COMENTÁRIO LITÚRGICO – A VIDA CONTINUA (FIÉIS DEFUNTOS) – 02.11.2014
Caros Confrades,
A liturgia deste domingo cede espaço para a comemoração dos fiéis defuntos, essa memória litúrgica que se insere logo após a festa de todos os santos. A celebração de finados, longe de ser uma referência à morte, é muito mais uma demonstração de fé na vida que continua. O cântico litúrgico desta comemoração destaca: a vida, pra quem acredita, não é passageira ilusão e a morte se torna nossa libertação. Muito antes da cristianização da Europa, os povos ali residentes já proclamavam sua fé na vida eterna, dentre civilizações orientais e ocidentais. Principal exemplo dessa crença temos nas muito famosas pirâmides do Egito, assim como nos requintados mausoléus europeus, onde pessoas ricas e poderosas eram “depositadas” após sua morte corporal, juntamente com seus pertences, porque o espírito delas continuaria a frequentar o local e utilizaria aqueles objetos.
O historiador francês Fustel de Coulanges, em sua clássica obra “A cidade antiga”, relata o resultado das pesquisas que efetuou dentre as diversas comunidades do oriente e do ocidente acerca do modo como eles acreditavam e vivenciavam a relação com seus mortos. Trata-se de uma obra cuja leitura é amplamente recomendada para aqueles que desejam conhecer as tradições mais antigas das raças humanas mais primitivas. Farei apenas duas referências. Entre os gregos, apesar de a religião oficial ser materialista e não acreditar na continuação da vida, havia grupos de espiritualistas, que se reuniam secretamente, para cultuar suas crenças e para fazerem comunicação com os falecidos. Exemplos deles eram os órficos e os pitagóricos. Sócrates era um dos adeptos dessa crença e Platão foi um dos seus grandes propagadores, sendo o pensamento deste o fundamento das muitas doutrinas espíritas que são conhecidas no mundo ocidental. E dentre os romanos, havia os deuses lares e penates, que não eram outros senão os espíritos dos familiares falecidos e que continuavam a ser lembrados como se estivessem presentes, através dos cultos da religião familiar. Cada família sepultava seus mortos no quintal da casa e, em certas ocasiões, as festas familiares eram realizadas junto dos túmulos, para que os espíritos participassem e onde eram deixadas comidas e bebidas, para que os espíritos dos mortos se banqueteassem com elas. É daí que vem o costume dos bebuns de darem “um gole para o santo” quando estão em suas sessões de consumo etílico, porque assim também os romanos faziam homenageando seus defuntos. Portanto, antes de ser propriamente cristão, o culto dos mortos já estava presente nas civilizações ancestrais da nossa.
Passando agora às leituras litúrgicas de hoje, temos a primeira retirada do livro de Jó (19, 23-27). A história de Jó é bem conhecida na nossa tradição cultural, acredita-se que esse livro tenha sido escrito quando o povo retornou do cativeiro da Babilônia, no qual muitos haviam perdido tudo e precisavam recomeçar suas vidas da estaca zero. O objetivo do seu autor é mostrar que a antiga tradição dos fariseus, chamada de “teologia da retribuição” precisava ser revista e mesmo abandonada. De acordo com essa tradição secular dos hebreus, o sofrimento era entendido como castigo divino por causa dos pecados de alguém, assim como a riqueza e a felicidade eram entendidas como benesses divinas pelas virtudes de uma pessoa. Então, a história de Jó, um homem justo e correto, que perdeu tudo (bens e família) e passou por sofrimentos sem conta vinha ensinar ao povo que uma coisa não tem nada a ver com a outra, ou seja, nem o sofrimento é castigo pelos pecados nem a vida feliz é resultado das virtudes, porque uma pessoa virtuosa também passa por sofrimentos. Tanto assim é verdade que, no final, Jó recuperou todas as riquezas que havia perdido, porque soube sofrer com resignação e sem perder a fé. De fato, nem é absolutamente certo que Jó tenha existido, ele pode ter sido uma espécie de personagem de um livro edificante, destinado a ensinar ao povo que o sofrimento é uma contingência da vida e que não está necessariamente ligado ao pecado, às ações contrárias à lei de Deus. Os amigos tentam convencer Jó de que ele sofre por causa dos seus pecados, mas ele tem consciência de que não é um pecador e proclama “eu sei que meu redentor está vivo e que se levantará sobre o pó” e meus olhos o contemplarão. Em nenhum momento, Jó apresentou desânimo ou duvidou da proteção divina, por isso foi recompensado por sua fidelidade e por sua confiança. Essa era a mensagem que os sábios de Israel queriam transmitir ao povo hebreu naquele difícil momento de reconstrução da sua sociedade após o cativeiro.
Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (Rm 6, 3-9), o Apóstolo ensina que Cristo ressuscitou dos mortos e assim também nós seremos semelhantes a ele na ressurreição. Paulo não precisou ensinar aos romanos que a vida continua após a morte, porque aqueles já acreditavam nisso. Eles não conheciam era o conceito de ressurreição, porque este não fazia parte das suas crenças. Pelo batismo, diz Paulo, nós morremos com Cristo, o velho homem presente em nós é sepultado, para que nós ressuscitemos para uma vida nova, o novo homem produzido pela fé em Cristo. É na morte de Cristo que somos batizados, para que ressuscitemos por Ele e vivamos com Ele. “Pelo batismo na sua morte, fomos sepultados com ele, para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim também nós levemos uma vida nova.” (Rm 6, 4). Daí que Paulo diz, na carta aos Filipenses (1, 21): para mim, viver é Cristo e morrer é lucro. Nesse mesmo diapasão, a oração eucarística, que antes era chamada de “cânon da missa”, assim professa: "Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível." Essa doutrina, sob outra perspectiva, se opõe à doutrina da reencarnação, ao enfatizar a nova reunião entre corpo e alma, na ressurreição. Assim consta no Catecismo atual: “Pela morte, a alma é separada do corpo, mas na ressurreição Deus restituirá a vida incorruptível ao nosso corpo transformado, unindo-o novamente à nossa alma (cf. Catecismo §1016).” E quando será essa ressurreição? Bem, essa é uma longa história. Melhor ficar, por enquanto, com a definição clássica e insuspeita: no último dia.
Dentre as igrejas cristãs não católicas, as autodenominadas evangélicas ou, como antigamente se dizia, os protestantes, não há celebração de finados. Isso porque Lutero não aceitou como autêntico o Livro de Macabeus e é neste livro que está a fundamentação teológica do culto aos finados. No 2º Livro dos Macabeus, capítulo 12, vers. 43 a 46, lemos: “(Judas Macabeu) tendo feito uma coleta mandou duas mil dracmas de prata a Jerusalém para se oferecer um sacrifício pelo pecado. Obra bela e santa, inspirada pela crença na ressurreição, porque se ele não esperasse que os mortos haviam de ressuscitar, seria coisa supérflua e vã orar pelos defuntos. Ele considerava que, aos falecidos na piedade está reservada uma grandíssima recompensa. Santo e salutar é esse pensamento de orar pelos mortos, para que sejam livres dos seus pecados". Os protestantes consideram apócrifo esse livro e assim, após o sepultamento, eles não mais visitam nem oram pelos mortos, porque já estão nas mãos de Deus. Porém, toda a tradição católica sempre preservou e valorizou esse culto. Tanto assim que, em tempos mais antigos, os cemitérios estavam localizados na parte de trás das igrejas. Ainda encontramos isso em algumas cidades do interior. E a prova de que essa tradição continua viva é a grande multidão que, sempre nessa data, comparece aos cemitérios a fim de rezar pelos seus mortos. E em Juazeiro do Norte, temos uma das mais tradicionais romarias do nordeste, fruto da devoção que o Padre Cícero tinha pelas almas do purgatório. O Papa Francisco, no seu sermão de hoje para os peregrinos presentes na Praça de São Pedro, recordou a força dessa tradição milenar, quando disse: “A tradição da Igreja sempre exortou os fiéis a rezarem pelos defuntos, em particular, oferecendo a Celebração Eucarística por eles: esta é a melhor ajuda espiritual que podemos dar às almas, especialmente às mais abandonadas. O fundamento da oração de sufrágio está na comunhão do Corpo Místico. Como reitera o Vaticano, "a Igreja peregrina sobre a terra, bem ciente desta comunhão de todo o corpo místico de Jesus Cristo, desde os primeiros tempos da religião cristã, tem honrado com grande piedade a memória dos mortos”. (Lumen Gentium, 50). A memória dos defuntos, o cuidado pelas sepulturas e os sufrágios são o testemunho de uma confiante esperança, enraizada na certeza de que a morte não é a última palavra sobre o destino do ser humano, porque o homem está destinado a uma vida sem limites, que tem sua raiz e sua realização em Deus.” E quem não se sente confortado e espiritualmente satisfeito quando presta essa justa homenagem aos seus parentes falecidos? Afinal, nós somos o resultado das ações e exemplos de vida que eles nos deixaram e que constituem as bases de nossas vidas, o mesmo exemplo que estamos deixando para os nossos descendentes. Penso que deve existir um grande vazio na alma de quem não acredita e não pratica esse ensinamento.
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