domingo, 16 de março de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - A LEI E OS PROFETAS - 16.03.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – A LEI E OS PROFETAS – 16.03.2014

Caros Confrades,

Neste 2º domingo da quaresma, a liturgia nos traz, como de costume, a narração da transfiguração de Cristo perante três dos seus apóstolos. A promessa de Javeh a Abrão dizendo que a sua descendência seria abençoada e preencheria toda a terra e a recomendação de Paulo a Timóteo, para que suporte os sofrimentos decorrentes da pregação do evangelho compõem o quadro leitural do domingo.

Na primeira leitura, lemos o desafio que Javeh lança a Abrão: sai de tua terra e vai para o lugar que eu vou te indicar; farei de ti um grande povo e em ti abençoarei todas as famílias da terra. (Gn 12, 2) De acordo com os recentes estudos de hebraico bíblico que estou fazendo, o nome do livro que nós chamamos Gênesis lá se diz Bereshit e significa o início, o princípio. O significado de Gênesis lembra mais a idéia de criação. No entanto, verificamos que a narração da criação ocupa apenas os dois primeiros capítulos. A partir do cap. 3, inicia-se a história de Adão e Eva, Caim e Abel, o dilúvio, os primeiros povos até chegar ao personagem Abraão, no cap. 11. A leitura deste domingo, do cap. 12, narra os primórdios da aliança de Javeh com o povo hebreu, através do patriarca Abrão. Conclui-se que o título 'gênesis' não tem muita relação com o conteúdo da maior parte dos 50 capítulos deste livro, sendo o nome Princípio ou Início muito mais adequado. O objetivo do autor sagrado, neste escrito, foi mostrar o início do povo de Deus, não propriamente a criação do mundo. Daí a importância de se conhecer as línguas antigas, a fim de compreender melhor os textos da escritura, o que não se percebe quando se depende apenas de traduções. Diz o autor de Bereshit que Abrão partiu e fez conforme o Senhor havia dito.

O autor sagrado quer destacar, nesse contexto, duas coisas: primeiro, a fé inabalável do seu patriarca Abrão, cujo nome foi depois mudado para Abraão. Ele não sabia para onde iria, porque Javeh deveria indicar isso quando já estivesse a caminho, mas assim mesmo, com toda a confiança, ele deixou o seu lugar (Ur, na Caldéia) e foi seguindo as ordens de Javeh. Segundo, essas narrativas também servem para explicar ao povo hebreu o motivo de serem eles um povo nômade. Ainda hoje, no território que atravessa o deserto do Saara, há os povos nômades. O hagiógrafo do Bereshit quer justificar para o povo que o nomadismo faz parte de uma missão, de uma promessa, de um trato realizado por seus ancestrais, por isso eles não se fixam em nenhum território. Os judeus continuam espalhados pelo mundo. Além deles, ainda temos em nossos dias o exemplo dos ciganos, que são também originários dali e se transferiram para a Europa, mas continuam a perambular sem um destino de fixação.

Na segunda leitura, o trecho da carta de Paulo a Timóteo lhe recomenda a sofrer com paciência as agruras decorrentes da pregação do Evangelho. Timóteo fora colocado por Paulo como dirigente da comunidade que ele (Paulo) criou em Éfeso e, por extensão, dirigente das comunidades de toda a Ásia Menor, região que hoje corresponde à Turquia. Paulo estava preso e era levado para Roma, a fim de ser julgado pelo imperador, tendo deixado a Timóteo essa árdua missão. Na ocasião, Timóteo enfrentava os judeus adversários de Paulo e do cristianismo naquela região grega muito povoada e também muito próspera, pelo comércio. E não eram apenas perseguições ideológicas, mas também ameaças físicas. Paulo tomou conhecimento desses fatos e, através de carta a ele dirigida, exorta Timóteo a perseverar na fé assim como ele, Paulo, que também estava preso por causa do evangelho, mas confiava na promessa de Cristo que, ao vencer a morte, trouxe a imortalidade para os seus seguidores. “A graça de Deus nos foi dada por Jesus Cristo para toda a eternidade.” A tenacidade de Paulo, de Timóteo, de Tito e dos primeiros líderes cristãos daquelas comunidades foi altamente importante para a continuidade do cristianismo, o que possibilitou seu avanço até os dias de hoje.

