COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – O PECADO E A GRAÇA – 09.03.2014
Caros Confrades,
A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão, como em anos anteriores, a leitura do evangelho com o tema das tentações suportadas por Jesus Cristo, nos persuadindo e incentivando a vencer as tentações de cada dia, do mesmo modo que Jesus venceu as tentações que teve no deserto. Nas duas primeiras leituras, o tema em destaque é o pecado e a graça: em Gen 2, a figura simbólica do Éden e a legenda sobre a árvore da vida; no texto de Paulo a Romanos 5, o famoso trocadilho dele sobre a origem do pecado por um homem e a salvação também por um homem.
Apenas para recordar um tema que já foi abordado aqui outras vezes, temos no evangelho de Mateus a simbologia do numero 40. Dentro do contexto bíblico, o número 40 aparece sempre antecedendo um fato muito importante. Não significa literalmente a passagem de 40 dias, mas do tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Assim acontece, por exemplo, no período que antecede a Páscoa (quaresma) e no período que vai da Ressurreição até a Ascensão de Jesus.
Na primeira leitura (Gen 2, 7 – 3, 7), o texto traz aquela conhecida história sobre o “fruto proibido”, que teria sido ingerido por Eva e Adão, por influência da serpente. Como já destaquei em outros comentários, não se pode emprestar interpretação literal a essa legenda. De fato, ela é simbólica e pedagógica. O que devemos observar nessa narrativa é a oposição entre o estado de graça e o estado de pecado. A cultura hebraica deixou para toda a civilização ocidental, por força da tradição cristã, a noção de que o ser humano foi criado por Deus em estado de graça e somente depois veio o pecado obstruir a graça, sendo necessário o sacrifício de Cristo, para restabelecer a situação anterior. Esse é também o raciocínio feito por Paulo na carta a Romanos (5, 12-19), que abordarei a seguir. Curiosamente, um ateu e infiel, séculos depois, relançou essa mesma teoria, fora do contexto religioso. Trata-se da famosa teoria do “bom selvagem” (bon sauvage) de Rousseau. Essa idéia encontra-se totalmente radicada no pensamento do nosso povo, devido a séculos de ensinamento da catequese tradicional.
É também muito significativa a existência de narrativas similares entre povos de cultura não hebraica, como é o caso da epopéia do rei Gilgamesh, da Suméria, que teria vivido cerca de 2.000 anos antes de Cristo. Os sumérios tinham uma civilização bastante avançada e eles são considerados os inventores da escrita, com os moldes cuneiformes. Pois bem, esse rei seria um semideus, portanto, mortal, e fez todos os esforços em busca de conseguir a imortalidade. Segundo essa narrativa, um sobrevivente do dilúvio informou a Gilgamesh que existiria uma planta, que crescia no fundo do mar, e que conferia imortalidade a quem comesse do seu fruto. A muito custo, ele conseguiu chegar a essa planta, mas numa distração dele, uma serpente roubou-lhe a planta e ele não se tornou imortal. Agora, vejamos os pontos de coincidência: a árvore que dá imortalidade a quem come seu fruto e que existe no fundo do mar é semelhante à árvore do jardim do Éden bíblico, cujo fruto também teria esse poder e que a serpente induziu Eva e Adão a comerem. Outra: a época de 2.000 anos antes de Cristo é aproximadamente o tempo em que vivera Abraão, o primeiro patriarca hebreu. Como podemos concluir, a história da árvore cujo fruto tem o poder da imortalidade não existe apenas na Bíblia, portanto, não foi criação dos hebreus. A cultura suméria era superior à dos hebreus, então tudo indica que a lenda suméria de Gilgamesh teria sido aproveitada pelos hebreus, para a construção da narrativa do Éden.
