COMENTÁRIO
LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – O BARRO E O OLEIRO –
30.11.2014
Caros
Confrades,
O
primeiro domingo do advento sempre dá início ao novo ano litúrgico,
que não segue o calendário civil. Neste ano, classificado com a
letra B, as leituras do evangelho serão, preferencialmente, do
evangelista Marcos. Cronologicamente, o evangelho segundo Marcos foi
o primeiro dos quatro a ser escrito, embora não seja o primeiro na
ordem canônica. Consta que Marcos era discípulo de Pedro e teria
sido também o escriba das cartas deste. O texto deste evangelista é
considerado o mais próximo das fontes documentais pelo fato de
apresentar-se mais resumido e com poucos detalhes dos fatos narrados.
Deve ter sido escrito por volta do ano 50 d.C.
Conforme
já lembrei nos anos passados, a festa de Natal em 25 de dezembro é
apenas uma data referencial, não significando o dia exato em que
Jesus nasceu. A festa passou a ser celebrada nesta data por
determinação do imperador Constantino, que aproveitou uma festa
pagã que já existia, em homenagem ao deus saturno, marcando a
passagem do solstício de inverno no hemisfério norte. Isto é, a
festa de 25 de dezembro já existia antes e, a partir de Constantino,
ela foi transformada em uma festa cristã, homenageando Jesus, o novo
sol do mundo. A tradição cristã passou a incorporar essa festa com
as paisagens do inverno europeu, ornamentando com pinheiros cobertos
de neve, porém devemos nos lembrar que Jesus nasceu em Belém, na
Judéia, e no local do Seu nascimento não havia nem pinheiros nem
neve, ao contrário, a região é predominantemente desértica. Mais
um motivo para nós compreendermos o Natal com a sua simbologia
coerente com o evangelho e não com os costumes tradicionais, que
associam o Natal à troca de presentes e à farta ceia com iguarias
típicas da data. Diferente disso, o nascimento de Cristo foi um
acontecimento modesto e até austero, pois como se sabe, Maria e José
não encontrarem nem hospedagem decente naquele dia de grande
aglomeração em Belém de Judá.
Nas
leituras litúrgicas de hoje, temos a primeira do profeta Isaías
(63, 16 – 64,7, portanto, do deutero-Isaías), em que o Profeta
recorda o tempo do exílio como um castigo divino, porque o povo se
afastou dos caminhos do Senhor, e faz uma declaração de humildade,
ao dizer que “nós nos tornamos imundície e todos as nossas
obras são
como um pano sujo … por isso, escondeste de nós a tua face e nos
entregaste à mercê de nossas maldades”. E logo em seguida, vem a
declaração de confiança: “Assim
mesmo, Senhor, tu és nosso pai, nós somos barro; tu, nosso oleiro,
e nós todos, obra de tuas mãos.”
A figura do barro nas mãos do oleiro tem um significado bastante
forte de confiança na misericórdia do Senhor, na medida em que o
barro é um objeto amorfo e receberá a forma que as mãos do oleiro
quiser lhe dar. Essa imagem é reforçada pelo vers. 3 do cap 64:
“Nunca
se ouviu dizer nem chegou aos ouvidos de ninguém, jamais olhos viram
que um Deus, exceto tu, tenha feito tanto pelos que nele esperam.”
A música cantada na celebração deste domingo, inspirada nessa
imagem profética, dizia algo assim: toma o meu barro e faz de mim um
vaso novo. Escolhi essa passagem de Isaías como o tema deste
comentário justamente porque, ao meu ver, o tempo do advento é a
ocasião propícia para cada cristão largar fora o invólucro velho
e construir em si um novo receptáculo, para ali depositar o
Salvador, cujo nascimento comemoramos. Tal como a quaresma é o tempo
de penitência em preparação
para a Páscoa do Senhor, o advento é também um tempo de revisão
de procedimentos, de limpar as veredas e aplainar os caminhos para a
vinda do Senhor. Na verdade, a festa do Natal é a segunda mais
importante do calendário cristão, superada apenas pela festa da
Páscoa. A vinda de Cristo é o início do mistério da redenção
prometido por Javeh aos antigos Patriarcas e que não se destina mais
somente àquele povo original da aliança, mas alcança todo o gênero
humano. Esse é o acontecimento chave que marca o ponto de partida da
caminhada eclesial que será seguida no decorrer do ano.