Na leitura do evangelho de Mateus (17, 1-9), temos a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Primeiramente, podemos refletir sobre a escolha desses três, isto é, por que Jesus não se transfigurou diante de todos os apóstolos? Certamente, eram esses três os que tinham sua maior confiança. Pedro já estava escolhido para ser o líder do grupo e Jesus o preparava para essa missão. João era o discípulo mais jovem, aquele em que Jesus depositava total confiança. Quanto a Tiago, havia dois discípulos com esse nome. O evangelista Mateus diz que quem estava no trio era o Tiago (maior) filho de Zebedeu, irmão de João, porém os outros dois evangelhos sinóticos (Marcos 9, 2 e Lucas 9, 28) não afirmam se era este mesmo ou o outro Tiago (menor) filho de Alfeu. Este último é considerado, por algumas tradições, como irmão de Jesus, deixando assim uma dúvida sobre a identidade do terceiro discípulo a presenciar aquele extraordinário fenômeno. Se levarmos em consideração o grau de parentesco, podemos supor que o Tiago referido na narração da transfiguração seja o outro, o irmão de Jesus, não o irmão de João.

Importa destacar aqui nesse contexto o significado de “irmão”. Com efeito, a palavra grega “adelphos”, que se traduz geralmente por irmão, também significava primo, meio-irmão, irmão de criação, ou seja, um parentesco bastante próximo, não necessariamente irmão consanguíneo. Sou levado a crer que o Tiago do trio que presenciou a configuração poderia ser este Tiago Adelphos, o menor, e não o filho de Zebedeu, irmão de João. Isso entra em choque com o texto de Mateus, mas os motivos que acima destaquei me levam a sustentar a segunda hipótese, com todo o respeito. Trata-se de uma questão, como já mencionei aqui em outras oportunidades, de que não se deve interpretar o texto bíblico de forma puramente literal, mas buscando elementos circunstanciais que auxiliem a uma compreensão mais ampla. Devemos considerar que, durante séculos, esses textos passaram pelas mãos de vários copistas e não se descarta a eventual possibilidade de ter havido pequenas alterações ou adaptações do texto primitivo.

Um outro ponto a se destacar no texto da narração da transfiguração é a metamorfose de Jesus ante a presença de dois personagens da tradição hebraica: Moisés e Elias. Eles representam, respectivamente, a Lei e os Profetas. Diz o narrador que a face de Jesus ficou resplendente igual ao sol e as suas roupas brancas tanto quanto a neve. Eu achei interessante essa comparação da roupa de Jesus com a neve, porque as pessoas daquela região geográfica onde os apóstolos viviam não têm familiaridade com a neve, sendo essa uma experiência mais comum na Europa. Pois bem, no texto original em grego, está escrito que as roupas de Jesus ficaram “leuka ôs tô phôs” e S. Jerônimo traduziu como sendo “alba sicut nix”. Bem, phôs em grego significa luz (phôs, photos). Então, conclui-se que S. Jerônimo utilizou uma metáfora européia para traduzir o original grego. Em lugar de “brancas como a neve” deveria ser “brancas como a luz”, assim faz mais sentido para a experiência do povo da Palestina.

Nesta narração, Jesus quis provar aos seus discípulos duas verdades que ele vinha pregando há muito tempo: primeiro, a sua origem divina; segundo, que os seus ensinamentos não são contrários à lei mosaica, como muitas vezes os fariseus o acusavam, mas ao contrário, Ele se apresentar ao lado de Moisés e de Elias, dialogando com eles, queria significar que havia pleno entendimento entre os respectivos ensinamentos. Os discípulos eram judeus e, certamente, também podiam ter ainda dúvidas dessas duas verdades. Afinal, o judaísmo farisaico interpretava a lei de uma forma tão própria e exclusiva que, à primeira vista, dava a impressão que o ensinamento de Jesus estava indo contra a sua tradição. Com aquela visão futurista, Jesus estava dando provas de que a sua doutrina era mesmo a continuidade daquilo que a tradição guardava como ensinamentos de Moisés e dos Profetas. E Jesus os recomendou fortemente que nada contassem sobre o que tinham visto, isso seria impossível de controlar em um grupo mais numeroso de assistentes.

Para nós, a figura do Cristo transfigurado é um constante e eloquente apelo a fim de que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, cuja antecipação Ele demonstrou naquele memorável cenário. Nossa missão é fazer com que Cristo se apresente através de nós, transfigurando-nos.


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