domingo, 30 de março de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA QUARESMA - A CURA DO CEGO - 30.03.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – A CURA DO CEGO – 30.03.2014

Caros Confrades,

Neste 4º domingo da quaresma, a liturgia traz um outro tema relacionado com a água, assim como foi no domingo passado, com o poço de Jacó. Hoje, lemos o caso do cego a quem Jesus mandou ir lavar-se na piscina de Siloé (o Enviado), ficando assim curado da sua deficiência. O propósito dessas leituras relacionadas com o elemento água relembra uma antiga tradição dos primórdios do cristianismo, quando os catecúmenos se preparavam para receber o batismo na vigília pascal, chamando a atenção para o simbolismo da água, que lava o corpo e purifica também o espírito.

Na primeira leitura, do livro de Samuel (1Sam 16, 1-13), narra-se a unção de Davi como futuro rei de Israel. Samuel foi mandado por Javé para ir até a casa de Jessé e ali ungir um dos seus filhos, o qual Samuel não sabia quem era. Chegando lá, ficou tentando adivinhar e passou cada um sem que Javeh confirmasse nenhum. Mas a sua viagem até lá não poderia ser em vão, faltava um dos filhos de Jessé, justamente o caçula, o escolhido. Davi foi ungido, mas não se tornou logo rei, porque então Saul ainda vivia. Somente após a morte deste, Davi foi aclamado rei, porém, teve de enfrentar a disputa com Isboset, um descendente de Saul, que também fora aclamado rei, causando a divisão do povo. Após a morte deste e com grande habilidade, Davi conseguiu reunir todos os israelitas sob o seu comando, unificando o povo de Deus. Davi é um dos personagens centrais do Antigo Testamento, pela escolha especial de Javeh sobre ele, pelos grandiosos feitos realizados, pela sabedoria que ele sempre demonstrou, de modo que todos os profetas anunciaram que o Messias surgiria de alguém descendente de Davi. E assim o foi. O que não significa que ele nunca tenha sido censurado por Javeh, basta lembrar o famoso episódio da sua cobiça por Betsabé, esposa do seu general Urias, a quem ele ordenou que se arriscasse numa zona de combate, vindo assim a morrer e Davi casou- se com a viúva. É verdade que Davi fez muita penitência por causa disso, quando foi repreendido pelo profeta Natan, mas não largou Betsabé. Como já tivemos oportunidade de comentar em outras ocasiões, a Bíblia não traz apenas relatos exemplares do procedimento dos líderes do antigo povo hebreu, mas apresenta também suas fraquezas, mostrando que, apesar disso, Javeh não os desautorizava. Para nós, fica a certeza de que Deus não nos abandona, apesar das nossas fraquezas, mas está sempre do nosso lado, vem sempre em nosso socorro.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 5, 8-14), o apóstolo evolui com o tema da luz, dizendo que os cristãos são filhos da luz, portanto, devem renunciar às coisas das trevas. A cidade de Éfeso era uma das maiores da sua região, sendo a capital da chamada Ásia Menor, território que hoje corresponde à Turquia. Em Éfeso, havia um grande templo em homenagem à deusa grega Ártemis (que os romanos chamavam de Diana), deusa da lua e da caça. Esse templo era considerado uma das sete maravilhas da antiguidade. As festas religiosas pagãs ali celebradas anualmente eram muito famosas e atraíam pessoas de todas as partes da região, dominada pelos romanos. Essas festas eram verdadeiras bacanais, com profusão de bebidas e licenciosidades. Daí Paulo adverte aos efésios para que não se comportem como antes, quando ainda estavam no paganismo, mas sejam fiéis à sua conversão à doutrina de Cristo. Com firmeza, ele os conclama: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz chama-se: bondade, justiça, verdade. Discerni o que agrada ao Senhor. Não vos associeis às obras das trevas, que não levam a nada; antes, desmascarai-as.” (Ef 5, 8-11) Os rituais pagãos ainda representavam uma grande tentação aos novéis convertidos e, certamente, alguns se deixavam levar pelos antigos costumes. Mas o tema da luz também serve como ponte para a leitura do evangelho, quando Cristo cura o cego de nascença, dando-lhe a luz dos olhos. Paulo faz uma espécie de trocadilho com a oposição de conceitos luz-trevas, que tanto se relaciona com o contexto da visão corporal quanto também com a visão espiritual, decorrente da conversão. Os efésios, antes do evangelho, eram como cegos que não conheciam a luz da verdade. Por isso, não devem agora retroceder ao estado anterior.

