textos evangélicos nos quais uma mulher exerce um papel de destaque, pois através daquela samaritana, todo o povo da sua cidade acreditou em Jesus.
Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 3-7), lemos sobre as reclamações do povo contra Moisés, quando tiveram de acampar nas quebradas do monte Horeb, num local extremamente seco, estando todos (pessoas e animais) cansados e sedentos. O povo murmurava contra Moisés, dizendo: “Por que nos fizeste sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede, a nós, nossos filhos e nosso gado?” (Ex 17, 3) e Moisés foi socorrer-se de Javeh, porque temia até ser apedrejado pelo povo irado. Depois de alguns meses vagando pelo deserto, o povo pareceu ter esquecido de todos os prodígios feitos por Javeh em seu benefício e, naquela situação, em vez de se voltarem para Ele novamente pedindo sua proteção, passaram a praguejar. É curioso como essa situação está sempre bem próxima do nosso dia-a-dia. Por mais favores que recebamos de Deus, sempre que acontece de algo não correr do modo como queremos, passamos a murmurar palavras de infortúnio. Fazemos exatamente como o povo hebreu no deserto.
Mas Javeh, na sua misericórdia, teve piedade daquele povo, porque na dureza dos corações deles, não mereciam consideração. Mandou que Moisés, na presença dos anciãos, batesse com o cajado na pedra, aquele mesmo cajado com o qual Ele operara o milagre anterior nas águas do rio Nilo, e fez brotar água daquela pedra seca. Moisés deu àquele lugar os nomes de Massa e Meriba, palavras que significam reclamação, murmuração, porque os israelitas foram injustos para com Javeh, quase que desafiando-o. Esse fato ficou tão presente na memória do povo e teve um impacto tão forte, que o salmista (possivelmente Salomão), muitos séculos mais tarde, ainda fê-lo incluir no salmo, que também se recita neste domingo: “Não fecheis os corações como em Meriba, como em Massa, no deserto, aquele dia em que outrora vossos pais me provocaram, apesar de terem visto as minhas obras”. (Salmo 94). Não sei se vocês se recordam, mas este salmo 94 era rezado por nós todos os dias, na hora das Laudes, era uma introdução ao Oficio desta hora. Moisés deu esses nomes àquele lugar para que a sandice daqueles incrédulos nunca fosse esquecida. Esta fonte, que jorrou em pleno deserto, por obra e misericórdia de Javeh, salvando a todos de uma provável morte naquela região inóspita, tornou-se o símbolo da água que vivifica e que Jesus vai retomar, em diversas outras ocasiões.
Na leitura do evangelho de João (4, 5-42), num texto bem longo, ele narra com riqueza de detalhes o diálogo de Jesus com uma mulher da Samaria. Esta narrativa unicamente joanina não consta nos textos sinóticos, o que demonstra ser do conhecimento apenas de João. Além disso, o conjunto dos detalhes demonstra que essa narrativa era utilizada na catequese das primeiras comunidades da Ásia Menor, onde atuava João, e fora enriquecida com as reflexões e os comentários dos narradores. Atentemos para uma importante observação no versículo 4, 8: os discípulos tinham ido à cidade a fim de comprar alimentos. Jesus estava sozinho, sentado em alguma pedra ao lado do poço, quando chegou uma mulher, proveniente da cidade de Sicar, na Samaria, a fim encher sua vasilha com a água daquela fonte. Portanto, ninguém testemunhou o diálogo entre Jesus e a samaritana, no entanto, pela repercussão causada naquela cidade, deve ter-se tornado um fato muito comentado na região. Todos sabem que quem conta um conto aumenta um ponto. Logo, quando a narrativa foi colhida por João, para incluí-la no seu texto, essa história já havia passado de boca em boca inúmeras vezes.
Através dela, João nos traz diversos ensinamentos importantes. O primeiro deles está na própria figura da samaritana, pelo fato de ser uma mulher e por ser da Samaria. Vejamos primeiro a questão do bairrismo ali embutida. Judeus e samaritanos eram intrigados e não se falavam, isso desde o tempo do cativeiro da Assíria. Sim, houve o cativeiro da Assíria, antes do cativeiro da Babilônia. Os dois filhos de Salomão se desentenderam após a morte do pai e o reino ficou dividido em duas regiões: a região norte, com a capital em Samaria, reunia 10 tribos; a região sul, com capital em Jerusalém, reunia as outras duas tribos. Alguns anos após, o reino do norte (Samaria) foi vencido pelo rei assírio Assurbanipal e muitos foram levados cativos. Os que ficaram se misturaram com povos pagãos e com estes se miscigenaram, o que era proibido pela lei mosaica. Por isso, os judeus do sul não consideravam mais os samaritanos como se fossem da sua mesma raça e criou-se grande animosidade entre eles. Então, num primeiro momento, a narrativa de João mostrando Jesus dialogando com uma samaritana procura mostrar que, para Ele, não há diferença entre judeus e samaritanos, todos são chamados à salvação. E João diz que, naquela ocasião, muitos samaritanos acreditaram em Jesus. Vemos aí o aspecto da superação de uma antiga rivalidade através do ensinamento de Jesus, o que era muito importante para unir as comunidades locais.
Agora vejamos o aspecto da mulher de vida livre. Essas mulheres eram mal vistas pela comunidade e Jesus, em diversas ocasiões, as acolheu e as valorizou. Ela nem precisou dizer, porque Ele se antecipou e disse logo: eu sei que tu já tiveste cinco maridos e o que tens agora nem teu marido é. Ela ficou impressionada e logo correu até a cidade para avisar aos moradores de que estava ali um profeta, um profeta diferente, que não fazia discriminação com os samaritanos. E eles pediram para que Jesus permanecesse com eles e, diz João, Jesus ficou dois dias naquela cidade. E foi tamanha a adesão do povo que logo o identificaram como o Messias. Através dessa narrativa, João quer significar que até os não judeus (na verdade, eles eram judeus misturados) acreditaram em Jesus, logo não havia motivo para que os judeus (puros) desacreditassem nele. João é tão detalhista nesse episódio, a ponto de registrar que os discípulos de Jesus, ao retornarem, o viram conversando com uma mulher e se admiraram, mas nenhum teve coragem de perguntar sobre o que falavam. Certamente, a admiração deles não era por ser uma mulher, mas por ser uma mulher samaritana, o que era duplamente de admirar, pelo fato da dupla discriminação: da feminilidade e da cidadania samaritana.
Vejamos agora um pouco sobre o tema do diálogo propriamente dito, que deve ter sido conservado pela própria tradição dos samaritanos, já que nenhum dos discípulos estava presente. A mulher logo estranhou o fato de haver um judeu naquele local, pois os judeus evitavam passar por ali. E achou ainda mais estranho aquele judeu pedir-lhe água, pois os judeus nem falavam com os samaritanos, muito menos pediam alguma coisa. Obviamente, o pedido de água foi apenas um pretexto para iniciar a conversa, porque antes que ela se negasse, Jesus despertou logo a curiosidade dela dizendo que tinha a água viva, aquela que sacia a sede para sempre. Ela ficou logo interessada e pediu: dá-me dessa água também, para que eu nunca mais precise voltar aqui. Até então, ela pensava apenas no líquido material, mas depois que Jesus esmiuçou a vida dela, ela passou a entender que ali estava alguém que era maior do que o pai Jacó, que havia deixado aquele poço para os seus descendentes. E João insere nesse diálogo a referência ao Messias, como se a samaritana tivesse de imediato reconhecido com quem falava: “Sei que o Messias (que se chama Cristo) vai chegar. Quando ele vier, vai nos fazer conhecer todas as coisas”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que estou falando contigo”. (Jo 4, 25-26) Notem mais uma vez o detalhismo: João explica para os leitores que o Messias é o Cristo, até a samaritana desconfiou disso. Foi quando Jesus se identificou: sou eu. Mas nesse momento, os discípulos se aproximaram e o diálogo terminou.
