domingo, 2 de março de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 8º DOMINGO COMUM - PROVIDÊNCIA DIVINA - 02.03.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 8º DOMINGO COMUM – PROVIDÊNCIA DIVINA – 02.03.2014

Caros Confrades,

A demora da chegada do período quaresmal, neste ano de 2014, aumenta o número de domingos comuns nesta fase do ano litúrgico. Hoje, temos o oitavo e último domingo comum antes da quaresma e o tema litúrgico é a providência divina. Sempre que leio esse trecho do evangelho de hoje (Mt 6, 24-34), lembro de uma frase, que o Frei Timóteo gostava de pronunciar: “sufficit diei militiam suam”, isto é, basta a cada dia o seu trabalho, o que subentende que não devemos nos preocupar com o dia de amanhã. O amanhã pertence à providência divina.

Na primeira leitura, temos um conhecido trecho do profeta Isaías, por ele escrito no tempo do cativeiro da Babilônia, onde o povo judeu se encontrava distante de sua terra e se sentia abandonado por Javeh. O profeta tenta revitalizar o ânimo do povo fazendo um paralelo entre o amor divino e o amor materno. Sabemos que não existe relação mais forte, na vida humana, do que aquela que une a mãe e os filhos. Não dá nem para comparar com o amor de pai. Quem já viveu essa experiência com a própria mãe e passou a ter, depois, a experiência de ser pai sabe que a ligação do filho com a mãe é muito intensa, visceral mesmo. Então, o profeta Isaias se serve dessa experiência humana para explicar ao povo que o amor de Deus não é só amor de pai e também nem é só amor de mãe, é muito mais do que tudo isso. “Acaso pode a mulher esquecer-se do filho pequeno, a ponto de não ter pena do fruto de seu ventre? Se ela se esquecer, eu, porém, não me esquecerei de ti.” (Is 49, 15) Ainda que, por mais absurdo que isso possa parecer, aconteça de uma mãe renegar um filho e esquecê-lo, mesmo assim Javeh não esquecerá o seu povo. Cativos e maldizentes, os judeus amargavam o castigo da sua falta de lealdade com Javeh. Mas o castigo não significa diminuição do amor, assim como quando a mãe ou pai castigam o filho (castigavam, no tempo em que não isso era proibido!) não implicava que eles deixassem de amá-lo.

Na carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo aborda o tema da providência divina sob outro viés, o da fidelidade. Paulo estava sendo perseguido por causa do evangelho que pregava e temia receber alguma punição, em decorrência das denúncias dos inimigos. Então, diz ele, eu não tenho medo de ser julgado por nenhum tribunal humano. Primeiro, porque a sua consciência não o acusava de nada. Segundo, porque na qualidade de administrador da fé cristã, como pregador e missionário que era, ele confiava totalmente no julgamento divino apenas. Certamente, alguns amigos dele viviam alertando-o sobre possíveis ameaças. Paulo pregava nas reuniões secretas dos cristãos primitivos, naquele tempo em que o cristianismo era perseguido e considerado inimigo do império romano. Paulo viveu na época do imperador Nero, aquele que mandou incendiar Roma e depois colocou a culpa nos cristãos. Ou seja, Paulo vivia em constante perigo. Para ele, o amanhã era sempre uma incógnita, ele tinha consciência dos riscos que corria, mas isso não o intimidava na sua tarefa de pregar o evangelho. Então, ele confiava totalmente na divina providência. “É verdade que a minha consciência não me acusa de nada. Mas não é por isso que eu posso ser considerado justo. Quem me julga é o Senhor. ” (1Cor 4, 4) Paulo servia a Deus na fidelidade do seu coração e confiava que somente Ele poderia julgar suas ações. “Deus é fiel” (1Cor 1,18) é um mote paulino muito citado, sobretudo pelos fiéis das igrejas não católicas, reproduzindo essa verdade proclamada pelo apóstolo Paulo e que se tornou tão popular, até tornar-se adesivo posto nos veículos e ainda nome usado como título de empresa comercial.

