COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – UM DIA ESPECIAL – 27.04.2014
Caros Confrades,
Neste segundo domingo da Páscoa (lembrar que não se diz domingo 'depois' da Páscoa), tivemos um dia especial na história do cristianismo: o domingo dos quatro Papas. Em outras épocas históricas, a Igreja já teve mais de um Papa, porém eram ilegítimos, mas no dia de hoje, por uma coincidência marcante, a festividade foi agraciada com dois Papas santos e dois Papas terrenos, um dia inédito em mais de dois milênios.
O segundo domingo da Páscoa havia sido denominado, por João Paulo II, como o Domingo da Misericórdia, criando assim a Festa da Divina Misericórdia. E o Papa Francisco, por privilegiada inspiração, escolheu esse dia para a ratificação da vida de santidade do próprio JP II e de João XXIII. Este segundo domingo possui uma milenar tradição na liturgia com o nome de Dominica in Albis (o domingo da brancura), porque na oitava da Páscoa, os que se haviam batizado na Vigília Pascal e haviam passado toda a semana em comemoração, usando sua veste batismal, reuniam-se novamente e ali depunham solenemente essas vestes brancas, voltando a usar suas roupas comuns e se inserindo na comunidade juntando-se aos outros irmãos da fé. Todos nós nos lembramos que, em todas as festas religiosas importantes, sempre se celebrava a “oitava”, mas a oitava da Páscoa sempre foi a mais solene, era quase como uma repetição da festa do domingo anterior. Até o vinho festivo, que aparecia no almoço dos dias de festa, voltava a aparecer nesse dia. Não haveria melhor dia para a cerimônia da canonização dos novos santos do que esta oitava da Páscoa.
Agora, nós já podemos dizer que conhecemos um santo que viveu no meio de nós, no sentido bem literal da palavra, pois JP II esteve aqui, foi visto por todos nós, alguns tiveram o privilégio de estar bem próximos dele, até de cumprimentá-lo e beijar-lhe a mão (eu não me incluo nesse seleto rol). Ele celebrou missas em Fortaleza. No Seminário da Prainha, ele celebrou uma missa particular só para os sacerdotes da Arquidiocese na capela interna e lá hoje existe uma placa de bronze narrando o fato e homenageando-o. “De longe vieste pra estar no nordeste, no meu Ceará...” diz aquela melodia cantada por Luiz Gonzaga, com versos do padre cearense Gotardo Lemos. Sem a menor dúvida, trata-se de um dia de intenso júbilo para todos nós, parece que o céu ficou mais próximo, quando nos lembramos que oficialmente foi reconhecida a chegada ali de São João Paulo II.
Não posso deixar de me reportar ao grande papa João XXIII, para mim, o mais memorável dos pontífices do século XX. Não diria que foi o maior, mas foi o mais corajoso, o mais inspirado, o mais santo, o discípulo mais fiel de Cristo. Em cinco anos como papa, um desconhecido Cardeal trouxe para a Igreja Católica as esperanças de uma nova igreja, que nós ainda estamos construindo. Apenas dois meses depois de eleito, ele conclamou toda a catolicidade para a realização do segundo Concilio do Vaticano, necessário para fazer o (como ele gostava de dizer) “aggiornamento” da Igreja Católica. O Espírito Santo se serviu da pessoa de um Cardeal humilde, sem grandes dotes intelectuais, sem grandes destaques sociais, mas de grande coragem e determinação, para iniciar a grande reconstrução da Igreja Católica, no século XX. O Monsenhor Manfredo, no sermão da missa de hoje, na Paróquia da Glória, narrou que estava na Praça de São Pedro naquele dia da eleição do João XXIII (outubro de 1958), quando uma multidão aguardava ansiosa pelo nome do novo Papa. “Habemus Papam”, avisara a fumaça branca que saía da chaminé da Capela Sistina, mas não se sabia ainda quem era o eleito. Quando o Carmelengo anunciou que o Papa era sua eminência Angelo Giuseppe Cardinale Roncalli, as pessoas se entreolharam e se perguntavam umas às outras: quem é este? Filho de um camponês de uma pequena cidade nas montanhas, era Cardeal em Veneza e não era conhecido pelo povo romano. Já tinha quase 78 anos de idade e sabia-se que ele não teria muito tempo de vida, seria uma espécie de papa “tampão”. Pois foi este que o divino Espírito escolheu para fazer a sua maior ação mobilizadora da religião católica, importante e necessária naqueles anos que se sucederam à segunda guerra mundial, quando o mundo todo havia mudado e as autoridades religiosas ainda não haviam percebido isso. É o Papa que eu mais admiro e a quem rogo, agora com o seu reconhecimento oficial na corte celeste, sua perene inspiração para os nossos prelados, bispos, sacerdotes e dirigentes religiosos, para que todos compreendam o que é ser cristão e católico na sociedade dos tempos confusos da nossa era.