Vejam, meus amigos, quantos ensinamentos estão embutidos nesse episódio, porém a liturgia se concentra apenas no simbolismo da água. Ao meu ver, o tema maior é o messianismo de Jesus. A figura da água apenas ilustra uma dimensão do Seu poder, que é a oferta de uma água especial, pela qual nos vem a salvação. A água do batismo é a vivência religiosa dessa água viva, que nos abre o caminho da vida eterna. Ela não é ingerida, mas aspergida, no entanto, o seu poder curador ultrapassa o de qualquer outro remédio purificador tanto do corpo quanto do espírito.
domingo, 16 de março de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - A LEI E OS PROFETAS - 16.03.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – A LEI E OS PROFETAS – 16.03.2014
Caros Confrades,
Neste 2º domingo da quaresma, a liturgia nos traz, como de costume, a narração da transfiguração de Cristo perante três dos seus apóstolos. A promessa de Javeh a Abrão dizendo que a sua descendência seria abençoada e preencheria toda a terra e a recomendação de Paulo a Timóteo, para que suporte os sofrimentos decorrentes da pregação do evangelho compõem o quadro leitural do domingo.
Na primeira leitura, lemos o desafio que Javeh lança a Abrão: sai de tua terra e vai para o lugar que eu vou te indicar; farei de ti um grande povo e em ti abençoarei todas as famílias da terra. (Gn 12, 2) De acordo com os recentes estudos de hebraico bíblico que estou fazendo, o nome do livro que nós chamamos Gênesis lá se diz Bereshit e significa o início, o princípio. O significado de Gênesis lembra mais a idéia de criação. No entanto, verificamos que a narração da criação ocupa apenas os dois primeiros capítulos. A partir do cap. 3, inicia-se a história de Adão e Eva, Caim e Abel, o dilúvio, os primeiros povos até chegar ao personagem Abraão, no cap. 11. A leitura deste domingo, do cap. 12, narra os primórdios da aliança de Javeh com o povo hebreu, através do patriarca Abrão. Conclui-se que o título 'gênesis' não tem muita relação com o conteúdo da maior parte dos 50 capítulos deste livro, sendo o nome Princípio ou Início muito mais adequado. O objetivo do autor sagrado, neste escrito, foi mostrar o início do povo de Deus, não propriamente a criação do mundo. Daí a importância de se conhecer as línguas antigas, a fim de compreender melhor os textos da escritura, o que não se percebe quando se depende apenas de traduções. Diz o autor de Bereshit que Abrão partiu e fez conforme o Senhor havia dito.
O autor sagrado quer destacar, nesse contexto, duas coisas: primeiro, a fé inabalável do seu patriarca Abrão, cujo nome foi depois mudado para Abraão. Ele não sabia para onde iria, porque Javeh deveria indicar isso quando já estivesse a caminho, mas assim mesmo, com toda a confiança, ele deixou o seu lugar (Ur, na Caldéia) e foi seguindo as ordens de Javeh. Segundo, essas narrativas também servem para explicar ao povo hebreu o motivo de serem eles um povo nômade. Ainda hoje, no território que atravessa o deserto do Saara, há os povos nômades. O hagiógrafo do Bereshit quer justificar para o povo que o nomadismo faz parte de uma missão, de uma promessa, de um trato realizado por seus ancestrais, por isso eles não se fixam em nenhum território. Os judeus continuam espalhados pelo mundo. Além deles, ainda temos em nossos dias o exemplo dos ciganos, que são também originários dali e se transferiram para a Europa, mas continuam a perambular sem um destino de fixação.
Na segunda leitura, o trecho da carta de Paulo a Timóteo lhe recomenda a sofrer com paciência as agruras decorrentes da pregação do Evangelho. Timóteo fora colocado por Paulo como dirigente da comunidade que ele (Paulo) criou em Éfeso e, por extensão, dirigente das comunidades de toda a Ásia Menor, região que hoje corresponde à Turquia. Paulo estava preso e era levado para Roma, a fim de ser julgado pelo imperador, tendo deixado a Timóteo essa árdua missão. Na ocasião, Timóteo enfrentava os judeus adversários de Paulo e do cristianismo naquela região grega muito povoada e também muito próspera, pelo comércio. E não eram apenas perseguições ideológicas, mas também ameaças físicas. Paulo tomou conhecimento desses fatos e, através de carta a ele dirigida, exorta Timóteo a perseverar na fé assim como ele, Paulo, que também estava preso por causa do evangelho, mas confiava na promessa de Cristo que, ao vencer a morte, trouxe a imortalidade para os seus seguidores. “A graça de Deus nos foi dada por Jesus Cristo para toda a eternidade.” A tenacidade de Paulo, de Timóteo, de Tito e dos primeiros líderes cristãos daquelas comunidades foi altamente importante para a continuidade do cristianismo, o que possibilitou seu avanço até os dias de hoje.
Na leitura do evangelho de Mateus (17, 1-9), temos a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Primeiramente, podemos refletir sobre a escolha desses três, isto é, por que Jesus não se transfigurou diante de todos os apóstolos? Certamente, eram esses três os que tinham sua maior confiança. Pedro já estava escolhido para ser o líder do grupo e Jesus o preparava para essa missão. João era o discípulo mais jovem, aquele em que Jesus depositava total confiança. Quanto a Tiago, havia dois discípulos com esse nome. O evangelista Mateus diz que quem estava no trio era o Tiago (maior) filho de Zebedeu, irmão de João, porém os outros dois evangelhos sinóticos (Marcos 9, 2 e Lucas 9, 28) não afirmam se era este mesmo ou o outro Tiago (menor) filho de Alfeu. Este último é considerado, por algumas tradições, como irmão de Jesus, deixando assim uma dúvida sobre a identidade do terceiro discípulo a presenciar aquele extraordinário fenômeno. Se levarmos em consideração o grau de parentesco, podemos supor que o Tiago referido na narração da transfiguração seja o outro, o irmão de Jesus, não o irmão de João.
Importa destacar aqui nesse contexto o significado de “irmão”. Com efeito, a palavra grega “adelphos”, que se traduz geralmente por irmão, também significava primo, meio-irmão, irmão de criação, ou seja, um parentesco bastante próximo, não necessariamente irmão consanguíneo. Sou levado a crer que o Tiago do trio que presenciou a configuração poderia ser este Tiago Adelphos, o menor, e não o filho de Zebedeu, irmão de João. Isso entra em choque com o texto de Mateus, mas os motivos que acima destaquei me levam a sustentar a segunda hipótese, com todo o respeito. Trata-se de uma questão, como já mencionei aqui em outras oportunidades, de que não se deve interpretar o texto bíblico de forma puramente literal, mas buscando elementos circunstanciais que auxiliem a uma compreensão mais ampla. Devemos considerar que, durante séculos, esses textos passaram pelas mãos de vários copistas e não se descarta a eventual possibilidade de ter havido pequenas alterações ou adaptações do texto primitivo.