Agora, levemos isso para o contexto paulino. Paulo era um judeu fervoroso, então ele conhecia bem a Torah e os seus ensinamentos, inclusive a história do paraíso do Éden. Ele compôs um raciocínio lógico bastante criativo, fazendo uma espécie de trocadilho entre a história da serpente e a redenção operada por Cristo, ao contrapor o pecado e a graça personificados nas figuras de Adão e de Cristo. “Como a falta de um só acarretou condenação para todos os homens, assim o ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida. ” (Rm 5, 18). Pela culpa de Adão, o pecado entrou no mundo; pela ação redentora de Cristo, a graça venceu o pecado. Por um homem (Adão), veio o pecado; por um homem (Cristo), veio a graça. Esse texto foi, durante muito tempo, um empecilho para que a teologia católica aceitasse a teoria da evolução das espécies. Ainda hoje, ele é motivo de inquietação por parte de teólogos que não conseguem ultrapassar a estrita literalidade. Mas, observemos o seguinte. Paulo escrevia aos romanos, numa época em que a filosofia grega tinha ampla aceitação e uso entre os intelectuais. Então, Paulo construiu um argumento teológico servindo-se da lógica filosófica grega, muito conceituada entre os romanos, para demonstrar que o cristianismo era uma religião compatível com a lógica deles e para, desse modo, conseguir persuadir esses intelectuais e obter a adesão deles às suas pregações. De fato, ele conseguiu muitos bons resultados em Roma, servindo-se dos seus conhecimentos da Torah judaica e da cultura grega. Ele foi habilidoso e convincente. E também, por óbvio, essa era também a sua fé. Porém, a partir do teólogo francês Teillard de Chardin, que demonstrou a compatibilidade entre as teorias científicas referentes à evolução das espécies e o pensamento cristão, desenvolvendo o evolucionismo cristão, uma forte corrente teológica passou a entender o mistério da redenção como parte de um processo evolutivo do ser humano em direção ao Criador, não como um processo de “retorno”. Ou seja, não houve um tempo anterior em que reinava absoluta a graça no ser humano e depois sobreveio o pecado. Ao contrário, o pecado se origina da própria natureza humana imperfeita e, assim sendo, a graça que Cristo veio nos trazer com a sua encarnação não configura um “restabelecimento” de uma situação anterior que fora perdida, mas uma situação nova, dentro do processo de aperfeiçoamento contínuo da própria criação divina.
O tema é verdadeiramente polêmico e a ortodoxia teológica tem dificuldades em lidar com isso. Essa questão, porém, já tem avançado nas discussões dos teólogos de mentalidade mais aberta, que buscam um encontro conciliatório entre as teorias científicas e a reflexão teológica. Mas não se pode esquecer que a doutrina oficial defende o “criacionismo”, isto é, a afirmação de que o ser humano foi criado em estado de perfeição e o pecado sobreveio depois. Por outro lado, não é recente a abordagem do tema entre os teólogos. Lembro bem de quando eu, pela primeira vez, me vi diante dessa polêmica, ao ler um livro do frade carmelita Carlos Mesters, em meados dos anos 70, com o título “Paraíso terrestre: saudade ou esperança”. É uma leitura que eu sugiro aos Colegas que queiram fazer um aprofundamento sobre o tema. Na obra, Carlos Mesters defende a idéia de que, raciocinando dentro da lógica divina da criação, seria desonroso para Deus que uma sua criatura feita por Ele em estado de perfeição fosse acometida por um deslize tão grande, a ponto de precisar de um “remédio” tão potente, que é a redenção por Cristo. Ficaria a suspeita de que Deus teria falhado na criação do homem e foi preciso lançar mão de um “plano B” para que a ordem das coisas fosse restabelecida. Convenhamos, isso é inimaginável para Deus. Assim, a narração bíblica do jardim do Éden vai na contramão dessa lógica divina da criação, devendo-se admitir como mais coerente com o próprio conceito de Deus que o mundo criado (e dentro dele também o ser humano) se encontre num processo constante de evolução e aperfeiçoamento.
Portanto, nessa nova linha de raciocínio, não teríamos a sequência graça original-pecado original-nova graça cristã, mas apenas natureza humana originalmente imperfeita (e por isso passível de ser atingida pelo pecado) e graça divina trazida por Cristo, com a qual o ser humano tem a ajuda suficiente para superar as imperfeições naturais e se desenvolver cada vez mais. Ao desenvolver-se, por via de consequência, o ser humano leva para toda a criação esse processo evolutivo. Aí, sim, vale a observação de Paulo em Romanos 5, 20: “onde abundou o pecado, superabundou a graça.” Esse trecho, que não está incluído na leitura deste domingo, é exatamente o versículo seguinte de onde termina o texto lido na liturgia.
Não abordarei o tema das tentações de Jesus, que já foi tratado no comentário do dia 17.02.2013. Se algum Colega quiser ler sobre o assunto, sugiro que recupere o referido comentário.
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