COMENTÁRIO
LITÚRGICO – FESTA DE CRISTO REI – REINO DA CARIDADE –
23.11.2014.
Caros
Confrades,
Como
é praxe, no domingo que encerra o ano litúrgico, a Igreja celebra a
festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história,
esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI. Em
outras ocasiões, já manifestei essa mesma opinião que direi agora:
esta é uma festa litúrgica triunfalista, que não condiz com o
exemplo histórico de Cristo. Além disso, penso que seria mais
adequado falar-se de Cristo Rei de todos os povos, visto que a
festividade se restringe ao orbe terrestre, onde a mensagem cristã
foi deixada por Ele e se incorporou praticamente a todas as culturas.
E no evangelho, quando Ele disse: ide e ensinai a todos os povos,
dirigia-se certamente às pessoas da terra, não à imensidão do
cosmos. Deus, o criador, reina sobre tudo. Porém, o Filho e sua
mensagem foram dados às pessoas e seu objetivo será alcançado com
a união de todos os povos. Nós não sabemos se existem outros
mundos similares ao nosso. Pela simples estatística da
probabilidade, é muito provável que, no meio de milhões de corpos
celestes existam vários em condições idênticas à terra, mas
disso não sabemos e ainda estamos longe de aprender. Por isso,
quando nos referimos à divulgação da mensagem cristã, devemos nos
ater aos confins do nosso planeta, lembrando-nos de que (conforme já
abordei no domingo anterior), na época em que os evangelhos e as
cartas de Paulo foram escritos, a noção geográfica que se tinha
era de que as estrelas no céu eram apenas pequenos pontos luminosos,
nada mais do que isso. Hoje sabemos que o nosso sistema solar e até
a galáxia onde ele se situa não passa de um pequeno e remoto sítio
espacial.
Por
isso,
ou seja, dada essa completa
modificação
do conhecimento
que se tem sobre o universo nos
dias de
hoje, as leituras litúrgicas exigem de nós um maior esforço mental
para ajustar a compreensão da mensagem. A primeira leitura, do livro
do profeta
Ezequiel, habitualmente enigmático, no trecho lido na liturgia de
hoje,
faz referência às muitas ovelhas que estão dispersas e que serão
resgatadas por Deus. Porém, comete um erro na época justificável,
de fazer distinção entre ovelhas, carneiros
e bodes. Esse mesmo
erro referencial
será também cometido
por Mateus,
na
distinção entre ovelhas e cabritos, comentarei isso mais adiante.
Por sua vez, a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 20-28) contém
aquela famosa e polêmica comparação
entre Adão e Jesus Cristo, que traz dificuldades
teológicas para a harmonização entre a teologia e a ciência: “por
um homem veio a morte, e é também por um homem que vem a
ressurreição dos mortos.
”
(15, 21) Conforme todos sabem, na perspectiva científica, não se
sustenta mais a convicção de que toda a humanidade
se originou apenas de um único casal, porém esse era o entendimento
na época de Paulo. E depois, Paulo
faz
uma
afirmação
que, ao meu ver, está em total desacordo com a idéia de Cristo
sobre o seu “reino”: “Pois
é preciso que ele reine, até que todos os seus inimigos estejam
debaixo de seus pés.”
(15, 25) Ora, essa
idéia de subjugar os inimigos é bem típica da época do império
romano e era um arquétipo na cabeça de Paulo. No entanto, o “reino”
que Cristo veio fundar é o reino do amor, cujo passaporte para seu
ingresso é a caridade e, assim sendo, não está conforme a
ele a
imagem de submeter os inimigos debaixo dos seus pés. Os possíveis
inimigos serão conquistados para fazerem parte também eles do reino
da caridade. Por isso, precisamos filtrar a doutrina de Paulo para a
ajustarmos à cosmovisão contemporânea. E Paulo novamente insiste
naquela idéia da qual tratei no domingo passado, qual seja, a vinda
de Cristo. Ele, Paulo, e os cristãos da época, pensavam que o
retorno de Cristo era uma questão de poucos dias, Paulo pensava que
ainda iria encontrar Cristo antes de morrer. Do mesmo modo, os demais
cristãos entendiam que essa vinda gloriosa de Cristo seria iminente.
Só com o passar do tempo e com o aperfeiçoamento da reflexão
teológica essa idéia mudou.