Na leitura do evangelho de João (9, 1-38), temos a narração do longo trecho referente à cura de um cego de nascença, cujo milagre os fariseus teimavam em não aceitar. Tratando-se, conforme já anunciamos, de um texto destinado à catequese dos novos cristãos, João descreve o episódio com grande riqueza de detalhes, destacando a messianidade de Cristo e a incredulidade dos fariseus. João aponta ainda para o simbolismo da água da piscina de Siloé, local que é referido por diversas vezes na Bíblia, sendo um poço muito antigo, nos arredores de Jerusalém, que era utilizado como fonte de abastecimento de água da cidade e era também local de abluções rituais por ocasião da festa dos Tabernáculos.

Nessa narração da cura do cego, há vários detalhes importantes a serem destacados. Primeiro, o fato de que Jesus, como ocorreu em outras ocasiões, não realizou diretamente o milagre, ele apenas o iniciou. Fez uma gosma de areia com saliva e colocou nos olhos do cego, mandando que ele fosse lavar-se em Siloé. Era como se Jesus estivesse pondo à prova a fé daquele homem. Ele poderia não ter ido a Siloé, poderia ter se lavado em outro lugar e o milagre não teria se completado. Ele acreditou em Jesus e acreditou também no poder das águas rituais de Siloé, assim como Naaman, o sírio, foi banhar-se no rio Jordão, a mando do Profeta. Isso indica que os milagres divinos não acontecem como passes de mágica, mas Deus se serve da nossa participação para realizar seus feitos admiráveis. Ele inicia a tarefa e deixa para que nós a completemos, tal como fez o cego do evangelho.

Em segundo lugar, temos a associação entre a cegueira e o pecado. Era comum, na cultura hebraica, relacionar um infortúnio, uma calamidade, uma doença a um castigo de Javeh pelo pecado de alguém. A narrativa do livro de Jó fora um ensinamento inserido na literatura religiosa hebraica com o intuito de bloquear essa crença cultural antiga, mas ela persistia mesmo assim. Os discípulos logo perguntaram: Mestre, quem pecou: ele ou os pais, para que nascesse cego? (Jo 9, 2) João faz questão de inserir esse diálogo na narrativa certamente porque, no seu tempo, essa tradição ainda era sintomática no pensamento dos judeus e os catecúmenos precisavam romper com isso. Jesus deu-lhes uma resposta muito elucidativa: nem uma coisa nem outra, mas isso aconteceu para que se manifestasse nele a glória de Deus. Trazendo o fato para a nossa vida cotidiana, devemos estar cientes de que os infortúnios acontecem para que, através deles, se manifeste a glória de Deus na nossa vida. Assim deve ser a dimensão da nossa fé. Jesus veio ensinar, de forma definitiva, que o Deus castigador apresentado no Antigo Testamento era uma visão deturpada desenvolvida pelos antigos hebreus, pois na verdade, Deus é amor.

Em terceiro lugar, podemos notar a caturrice dos fariseus, teimando em não aceitar o óbvio. Pediram ao ex-cego que relatasse várias vezes o episódio, duvidaram que ele fosse mesmo um cego e que estivesse apenas fingindo, alegaram que o cego era outra pessoa parecida com ele, não ele próprio, foram entrevistar os pais do ex-cego para confirmar a história, lembraram que aquele dia era um sábado e, portanto, alguém da parte de Deus não poderia fazer aquilo no sábado, porque estaria contrariando a lei divina, enfim... E o ex-cego contava sempre a mesma história. Por fim, não tendo mais como refutar a veracidade do caso, apelaram para ignorância, porque o cego disse que Jesus era um profeta: tu nasceste no pecado e estás querendo nos ensinar? E o expulsaram da cidade. (Jo 9, 34) Meus amigos, devemos estar atentos para não agirmos assim como os fariseus, deixando de reconhecer Jesus no rosto do irmão que nos procura e pede a nossa ajuda. Às vezes, somos demasiadamente incrédulos diante dos acontecimentos e o nosso orgulho não nos permite ver a mão de Deus agindo na história e nos conclamando a fazermos a nossa parte. Ficamos esperando um milagre automático e não nos damos conta de que Deus espera a nossa participação, para que os milagres aconteçam, esquecemos que Ele age por nosso intermédio. Lembremo-nos sempre do conselho paulino: agora que somos luz, deixemos a luz brilhar em nós.


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