Um outro ponto a se destacar no texto da narração da transfiguração é a metamorfose de Jesus ante a presença de dois personagens da tradição hebraica: Moisés e Elias. Eles representam, respectivamente, a Lei e os Profetas. Diz o narrador que a face de Jesus ficou resplendente igual ao sol e as suas roupas brancas tanto quanto a neve. Eu achei interessante essa comparação da roupa de Jesus com a neve, porque as pessoas daquela região geográfica onde os apóstolos viviam não têm familiaridade com a neve, sendo essa uma experiência mais comum na Europa. Pois bem, no texto original em grego, está escrito que as roupas de Jesus ficaram “leuka ôs tô phôs” e S. Jerônimo traduziu como sendo “alba sicut nix”. Bem, phôs em grego significa luz (phôs, photos). Então, conclui-se que S. Jerônimo utilizou uma metáfora européia para traduzir o original grego. Em lugar de “brancas como a neve” deveria ser “brancas como a luz”, assim faz mais sentido para a experiência do povo da Palestina.
Nesta narração, Jesus quis provar aos seus discípulos duas verdades que ele vinha pregando há muito tempo: primeiro, a sua origem divina; segundo, que os seus ensinamentos não são contrários à lei mosaica, como muitas vezes os fariseus o acusavam, mas ao contrário, Ele se apresentar ao lado de Moisés e de Elias, dialogando com eles, queria significar que havia pleno entendimento entre os respectivos ensinamentos. Os discípulos eram judeus e, certamente, também podiam ter ainda dúvidas dessas duas verdades. Afinal, o judaísmo farisaico interpretava a lei de uma forma tão própria e exclusiva que, à primeira vista, dava a impressão que o ensinamento de Jesus estava indo contra a sua tradição. Com aquela visão futurista, Jesus estava dando provas de que a sua doutrina era mesmo a continuidade daquilo que a tradição guardava como ensinamentos de Moisés e dos Profetas. E Jesus os recomendou fortemente que nada contassem sobre o que tinham visto, isso seria impossível de controlar em um grupo mais numeroso de assistentes.
Para nós, a figura do Cristo transfigurado é um constante e eloquente apelo a fim de que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, cuja antecipação Ele demonstrou naquele memorável cenário. Nossa missão é fazer com que Cristo se apresente através de nós, transfigurando-nos.
Caros Confrades,
Neste 2º domingo da quaresma, a liturgia nos traz, como de costume, a narração da transfiguração de Cristo perante três dos seus apóstolos. A promessa de Javeh a Abrão dizendo que a sua descendência seria abençoada e preencheria toda a terra e a recomendação de Paulo a Timóteo, para que suporte os sofrimentos decorrentes da pregação do evangelho compõem o quadro leitural do domingo.
Na primeira leitura, lemos o desafio que Javeh lança a Abrão: sai de tua terra e vai para o lugar que eu vou te indicar; farei de ti um grande povo e em ti abençoarei todas as famílias da terra. (Gn 12, 2) De acordo com os recentes estudos de hebraico bíblico que estou fazendo, o nome do livro que nós chamamos Gênesis lá se diz Bereshit e significa o início, o princípio. O significado de Gênesis lembra mais a idéia de criação. No entanto, verificamos que a narração da criação ocupa apenas os dois primeiros capítulos. A partir do cap. 3, inicia-se a história de Adão e Eva, Caim e Abel, o dilúvio, os primeiros povos até chegar ao personagem Abraão, no cap. 11. A leitura deste domingo, do cap. 12, narra os primórdios da aliança de Javeh com o povo hebreu, através do patriarca Abrão. Conclui-se que o título 'gênesis' não tem muita relação com o conteúdo da maior parte dos 50 capítulos deste livro, sendo o nome Princípio ou Início muito mais adequado. O objetivo do autor sagrado, neste escrito, foi mostrar o início do povo de Deus, não propriamente a criação do mundo. Daí a importância de se conhecer as línguas antigas, a fim de compreender melhor os textos da escritura, o que não se percebe quando se depende apenas de traduções. Diz o autor de Bereshit que Abrão partiu e fez conforme o Senhor havia dito.
O autor sagrado quer destacar, nesse contexto, duas coisas: primeiro, a fé inabalável do seu patriarca Abrão, cujo nome foi depois mudado para Abraão. Ele não sabia para onde iria, porque Javeh deveria indicar isso quando já estivesse a caminho, mas assim mesmo, com toda a confiança, ele deixou o seu lugar (Ur, na Caldéia) e foi seguindo as ordens de Javeh. Segundo, essas narrativas também servem para explicar ao povo hebreu o motivo de serem eles um povo nômade. Ainda hoje, no território que atravessa o deserto do Saara, há os povos nômades. O hagiógrafo do Bereshit quer justificar para o povo que o nomadismo faz parte de uma missão, de uma promessa, de um trato realizado por seus ancestrais, por isso eles não se fixam em nenhum território. Os judeus continuam espalhados pelo mundo. Além deles, ainda temos em nossos dias o exemplo dos ciganos, que são também originários dali e se transferiram para a Europa, mas continuam a perambular sem um destino de fixação.
Na segunda leitura, o trecho da carta de Paulo a Timóteo lhe recomenda a sofrer com paciência as agruras decorrentes da pregação do Evangelho. Timóteo fora colocado por Paulo como dirigente da comunidade que ele (Paulo) criou em Éfeso e, por extensão, dirigente das comunidades de toda a Ásia Menor, região que hoje corresponde à Turquia. Paulo estava preso e era levado para Roma, a fim de ser julgado pelo imperador, tendo deixado a Timóteo essa árdua missão. Na ocasião, Timóteo enfrentava os judeus adversários de Paulo e do cristianismo naquela região grega muito povoada e também muito próspera, pelo comércio. E não eram apenas perseguições ideológicas, mas também ameaças físicas. Paulo tomou conhecimento desses fatos e, através de carta a ele dirigida, exorta Timóteo a perseverar na fé assim como ele, Paulo, que também estava preso por causa do evangelho, mas confiava na promessa de Cristo que, ao vencer a morte, trouxe a imortalidade para os seus seguidores. “A graça de Deus nos foi dada por Jesus Cristo para toda a eternidade.” A tenacidade de Paulo, de Timóteo, de Tito e dos primeiros líderes cristãos daquelas comunidades foi altamente importante para a continuidade do cristianismo, o que possibilitou seu avanço até os dias de hoje.
Na leitura do evangelho de Mateus (17, 1-9), temos a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Primeiramente, podemos refletir sobre a escolha desses três, isto é, por que Jesus não se transfigurou diante de todos os apóstolos? Certamente, eram esses três os que tinham sua maior confiança. Pedro já estava escolhido para ser o líder do grupo e Jesus o preparava para essa missão. João era o discípulo mais jovem, aquele em que Jesus depositava total confiança. Quanto a Tiago, havia dois discípulos com esse nome. O evangelista Mateus diz que quem estava no trio era o Tiago (maior) filho de Zebedeu, irmão de João, porém os outros dois evangelhos sinóticos (Marcos 9, 2 e Lucas 9, 28) não afirmam se era este mesmo ou o outro Tiago (menor) filho de Alfeu. Este último é considerado, por algumas tradições, como irmão de Jesus, deixando assim uma dúvida sobre a identidade do terceiro discípulo a presenciar aquele extraordinário fenômeno. Se levarmos em consideração o grau de parentesco, podemos supor que o Tiago referido na narração da transfiguração seja o outro, o irmão de Jesus, não o irmão de João.