A
segunda leitura traz o início da primeira carta de Paulo aos
Coríntios (1Cor 1, 3-9), em cujo preâmbulo o Apóstolo felicita
aquela comunidade e recomenda a perseverarem firmes na fé até “o
dia de Nosso Senhor Jesus Cristo”, numa alusão evidente à segunda
vinda de Cristo. Conforme já expliquei em comentários anteriores,
os cristãos daquela época (e Paulo inclusive) entendiam a vinda
gloriosa de Cristo “para julgar o mundo” como algo que ocorreria
por aqueles dias, não iria demorar muito. No versículo 7, Paulo diz
isso textualmente, quando escreve “vós que aguardais a revelação
de Nosso Senhor Jesus Cristo”, ou seja, Ele irá retornar a
qualquer momento. O tema dessa leitura paulina está em consonância
com o tema do evangelho de Marcos, chamando a atenção para a
perseverança até o final, dentro da fidelidade à graça recebida.
Deus é fiel, repete Paulo, e essa fidelidade de Deus deve ser
correspondida com a fidelidade do crente. Percebe-se, pela frequência
com que Paulo volta a esse assunto, que essa maneira de compreender a
segunda vinda de Cristo era uma idéia recorrente nas comunidades
cristãs. Assim se entende porque o tema da “vigilância” é
tantas vezes reprisado tanto nas cartas de Paulo quanto nos
evangelhos, sendo também um apelo insistente da liturgia nessa época
do ano.
A
leitura do evangelho de Marcos tem essa mesma conotação da
vigilância (Mc 13, 33-37). Vejamos como essa preocupação chegava a
ser exagerada, pela forma como o tema nos é apresentado na parábola
do patrão que viajou ao estrangeiro e deixou sua propriedade sendo
cuidada pelos seus empregados. O patrão também deixou a cada
empregado uma tarefa específica, encarregando um deles de ser o
porteiro, que ficaria vigiando a casa. Quanto aos demais, diz a
parábola, devem estar sempre preparados, porque não sabem a que dia
ou hora o patrão retornará. Pode ser de tarde, de noite, de
madrugada, ninguém
sabe quando será este dia. Do
modo como a história é contada, tem-se a impressão de que aqueles
empregados não poderiam dormir, porque pode ser que o patrão chegue
na hora do sono deles. Ora, meus amigos, parece óbvio aqui um
exagero de linguagem. Na verdade, o foco da mensagem, ao meu ver, se
refere à execução da tarefa da qual cada um foi encarregado e
não ao sono em si. Essa, sim,
deve ser cumprida conforme o cronograma,
de modo que, no retorno do
patrão, a tarefa não esteja em atraso. A tarefa maior que Jesus
deixou para nós, os empregados, está resumida naqueles dois
mandamentos, que todos conhecemos
muito bem: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si
mesmo. Essa é a tarefa que não pode ser deixada para depois, mas
deve ser realizada constantemente.
Com
efeito, não devemos nos guiar pela tradição dos primeiros tempos
do cristianismo ao interpretar esses discursos escatológicos de
Jesus. Eu abordei isso aqui no domingo anterior. A segunda vinda de
Cristo
não deverá ser
um fenômeno coletivo, de proporções cósmicas,
mas um evento privado na vida de cada pessoa. Em vez de ser Ele que
virá ao nosso encontro, nós, ao contrário, é que nos dirigiremos
a Ele. Devemos compreender que
essa maneira de apresentar o fenômeno é resultado da noção que se
tinha na época acerca da terra e sua posição relativa
aos demais corpos celestes. Não há dúvida de que toda a escritura
é inspirada por Deus e
útil para ensinar, conforme ensinou o apóstolo Paulo (2Tim 3, 16),
porém, ela é palavra divina em linguagem humana e deve ser
entendida dentro da concepção científica e cosmológica da época
em que foi escrita. Compete a nós, que hoje lemos esses textos,
desapegar do fundamentalismo e da literalidade para assim alcançarmos
o seu significado mais apropriado para o nosso tempo.
Portanto,
o ensinamento de Cristo para que estejamos sempre vigilantes se
refere ao nosso tempo existencial. Por isso, essas leituras do tempo
do natal não devem ser assimiladas com um tom de ameaça ou de
aterrorização, mas como um apelo de vida consciente e centrada nos
nossos compromissos de cristãos.
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