Passando agora às leituras deste domingo, temos na primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (At 2, 42-47), a narração do modo de vida das primeiras comunidades cristãs, cujo exemplo permanece como desafio constante a todos nós: “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e colocavam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um.” (At 2, 44-45) Penso que esse modo de vida só existiu mesmo naqueles primeiros tempos, uma irmandade total e irrestrita. Depois que o cristianismo foi-se infiltrando no mundo romano, sobretudo no meio da população mais rica de Roma, essa disponibilidade e repartição dos bens já não era assim tão exemplar. Se observamos bem, foi o que o Seráfico Patriarca Francisco (o original) colocou na sua regra, no século XIII, a regra da pobreza, porque então já não se praticava isso entre os cristãos. E o próprio Papa da época (Inocêncio III) duvidou que alguém conseguisse viver desse modo... que ironia... como se não estivesse de acordo com o evangelho. Atualmente, as relações sociais se tornaram muito mais complexas e a vivência desse ideal precisa passar por um conjunto de ajustes hermenêuticos, a fim de ser posto em prática. Por isso, o testemunho das primeiras comunidades cristãs permanece como constante desafio para os cristãos de todos os tempos, conclamando-os a buscarem viver autenticamente o evangelho de Cristo, de acordo com as peculiaridades de cada segmento histórico.
Na leitura do evangelho (Jo 20, 19-31), repete-se o episódio da incredulidade de Tomé, um dos textos mais conhecidos e mais utilizados na catequese desde os primeiros tempos cristãos, como uma forma de fortalecer a fé dos convertidos, tomando o exemplo de Tomé com a reprimenda de Jesus, para vitalizar a atitude dos que creem sem ter visto. Esta história da dúvida de Tomé é narrada apenas no evangelho de João. Lucas (24, 13-43) narra o diálogo de Jesus com os discípulos que iam para Emaús e, em seguida, a aparição d'Ele aos apóstolos todos, mas não se refere a Tomé. A narrativa de João é plenamente fidedigna, porque ele estava presente, diferentemente dos outros evangelistas, que souberam por outras fontes. Talvez o fato até fosse do conhecimento deles também, porém João escreveu seu evangelho mais tardiamente e certamente já conhecendo os textos dos outros autores. Isso fez com que ele acrescentasse detalhes que considerou importantes e que os outros haviam omitido. O próprio João ainda justifica: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro.” (2, 30) Ou seja, João sabia de mais coisas, que não escreveu, mas provavelmente contava aos cristãos do seu tempo. Daí é que se originam as tradições orais de fatos que, mesmo não estando escritos, são aceitos e acreditados pelos fiéis desde os primeiros tempos.
Um outro detalhe que se percebe na narrativa joanina e a referência ao “primeiro dia da semana”, que era o dia preferido para Jesus aparecer aos discípulos. É interessante essa tradução “primeiro dia da semana” que consta no texto em português, se compararmos com o texto latino de S. Jerônimo. Ele diz assim: “Cum ergo sero esset die illo una sabbatorum...”, que significa “portanto, como estivesse tarde naquele dia, um depois do sábado...” isto é, ele não diz que é o “primeiro dia” e sim que é o dia depois do sábado. O sábado era o dia mais importante, porque ainda prevalecia a tradição judaica. E para os judeus, o dia termina com o por do sol, quando se inicia o dia seguinte. Ou seja, tarde da noite de sábado já era a “primeira feira” (o nome domingo não existia naquela época). Por isso, só bastante tempo depois, os cristãos começaram a perceber essa preferência de Jesus pelo “dia depois do sábado” e passaram a transferir o dia do repouso (sabático) para o dia da glorificação de Cristo, por sua ressurreição e por suas sucessivas aparições aos discípulos no dia seguinte ao sábado. É a tradição que seguimos até os dias de hoje.
Meus amigos, neste dia privilegiado dos quatro Papas e da oitava da Páscoa, renovo a todos os votos de uma contínua e permanente ressurreição, na labuta diária de cada um.
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