Importa destacar aqui nesse contexto o significado de “irmão”. Com efeito, a palavra grega “adelphos”, que se traduz geralmente por irmão, também significava primo, meio-irmão, irmão de criação, ou seja, um parentesco bastante próximo, não necessariamente irmão consanguíneo. Sou levado a crer que o Tiago do trio que presenciou a configuração poderia ser este Tiago Adelphos, o menor, e não o filho de Zebedeu, irmão de João. Isso entra em choque com o texto de Mateus, mas os motivos que acima destaquei me levam a sustentar a segunda hipótese, com todo o respeito. Trata-se de uma questão, como já mencionei aqui em outras oportunidades, de que não se deve interpretar o texto bíblico de forma puramente literal, mas buscando elementos circunstanciais que auxiliem a uma compreensão mais ampla. Devemos considerar que, durante séculos, esses textos passaram pelas mãos de vários copistas e não se descarta a eventual possibilidade de ter havido pequenas alterações ou adaptações do texto primitivo.
Um outro ponto a se destacar no texto da narração da transfiguração é a metamorfose de Jesus ante a presença de dois personagens da tradição hebraica: Moisés e Elias. Eles representam, respectivamente, a Lei e os Profetas. Diz o narrador que a face de Jesus ficou resplendente igual ao sol e as suas roupas brancas tanto quanto a neve. Eu achei interessante essa comparação da roupa de Jesus com a neve, porque as pessoas daquela região geográfica onde os apóstolos viviam não têm familiaridade com a neve, sendo essa uma experiência mais comum na Europa. Pois bem, no texto original em grego, está escrito que as roupas de Jesus ficaram “leuka ôs tô phôs” e S. Jerônimo traduziu como sendo “alba sicut nix”. Bem, phôs em grego significa luz (phôs, photos). Então, conclui-se que S. Jerônimo utilizou uma metáfora européia para traduzir o original grego. Em lugar de “brancas como a neve” deveria ser “brancas como a luz”, assim faz mais sentido para a experiência do povo da Palestina.
Nesta narração, Jesus quis provar aos seus discípulos duas verdades que ele vinha pregando há muito tempo: primeiro, a sua origem divina; segundo, que os seus ensinamentos não são contrários à lei mosaica, como muitas vezes os fariseus o acusavam, mas ao contrário, Ele se apresentar ao lado de Moisés e de Elias, dialogando com eles, queria significar que havia pleno entendimento entre os respectivos ensinamentos. Os discípulos eram judeus e, certamente, também podiam ter ainda dúvidas dessas duas verdades. Afinal, o judaísmo farisaico interpretava a lei de uma forma tão própria e exclusiva que, à primeira vista, dava a impressão que o ensinamento de Jesus estava indo contra a sua tradição. Com aquela visão futurista, Jesus estava dando provas de que a sua doutrina era mesmo a continuidade daquilo que a tradição guardava como ensinamentos de Moisés e dos Profetas. E Jesus os recomendou fortemente que nada contassem sobre o que tinham visto, isso seria impossível de controlar em um grupo mais numeroso de assistentes.
Para nós, a figura do Cristo transfigurado é um constante e eloquente apelo a fim de que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, cuja antecipação Ele demonstrou naquele memorável cenário. Nossa missão é fazer com que Cristo se apresente através de nós, transfigurando-nos.
domingo, 9 de março de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DA QUARESMA - O PECADO E A GRAÇA - 09.03.2014
COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – O PECADO E A GRAÇA – 09.03.2014
Caros Confrades,
A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão, como em anos anteriores, a leitura do evangelho com o tema das tentações suportadas por Jesus Cristo, nos persuadindo e incentivando a vencer as tentações de cada dia, do mesmo modo que Jesus venceu as tentações que teve no deserto. Nas duas primeiras leituras, o tema em destaque é o pecado e a graça: em Gen 2, a figura simbólica do Éden e a legenda sobre a árvore da vida; no texto de Paulo a Romanos 5, o famoso trocadilho dele sobre a origem do pecado por um homem e a salvação também por um homem.
Apenas para recordar um tema que já foi abordado aqui outras vezes, temos no evangelho de Mateus a simbologia do numero 40. Dentro do contexto bíblico, o número 40 aparece sempre antecedendo um fato muito importante. Não significa literalmente a passagem de 40 dias, mas do tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Assim acontece, por exemplo, no período que antecede a Páscoa (quaresma) e no período que vai da Ressurreição até a Ascensão de Jesus.
Na primeira leitura (Gen 2, 7 – 3, 7), o texto traz aquela conhecida história sobre o “fruto proibido”, que teria sido ingerido por Eva e Adão, por influência da serpente. Como já destaquei em outros comentários, não se pode emprestar interpretação literal a essa legenda. De fato, ela é simbólica e pedagógica. O que devemos observar nessa narrativa é a oposição entre o estado de graça e o estado de pecado. A cultura hebraica deixou para toda a civilização ocidental, por força da tradição cristã, a noção de que o ser humano foi criado por Deus em estado de graça e somente depois veio o pecado obstruir a graça, sendo necessário o sacrifício de Cristo, para restabelecer a situação anterior. Esse é também o raciocínio feito por Paulo na carta a Romanos (5, 12-19), que abordarei a seguir. Curiosamente, um ateu e infiel, séculos depois, relançou essa mesma teoria, fora do contexto religioso. Trata-se da famosa teoria do “bom selvagem” (bon sauvage) de Rousseau. Essa idéia encontra-se totalmente radicada no pensamento do nosso povo, devido a séculos de ensinamento da catequese tradicional.
É também muito significativa a existência de narrativas similares entre povos de cultura não hebraica, como é o caso da epopéia do rei Gilgamesh, da Suméria, que teria vivido cerca de 2.000 anos antes de Cristo. Os sumérios tinham uma civilização bastante avançada e eles são considerados os inventores da escrita, com os moldes cuneiformes. Pois bem, esse rei seria um semideus, portanto, mortal, e fez todos os esforços em busca de conseguir a imortalidade. Segundo essa narrativa, um sobrevivente do dilúvio informou a Gilgamesh que existiria uma planta, que crescia no fundo do mar, e que conferia imortalidade a quem comesse do seu fruto. A muito custo, ele conseguiu chegar a essa planta, mas numa distração dele, uma serpente roubou-lhe a planta e ele não se tornou imortal. Agora, vejamos os pontos de coincidência: a árvore que dá imortalidade a quem come seu fruto e que existe no fundo do mar é semelhante à árvore do jardim do Éden bíblico, cujo fruto também teria esse poder e que a serpente induziu Eva e Adão a comerem. Outra: a época de 2.000 anos antes de Cristo é aproximadamente o tempo em que vivera Abraão, o primeiro patriarca hebreu. Como podemos concluir, a história da árvore cujo fruto tem o poder da imortalidade não existe apenas na Bíblia, portanto, não foi criação dos hebreus. A cultura suméria era superior à dos hebreus, então tudo indica que a lenda suméria de Gilgamesh teria sido aproveitada pelos hebreus, para a construção da narrativa do Éden.