Nesse contexto, a liturgia nos traz, na leitura do evangelho de Marteus (6, 24-34), o conhecido trecho da advertência de Cristo de que “ninguém pode servir a dois senhores”. “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24). Essa palavra “dinheiro” empregada nessa frase não é bem a tradução do termo original, é um arranjo literário. A palavra usada por Cristo é o termo aramaico “mamona”, que no texto grego não foi traduzido e também na vulgada latina, São Jerônimo fez tal como o autor grego, não traduziu, transliterando a palavra “mammona”: “Non potestis Deo servire et mammonae”. Provavelmente, os Colegas se lembram que, antigamente, se lia assim essa frase: não podeis servir a Deus e à mamona, o que ficava sem sentido em português, daí porque a CNBB optou em traduzir por “dinheiro”. De acordo com o significado original da palavra “mamona” no aramaico, esse termo se refere não propriamente à moeda, ao dinheiro, mas tem alcance bem mais amplo, referindo-se à ambição humana em geral pelas coisas materiais e também pelo poder e prestígio sociais. A glória humana, a fama, o poder político e econômico, a avareza, o desejo incontrolado de possuir sempre mais, tudo isso está contido no conceito de “mamona”. Essas atitudes, bastante comuns na vida social, além de representarem vaidade em excesso, também indicam falta de confiança na providência. A ambição de ter sempre mais é um sintoma de preocupação para com o futuro incerto e isso significa a falta de fé na divina providência. Esse desejo humano desmedido chega a ser tão dilacerante que toma o lugar que deveria ser ocupado por Deus na vida da pessoa. Por isso, Cristo adverte para não nos deixarmos inebriar pelas “mamonas” da vida.

E então, Ele parte para exemplificar, de modo a deixar bem clara a sua idéia. Primeiro, diz: não vos preocupeis com o que ireis comer amanhã, ou beber, ou vestir. São Francisco interpretou esse frase ao extremo, quando escreveu na Regra franciscana “que os frades não recebam dinheiro ou pecúnia”, nem deviam ter duas túnicas, nem duas sandálias... portanto, deixem de lado a “mamona”. Antigamente como hoje, ter dinheiro significa ter poder material e isso não combina com o ensinamento de Cristo. Dentro do nosso modo de pensar capitalista, fica parecendo que Cristo está mandando esbanjar tudo o que se possui, porque amanhã Deus proverá mais. Não é bem assim. Por isso, não podemos fazer interpretações literais fundamentalistas, mas devemos compreender de forma adequada o que Cristo ensinou. Não é a posse simples de bens materiais que acarreta o sentido da “mamona”, mas o apego a esses bens. Se os bens possuídos por alguém forem de origem ilícita, então nem se duvida da sua desconformidade com a mensagem cristã, ainda que esses bens sejam utilizados para fins caritativos. Porém, se os bens possuídos são resultado de trabalho honesto e administrados com responsabilidade, eles só se tornarão “mamona” quando o seu possuidor der a eles maior valor do que dá ao próximo, de modo a recusar-se a ajudar quem necessita ou passar a utilizá-los unicamente para o próprio deleite, conforto e bem estar. Podemos voltar aqui à carta de Paulo (segunda leitura), quando ele diz que somos “administradores” dos dons de Deus. E, nessa condição, temos o dever de sermos fiéis, assim como Deus é fiel para conosco.

Descendo a detalhes em exemplos, Cristo faz uso novamente da sua magistral pedagogia para aquele grupo de pessoas pouco instruídas: vocês estão preocupados com a comida de amanhã? Pois olhem para os pássaros, que não semeiam nem ceifam, no entanto, o alimento nunca lhes falta. Estão preocupados com o que vão vestir amanhã? Pois olhem para os lírios que vestem roupas tão nobres, que nenhum rei jamais vestiu. O Pai proporciona isso a eles. Essas preocupações são típicas dos pagãos, que não creem na providência. “Os pagãos é que procuram essas coisas. Vosso Pai, que está nos céus, sabe que precisais de tudo isso. ” (Mt 6, 32) E então Ele faz o arremate conclusivo dessa preciosa lição: “buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo. ” (Mt 6, 33). O Reino de Deus é o oposto da “mamona”. Quem escolhe o Reino deve ter este Reino no coração e, por isso, não pode prestar culto à “mamona”. Quem está com a “mamona” no coração, não pode ter o Reino de Deus, porque são duas realidades incompatíveis. Quem tem a “mamona” no coração, não confia na providência e por isso precisa cuidar de tudo por si só e assim mesmo não conseguirá o seu intento. Quem acolhe no coração o Reino de Deus, terá como recompensa o recebimento de tudo do que necessita, sem ter de correr atrás, pois tudo será “providenciado”. A fé nessa verdade é a grande fonte de alegria do cristão.


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