Um
semelhante contorcionismo mental será necessário para ajustarmos a
compreensão do texto do evangelho de Mateus, lido na liturgia de
hoje (Mt 25, 31-46). Novamente, precisamos ter em mente a cosmologia
da época,
fundada no geocentrismo de Ptolomeu, que era o conhecimento
científico dominante. Mateus coloca na boca de Jesus todo um
discurso que é, provavelmente, muito mais resultado da crença da
comunidade do que de palavras do próprio Cristo. Quanto Pilatos
perguntou-lhe:
então, és rei? Jesus respondeu: o meu reino não é deste mundo.
(João 18, 34) Então, essa descrição de Jesus descendo em sua
glória, acompanhado dos anjos e sentado num trono glorioso é muito
mais uma idéia de uma cabeça
pensante humana do que alguma idéia
que
se perceba
nos outros discursos de Cristo acerca do reino de Deus. De fato, o
evangelista faz uma descrição bem conforme o modelo terreno
dos reis de sua época, que é também como ainda hoje as imagens de
Cristo Rei são representadas:
com um vistoso manto, uma coroa real, um cetro, como eram os
protótipos dos reis da antiguidade. Mas o Cristo Rei não precisa se
apresentar com esse aparato imperialista, porque o Seu reino é da
caridade, do
amor ao próximo, não é da ostentação nem da dominação.
Uma
outra comparação totalmente desproporcional é a que o evangelista
faz, ao distinguir as ovelhas dos cabritos (25, 32-33), colocando as
ovelhas à direita e os cabritos à esquerda. Eu diria que é uma
comparação infeliz, porque está figurando os infiéis como
cabritos, da mesma forma como o profeta Ezequiel havia diferenciado
entre ovelhas, carneiros e bodes (Ez 11, 17). Meus amigos, essa
metáfora é totalmente fora de propósito. Deve ter sido dela que os
artistas medievais tiraram aquela idéia de representar o demônio
com pés de bode, ou seja, bodes, cabritos são imagens demoníacas.
Quero crer que Jesus Cristo não tenha feito esse tipo de comparação,
porque contém uma odiosa discriminação, tenho por certo que da
boca de Jesus não saíram palavras com tais significados
depreciativos. Ademais, eu também tenho por certo que a “fila da
esquerda” estará totalmente vazia, todos (ovelhas, carneiros,
bodes e cabritos) estarão na “fila da direita”, porque o reino
de Cristo é o reino do amor e o passaporte para sua entrada é a
caridade. Percebe-se isso na ações que Ele valorizou praticadas por
aqueles que ficaram na fila da direita: estava com fome e me destes
de comer, com sede e me destes de beber, era estrangeiro e me
recebestes na vossa casa... ou seja, em uma só palavra, é a prática
da caridade.
O
Papa Francisco, na missa de hoje, canonizou seis novos santos (quatro
italianos e dois indianos), celebrando a missa em latim e proclamando
o evangelho em grego, em homenagem às igrejas católicas orientais.
Tive pena de não ver isso, pois eu gostaria demais de escutar o
evangelho pronunciado em grego. E no sermão, Sua Santidade fez uma
afirmação profética e, essa sim, condizente com a mensagem de
Jesus: "A Salvação – disse o Papa – não
começa confessando a realeza de Cristo, mas imitando as obras de
misericórdia por meio das quais Ele realizou o Reino do amor, da
proximidade e da ternura com os nossos irmãos. Disso dependerá a
nossa entrada ou não no Reino de Deus”. (notícia
do site www.zenit.org, de hoje)
Achei perfeito
esse ensinamento do Papa, desmistificando aquela imagem triunfalista
e dominante tradicional do Cristo Rei. Proclamar a realeza de Cristo
é agir como Ele agiu e como Ele ensinou que deveríamos
agir:
dando alimento aos
famintos e água aos sedentos, vestindo os
nus e recepcionando os estrangeiros. Se não fizermos isso, não
adianta
tentar se colocar sob o manto do Cristo Rei, porque não haverá
espaço.
Meus
amigos, repito uma idéia que já expus aqui, no ano passado: entendo
a figura de Cristo como rei não no sentido da realeza terrena, mas
como o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da
fraternidade e, para isso, Ele não precisa nem de um manto nem de um
cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é
a justiça e o seu cetro é a paz.
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