Agora, levemos isso para o contexto paulino. Paulo era um judeu fervoroso, então ele conhecia bem a Torah e os seus ensinamentos, inclusive a história do paraíso do Éden. Ele compôs um raciocínio lógico bastante criativo, fazendo uma espécie de trocadilho entre a história da serpente e a redenção operada por Cristo, ao contrapor o pecado e a graça personificados nas figuras de Adão e de Cristo. “Como a falta de um só acarretou condenação para todos os homens, assim o ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida. ” (Rm 5, 18). Pela culpa de Adão, o pecado entrou no mundo; pela ação redentora de Cristo, a graça venceu o pecado. Por um homem (Adão), veio o pecado; por um homem (Cristo), veio a graça. Esse texto foi, durante muito tempo, um empecilho para que a teologia católica aceitasse a teoria da evolução das espécies. Ainda hoje, ele é motivo de inquietação por parte de teólogos que não conseguem ultrapassar a estrita literalidade. Mas, observemos o seguinte. Paulo escrevia aos romanos, numa época em que a filosofia grega tinha ampla aceitação e uso entre os intelectuais. Então, Paulo construiu um argumento teológico servindo-se da lógica filosófica grega, muito conceituada entre os romanos, para demonstrar que o cristianismo era uma religião compatível com a lógica deles e para, desse modo, conseguir persuadir esses intelectuais e obter a adesão deles às suas pregações. De fato, ele conseguiu muitos bons resultados em Roma, servindo-se dos seus conhecimentos da Torah judaica e da cultura grega. Ele foi habilidoso e convincente. E também, por óbvio, essa era também a sua fé. Porém, a partir do teólogo francês Teillard de Chardin, que demonstrou a compatibilidade entre as teorias científicas referentes à evolução das espécies e o pensamento cristão, desenvolvendo o evolucionismo cristão, uma forte corrente teológica passou a entender o mistério da redenção como parte de um processo evolutivo do ser humano em direção ao Criador, não como um processo de “retorno”. Ou seja, não houve um tempo anterior em que reinava absoluta a graça no ser humano e depois sobreveio o pecado. Ao contrário, o pecado se origina da própria natureza humana imperfeita e, assim sendo, a graça que Cristo veio nos trazer com a sua encarnação não configura um “restabelecimento” de uma situação anterior que fora perdida, mas uma situação nova, dentro do processo de aperfeiçoamento contínuo da própria criação divina.
O tema é verdadeiramente polêmico e a ortodoxia teológica tem dificuldades em lidar com isso. Essa questão, porém, já tem avançado nas discussões dos teólogos de mentalidade mais aberta, que buscam um encontro conciliatório entre as teorias científicas e a reflexão teológica. Mas não se pode esquecer que a doutrina oficial defende o “criacionismo”, isto é, a afirmação de que o ser humano foi criado em estado de perfeição e o pecado sobreveio depois. Por outro lado, não é recente a abordagem do tema entre os teólogos. Lembro bem de quando eu, pela primeira vez, me vi diante dessa polêmica, ao ler um livro do frade carmelita Carlos Mesters, em meados dos anos 70, com o título “Paraíso terrestre: saudade ou esperança”. É uma leitura que eu sugiro aos Colegas que queiram fazer um aprofundamento sobre o tema. Na obra, Carlos Mesters defende a idéia de que, raciocinando dentro da lógica divina da criação, seria desonroso para Deus que uma sua criatura feita por Ele em estado de perfeição fosse acometida por um deslize tão grande, a ponto de precisar de um “remédio” tão potente, que é a redenção por Cristo. Ficaria a suspeita de que Deus teria falhado na criação do homem e foi preciso lançar mão de um “plano B” para que a ordem das coisas fosse restabelecida. Convenhamos, isso é inimaginável para Deus. Assim, a narração bíblica do jardim do Éden vai na contramão dessa lógica divina da criação, devendo-se admitir como mais coerente com o próprio conceito de Deus que o mundo criado (e dentro dele também o ser humano) se encontre num processo constante de evolução e aperfeiçoamento.
Portanto, nessa nova linha de raciocínio, não teríamos a sequência graça original-pecado original-nova graça cristã, mas apenas natureza humana originalmente imperfeita (e por isso passível de ser atingida pelo pecado) e graça divina trazida por Cristo, com a qual o ser humano tem a ajuda suficiente para superar as imperfeições naturais e se desenvolver cada vez mais. Ao desenvolver-se, por via de consequência, o ser humano leva para toda a criação esse processo evolutivo. Aí, sim, vale a observação de Paulo em Romanos 5, 20: “onde abundou o pecado, superabundou a graça.” Esse trecho, que não está incluído na leitura deste domingo, é exatamente o versículo seguinte de onde termina o texto lido na liturgia.
Não abordarei o tema das tentações de Jesus, que já foi tratado no comentário do dia 17.02.2013. Se algum Colega quiser ler sobre o assunto, sugiro que recupere o referido comentário.
Caros Confrades,
A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão, como em anos anteriores, a leitura do evangelho com o tema das tentações suportadas por Jesus Cristo, nos persuadindo e incentivando a vencer as tentações de cada dia, do mesmo modo que Jesus venceu as tentações que teve no deserto. Nas duas primeiras leituras, o tema em destaque é o pecado e a graça: em Gen 2, a figura simbólica do Éden e a legenda sobre a árvore da vida; no texto de Paulo a Romanos 5, o famoso trocadilho dele sobre a origem do pecado por um homem e a salvação também por um homem.
Apenas para recordar um tema que já foi abordado aqui outras vezes, temos no evangelho de Mateus a simbologia do numero 40. Dentro do contexto bíblico, o número 40 aparece sempre antecedendo um fato muito importante. Não significa literalmente a passagem de 40 dias, mas do tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Assim acontece, por exemplo, no período que antecede a Páscoa (quaresma) e no período que vai da Ressurreição até a Ascensão de Jesus.
Na primeira leitura (Gen 2, 7 – 3, 7), o texto traz aquela conhecida história sobre o “fruto proibido”, que teria sido ingerido por Eva e Adão, por influência da serpente. Como já destaquei em outros comentários, não se pode emprestar interpretação literal a essa legenda. De fato, ela é simbólica e pedagógica. O que devemos observar nessa narrativa é a oposição entre o estado de graça e o estado de pecado. A cultura hebraica deixou para toda a civilização ocidental, por força da tradição cristã, a noção de que o ser humano foi criado por Deus em estado de graça e somente depois veio o pecado obstruir a graça, sendo necessário o sacrifício de Cristo, para restabelecer a situação anterior. Esse é também o raciocínio feito por Paulo na carta a Romanos (5, 12-19), que abordarei a seguir. Curiosamente, um ateu e infiel, séculos depois, relançou essa mesma teoria, fora do contexto religioso. Trata-se da famosa teoria do “bom selvagem” (bon sauvage) de Rousseau. Essa idéia encontra-se totalmente radicada no pensamento do nosso povo, devido a séculos de ensinamento da catequese tradicional.
É também muito significativa a existência de narrativas similares entre povos de cultura não hebraica, como é o caso da epopéia do rei Gilgamesh, da Suméria, que teria vivido cerca de 2.000 anos antes de Cristo. Os sumérios tinham uma civilização bastante avançada e eles são considerados os inventores da escrita, com os moldes cuneiformes. Pois bem, esse rei seria um semideus, portanto, mortal, e fez todos os esforços em busca de conseguir a imortalidade. Segundo essa narrativa, um sobrevivente do dilúvio informou a Gilgamesh que existiria uma planta, que crescia no fundo do mar, e que conferia imortalidade a quem comesse do seu fruto. A muito custo, ele conseguiu chegar a essa planta, mas numa distração dele, uma serpente roubou-lhe a planta e ele não se tornou imortal. Agora, vejamos os pontos de coincidência: a árvore que dá imortalidade a quem come seu fruto e que existe no fundo do mar é semelhante à árvore do jardim do Éden bíblico, cujo fruto também teria esse poder e que a serpente induziu Eva e Adão a comerem. Outra: a época de 2.000 anos antes de Cristo é aproximadamente o tempo em que vivera Abraão, o primeiro patriarca hebreu. Como podemos concluir, a história da árvore cujo fruto tem o poder da imortalidade não existe apenas na Bíblia, portanto, não foi criação dos hebreus. A cultura suméria era superior à dos hebreus, então tudo indica que a lenda suméria de Gilgamesh teria sido aproveitada pelos hebreus, para a construção da narrativa do Éden.
Agora, levemos isso para o contexto paulino. Paulo era um judeu fervoroso, então ele conhecia bem a Torah e os seus ensinamentos, inclusive a história do paraíso do Éden. Ele compôs um raciocínio lógico bastante criativo, fazendo uma espécie de trocadilho entre a história da serpente e a redenção operada por Cristo, ao contrapor o pecado e a graça personificados nas figuras de Adão e de Cristo. “Como a falta de um só acarretou condenação para todos os homens, assim o ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida. ” (Rm 5, 18). Pela culpa de Adão, o pecado entrou no mundo; pela ação redentora de Cristo, a graça venceu o pecado. Por um homem (Adão), veio o pecado; por um homem (Cristo), veio a graça. Esse texto foi, durante muito tempo, um empecilho para que a teologia católica aceitasse a teoria da evolução das espécies. Ainda hoje, ele é motivo de inquietação por parte de teólogos que não conseguem ultrapassar a estrita literalidade. Mas, observemos o seguinte. Paulo escrevia aos romanos, numa época em que a filosofia grega tinha ampla aceitação e uso entre os intelectuais. Então, Paulo construiu um argumento teológico servindo-se da lógica filosófica grega, muito conceituada entre os romanos, para demonstrar que o cristianismo era uma religião compatível com a lógica deles e para, desse modo, conseguir persuadir esses intelectuais e obter a adesão deles às suas pregações. De fato, ele conseguiu muitos bons resultados em Roma, servindo-se dos seus conhecimentos da Torah judaica e da cultura grega. Ele foi habilidoso e convincente. E também, por óbvio, essa era também a sua fé. Porém, a partir do teólogo francês Teillard de Chardin, que demonstrou a compatibilidade entre as teorias científicas referentes à evolução das espécies e o pensamento cristão, desenvolvendo o evolucionismo cristão, uma forte corrente teológica passou a entender o mistério da redenção como parte de um processo evolutivo do ser humano em direção ao Criador, não como um processo de “retorno”. Ou seja, não houve um tempo anterior em que reinava absoluta a graça no ser humano e depois sobreveio o pecado. Ao contrário, o pecado se origina da própria natureza humana imperfeita e, assim sendo, a graça que Cristo veio nos trazer com a sua encarnação não configura um “restabelecimento” de uma situação anterior que fora perdida, mas uma situação nova, dentro do processo de aperfeiçoamento contínuo da própria criação divina.
O tema é verdadeiramente polêmico e a ortodoxia teológica tem dificuldades em lidar com isso. Essa questão, porém, já tem avançado nas discussões dos teólogos de mentalidade mais aberta, que buscam um encontro conciliatório entre as teorias científicas e a reflexão teológica. Mas não se pode esquecer que a doutrina oficial defende o “criacionismo”, isto é, a afirmação de que o ser humano foi criado em estado de perfeição e o pecado sobreveio depois. Por outro lado, não é recente a abordagem do tema entre os teólogos. Lembro bem de quando eu, pela primeira vez, me vi diante dessa polêmica, ao ler um livro do frade carmelita Carlos Mesters, em meados dos anos 70, com o título “Paraíso terrestre: saudade ou esperança”. É uma leitura que eu sugiro aos Colegas que queiram fazer um aprofundamento sobre o tema. Na obra, Carlos Mesters defende a idéia de que, raciocinando dentro da lógica divina da criação, seria desonroso para Deus que uma sua criatura feita por Ele em estado de perfeição fosse acometida por um deslize tão grande, a ponto de precisar de um “remédio” tão potente, que é a redenção por Cristo. Ficaria a suspeita de que Deus teria falhado na criação do homem e foi preciso lançar mão de um “plano B” para que a ordem das coisas fosse restabelecida. Convenhamos, isso é inimaginável para Deus. Assim, a narração bíblica do jardim do Éden vai na contramão dessa lógica divina da criação, devendo-se admitir como mais coerente com o próprio conceito de Deus que o mundo criado (e dentro dele também o ser humano) se encontre num processo constante de evolução e aperfeiçoamento.
Portanto, nessa nova linha de raciocínio, não teríamos a sequência graça original-pecado original-nova graça cristã, mas apenas natureza humana originalmente imperfeita (e por isso passível de ser atingida pelo pecado) e graça divina trazida por Cristo, com a qual o ser humano tem a ajuda suficiente para superar as imperfeições naturais e se desenvolver cada vez mais. Ao desenvolver-se, por via de consequência, o ser humano leva para toda a criação esse processo evolutivo. Aí, sim, vale a observação de Paulo em Romanos 5, 20: “onde abundou o pecado, superabundou a graça.” Esse trecho, que não está incluído na leitura deste domingo, é exatamente o versículo seguinte de onde termina o texto lido na liturgia.
Não abordarei o tema das tentações de Jesus, que já foi tratado no comentário do dia 17.02.2013. Se algum Colega quiser ler sobre o assunto, sugiro que recupere o referido comentário.
domingo, 2 de março de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 8º DOMINGO COMUM - PROVIDÊNCIA DIVINA - 02.03.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 8º DOMINGO COMUM – PROVIDÊNCIA DIVINA – 02.03.2014
Caros Confrades,
A demora da chegada do período quaresmal, neste ano de 2014, aumenta o número de domingos comuns nesta fase do ano litúrgico. Hoje, temos o oitavo e último domingo comum antes da quaresma e o tema litúrgico é a providência divina. Sempre que leio esse trecho do evangelho de hoje (Mt 6, 24-34), lembro de uma frase, que o Frei Timóteo gostava de pronunciar: “sufficit diei militiam suam”, isto é, basta a cada dia o seu trabalho, o que subentende que não devemos nos preocupar com o dia de amanhã. O amanhã pertence à providência divina.
Na primeira leitura, temos um conhecido trecho do profeta Isaías, por ele escrito no tempo do cativeiro da Babilônia, onde o povo judeu se encontrava distante de sua terra e se sentia abandonado por Javeh. O profeta tenta revitalizar o ânimo do povo fazendo um paralelo entre o amor divino e o amor materno. Sabemos que não existe relação mais forte, na vida humana, do que aquela que une a mãe e os filhos. Não dá nem para comparar com o amor de pai. Quem já viveu essa experiência com a própria mãe e passou a ter, depois, a experiência de ser pai sabe que a ligação do filho com a mãe é muito intensa, visceral mesmo. Então, o profeta Isaias se serve dessa experiência humana para explicar ao povo que o amor de Deus não é só amor de pai e também nem é só amor de mãe, é muito mais do que tudo isso. “Acaso pode a mulher esquecer-se do filho pequeno, a ponto de não ter pena do fruto de seu ventre? Se ela se esquecer, eu, porém, não me esquecerei de ti.” (Is 49, 15) Ainda que, por mais absurdo que isso possa parecer, aconteça de uma mãe renegar um filho e esquecê-lo, mesmo assim Javeh não esquecerá o seu povo. Cativos e maldizentes, os judeus amargavam o castigo da sua falta de lealdade com Javeh. Mas o castigo não significa diminuição do amor, assim como quando a mãe ou pai castigam o filho (castigavam, no tempo em que não isso era proibido!) não implicava que eles deixassem de amá-lo.
Na carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo aborda o tema da providência divina sob outro viés, o da fidelidade. Paulo estava sendo perseguido por causa do evangelho que pregava e temia receber alguma punição, em decorrência das denúncias dos inimigos. Então, diz ele, eu não tenho medo de ser julgado por nenhum tribunal humano. Primeiro, porque a sua consciência não o acusava de nada. Segundo, porque na qualidade de administrador da fé cristã, como pregador e missionário que era, ele confiava totalmente no julgamento divino apenas. Certamente, alguns amigos dele viviam alertando-o sobre possíveis ameaças. Paulo pregava nas reuniões secretas dos cristãos primitivos, naquele tempo em que o cristianismo era perseguido e considerado inimigo do império romano. Paulo viveu na época do imperador Nero, aquele que mandou incendiar Roma e depois colocou a culpa nos cristãos. Ou seja, Paulo vivia em constante perigo. Para ele, o amanhã era sempre uma incógnita, ele tinha consciência dos riscos que corria, mas isso não o intimidava na sua tarefa de pregar o evangelho. Então, ele confiava totalmente na divina providência. “É verdade que a minha consciência não me acusa de nada. Mas não é por isso que eu posso ser considerado justo. Quem me julga é o Senhor. ” (1Cor 4, 4) Paulo servia a Deus na fidelidade do seu coração e confiava que somente Ele poderia julgar suas ações. “Deus é fiel” (1Cor 1,18) é um mote paulino muito citado, sobretudo pelos fiéis das igrejas não católicas, reproduzindo essa verdade proclamada pelo apóstolo Paulo e que se tornou tão popular, até tornar-se adesivo posto nos veículos e ainda nome usado como título de empresa comercial.
Nesse contexto, a liturgia nos traz, na leitura do evangelho de Marteus (6, 24-34), o conhecido trecho da advertência de Cristo de que “ninguém pode servir a dois senhores”. “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24). Essa palavra “dinheiro” empregada nessa frase não é bem a tradução do termo original, é um arranjo literário. A palavra usada por Cristo é o termo aramaico “mamona”, que no texto grego não foi traduzido e também na vulgada latina, São Jerônimo fez tal como o autor grego, não traduziu, transliterando a palavra “mammona”: “Non potestis Deo servire et mammonae”. Provavelmente, os Colegas se lembram que, antigamente, se lia assim essa frase: não podeis servir a Deus e à mamona, o que ficava sem sentido em português, daí porque a CNBB optou em traduzir por “dinheiro”. De acordo com o significado original da palavra “mamona” no aramaico, esse termo se refere não propriamente à moeda, ao dinheiro, mas tem alcance bem mais amplo, referindo-se à ambição humana em geral pelas coisas materiais e também pelo poder e prestígio sociais. A glória humana, a fama, o poder político e econômico, a avareza, o desejo incontrolado de possuir sempre mais, tudo isso está contido no conceito de “mamona”. Essas atitudes, bastante comuns na vida social, além de representarem vaidade em excesso, também indicam falta de confiança na providência. A ambição de ter sempre mais é um sintoma de preocupação para com o futuro incerto e isso significa a falta de fé na divina providência. Esse desejo humano desmedido chega a ser tão dilacerante que toma o lugar que deveria ser ocupado por Deus na vida da pessoa. Por isso, Cristo adverte para não nos deixarmos inebriar pelas “mamonas” da vida.
E então, Ele parte para exemplificar, de modo a deixar bem clara a sua idéia. Primeiro, diz: não vos preocupeis com o que ireis comer amanhã, ou beber, ou vestir. São Francisco interpretou esse frase ao extremo, quando escreveu na Regra franciscana “que os frades não recebam dinheiro ou pecúnia”, nem deviam ter duas túnicas, nem duas sandálias... portanto, deixem de lado a “mamona”. Antigamente como hoje, ter dinheiro significa ter poder material e isso não combina com o ensinamento de Cristo. Dentro do nosso modo de pensar capitalista, fica parecendo que Cristo está mandando esbanjar tudo o que se possui, porque amanhã Deus proverá mais. Não é bem assim. Por isso, não podemos fazer interpretações literais fundamentalistas, mas devemos compreender de forma adequada o que Cristo ensinou. Não é a posse simples de bens materiais que acarreta o sentido da “mamona”, mas o apego a esses bens. Se os bens possuídos por alguém forem de origem ilícita, então nem se duvida da sua desconformidade com a mensagem cristã, ainda que esses bens sejam utilizados para fins caritativos. Porém, se os bens possuídos são resultado de trabalho honesto e administrados com responsabilidade, eles só se tornarão “mamona” quando o seu possuidor der a eles maior valor do que dá ao próximo, de modo a recusar-se a ajudar quem necessita ou passar a utilizá-los unicamente para o próprio deleite, conforto e bem estar. Podemos voltar aqui à carta de Paulo (segunda leitura), quando ele diz que somos “administradores” dos dons de Deus. E, nessa condição, temos o dever de sermos fiéis, assim como Deus é fiel para conosco.
Descendo a detalhes em exemplos, Cristo faz uso novamente da sua magistral pedagogia para aquele grupo de pessoas pouco instruídas: vocês estão preocupados com a comida de amanhã? Pois olhem para os pássaros, que não semeiam nem ceifam, no entanto, o alimento nunca lhes falta. Estão preocupados com o que vão vestir amanhã? Pois olhem para os lírios que vestem roupas tão nobres, que nenhum rei jamais vestiu. O Pai proporciona isso a eles. Essas preocupações são típicas dos pagãos, que não creem na providência. “Os pagãos é que procuram essas coisas. Vosso Pai, que está nos céus, sabe que precisais de tudo isso. ” (Mt 6, 32) E então Ele faz o arremate conclusivo dessa preciosa lição: “buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo. ” (Mt 6, 33). O Reino de Deus é o oposto da “mamona”. Quem escolhe o Reino deve ter este Reino no coração e, por isso, não pode prestar culto à “mamona”. Quem está com a “mamona” no coração, não pode ter o Reino de Deus, porque são duas realidades incompatíveis. Quem tem a “mamona” no coração, não confia na providência e por isso precisa cuidar de tudo por si só e assim mesmo não conseguirá o seu intento. Quem acolhe no coração o Reino de Deus, terá como recompensa o recebimento de tudo do que necessita, sem ter de correr atrás, pois tudo será “providenciado”. A fé nessa verdade é a grande fonte de alegria do cristão.
Caros Confrades,
A demora da chegada do período quaresmal, neste ano de 2014, aumenta o número de domingos comuns nesta fase do ano litúrgico. Hoje, temos o oitavo e último domingo comum antes da quaresma e o tema litúrgico é a providência divina. Sempre que leio esse trecho do evangelho de hoje (Mt 6, 24-34), lembro de uma frase, que o Frei Timóteo gostava de pronunciar: “sufficit diei militiam suam”, isto é, basta a cada dia o seu trabalho, o que subentende que não devemos nos preocupar com o dia de amanhã. O amanhã pertence à providência divina.
Na primeira leitura, temos um conhecido trecho do profeta Isaías, por ele escrito no tempo do cativeiro da Babilônia, onde o povo judeu se encontrava distante de sua terra e se sentia abandonado por Javeh. O profeta tenta revitalizar o ânimo do povo fazendo um paralelo entre o amor divino e o amor materno. Sabemos que não existe relação mais forte, na vida humana, do que aquela que une a mãe e os filhos. Não dá nem para comparar com o amor de pai. Quem já viveu essa experiência com a própria mãe e passou a ter, depois, a experiência de ser pai sabe que a ligação do filho com a mãe é muito intensa, visceral mesmo. Então, o profeta Isaias se serve dessa experiência humana para explicar ao povo que o amor de Deus não é só amor de pai e também nem é só amor de mãe, é muito mais do que tudo isso. “Acaso pode a mulher esquecer-se do filho pequeno, a ponto de não ter pena do fruto de seu ventre? Se ela se esquecer, eu, porém, não me esquecerei de ti.” (Is 49, 15) Ainda que, por mais absurdo que isso possa parecer, aconteça de uma mãe renegar um filho e esquecê-lo, mesmo assim Javeh não esquecerá o seu povo. Cativos e maldizentes, os judeus amargavam o castigo da sua falta de lealdade com Javeh. Mas o castigo não significa diminuição do amor, assim como quando a mãe ou pai castigam o filho (castigavam, no tempo em que não isso era proibido!) não implicava que eles deixassem de amá-lo.
Na carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo aborda o tema da providência divina sob outro viés, o da fidelidade. Paulo estava sendo perseguido por causa do evangelho que pregava e temia receber alguma punição, em decorrência das denúncias dos inimigos. Então, diz ele, eu não tenho medo de ser julgado por nenhum tribunal humano. Primeiro, porque a sua consciência não o acusava de nada. Segundo, porque na qualidade de administrador da fé cristã, como pregador e missionário que era, ele confiava totalmente no julgamento divino apenas. Certamente, alguns amigos dele viviam alertando-o sobre possíveis ameaças. Paulo pregava nas reuniões secretas dos cristãos primitivos, naquele tempo em que o cristianismo era perseguido e considerado inimigo do império romano. Paulo viveu na época do imperador Nero, aquele que mandou incendiar Roma e depois colocou a culpa nos cristãos. Ou seja, Paulo vivia em constante perigo. Para ele, o amanhã era sempre uma incógnita, ele tinha consciência dos riscos que corria, mas isso não o intimidava na sua tarefa de pregar o evangelho. Então, ele confiava totalmente na divina providência. “É verdade que a minha consciência não me acusa de nada. Mas não é por isso que eu posso ser considerado justo. Quem me julga é o Senhor. ” (1Cor 4, 4) Paulo servia a Deus na fidelidade do seu coração e confiava que somente Ele poderia julgar suas ações. “Deus é fiel” (1Cor 1,18) é um mote paulino muito citado, sobretudo pelos fiéis das igrejas não católicas, reproduzindo essa verdade proclamada pelo apóstolo Paulo e que se tornou tão popular, até tornar-se adesivo posto nos veículos e ainda nome usado como título de empresa comercial.
Nesse contexto, a liturgia nos traz, na leitura do evangelho de Marteus (6, 24-34), o conhecido trecho da advertência de Cristo de que “ninguém pode servir a dois senhores”. “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24). Essa palavra “dinheiro” empregada nessa frase não é bem a tradução do termo original, é um arranjo literário. A palavra usada por Cristo é o termo aramaico “mamona”, que no texto grego não foi traduzido e também na vulgada latina, São Jerônimo fez tal como o autor grego, não traduziu, transliterando a palavra “mammona”: “Non potestis Deo servire et mammonae”. Provavelmente, os Colegas se lembram que, antigamente, se lia assim essa frase: não podeis servir a Deus e à mamona, o que ficava sem sentido em português, daí porque a CNBB optou em traduzir por “dinheiro”. De acordo com o significado original da palavra “mamona” no aramaico, esse termo se refere não propriamente à moeda, ao dinheiro, mas tem alcance bem mais amplo, referindo-se à ambição humana em geral pelas coisas materiais e também pelo poder e prestígio sociais. A glória humana, a fama, o poder político e econômico, a avareza, o desejo incontrolado de possuir sempre mais, tudo isso está contido no conceito de “mamona”. Essas atitudes, bastante comuns na vida social, além de representarem vaidade em excesso, também indicam falta de confiança na providência. A ambição de ter sempre mais é um sintoma de preocupação para com o futuro incerto e isso significa a falta de fé na divina providência. Esse desejo humano desmedido chega a ser tão dilacerante que toma o lugar que deveria ser ocupado por Deus na vida da pessoa. Por isso, Cristo adverte para não nos deixarmos inebriar pelas “mamonas” da vida.
E então, Ele parte para exemplificar, de modo a deixar bem clara a sua idéia. Primeiro, diz: não vos preocupeis com o que ireis comer amanhã, ou beber, ou vestir. São Francisco interpretou esse frase ao extremo, quando escreveu na Regra franciscana “que os frades não recebam dinheiro ou pecúnia”, nem deviam ter duas túnicas, nem duas sandálias... portanto, deixem de lado a “mamona”. Antigamente como hoje, ter dinheiro significa ter poder material e isso não combina com o ensinamento de Cristo. Dentro do nosso modo de pensar capitalista, fica parecendo que Cristo está mandando esbanjar tudo o que se possui, porque amanhã Deus proverá mais. Não é bem assim. Por isso, não podemos fazer interpretações literais fundamentalistas, mas devemos compreender de forma adequada o que Cristo ensinou. Não é a posse simples de bens materiais que acarreta o sentido da “mamona”, mas o apego a esses bens. Se os bens possuídos por alguém forem de origem ilícita, então nem se duvida da sua desconformidade com a mensagem cristã, ainda que esses bens sejam utilizados para fins caritativos. Porém, se os bens possuídos são resultado de trabalho honesto e administrados com responsabilidade, eles só se tornarão “mamona” quando o seu possuidor der a eles maior valor do que dá ao próximo, de modo a recusar-se a ajudar quem necessita ou passar a utilizá-los unicamente para o próprio deleite, conforto e bem estar. Podemos voltar aqui à carta de Paulo (segunda leitura), quando ele diz que somos “administradores” dos dons de Deus. E, nessa condição, temos o dever de sermos fiéis, assim como Deus é fiel para conosco.
Descendo a detalhes em exemplos, Cristo faz uso novamente da sua magistral pedagogia para aquele grupo de pessoas pouco instruídas: vocês estão preocupados com a comida de amanhã? Pois olhem para os pássaros, que não semeiam nem ceifam, no entanto, o alimento nunca lhes falta. Estão preocupados com o que vão vestir amanhã? Pois olhem para os lírios que vestem roupas tão nobres, que nenhum rei jamais vestiu. O Pai proporciona isso a eles. Essas preocupações são típicas dos pagãos, que não creem na providência. “Os pagãos é que procuram essas coisas. Vosso Pai, que está nos céus, sabe que precisais de tudo isso. ” (Mt 6, 32) E então Ele faz o arremate conclusivo dessa preciosa lição: “buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo. ” (Mt 6, 33). O Reino de Deus é o oposto da “mamona”. Quem escolhe o Reino deve ter este Reino no coração e, por isso, não pode prestar culto à “mamona”. Quem está com a “mamona” no coração, não pode ter o Reino de Deus, porque são duas realidades incompatíveis. Quem tem a “mamona” no coração, não confia na providência e por isso precisa cuidar de tudo por si só e assim mesmo não conseguirá o seu intento. Quem acolhe no coração o Reino de Deus, terá como recompensa o recebimento de tudo do que necessita, sem ter de correr atrás, pois tudo será “providenciado”. A fé nessa verdade é a grande fonte de alegria do cristão.
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