domingo, 27 de dezembro de 2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA - 27.12.2015

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 27.12.2015

Caros leitores,

No domingo do que medeia entre o Natal e o Ano Novo, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré. A festa litúrgica traz para as famílias cristãs o exemplo da família sagrada, encerrando o ano civil com um incentivo à reflexão sobre a situação das nossas famílias, local onde a humanidade se perpetua, não apenas no aspecto biológico, mas e principalmente, no aspecto cultural, valorativo, religioso, ético, atingindo a personalidade inteira das pessoas. Não é por outro motivo que vivemos em num mundo repleto de desajustes em todos os sentidos, ou seja, a falta de estrutura e segurança no ambiente familiar produz adultos insatisfeitos, imaturos, violentos, egoístas e despreparados para a vida.

Neste início do século XXI, a organização familiar passa por um período de turbulência nunca antes verificado. Com efeito, o modelo familiar tradicional, constituído por um homem, uma mulher e seus filhos, está agora competindo com outras modalidades familiares que não existiam no passado, quais sejam, as famílias resultantes de uniões homoafetivas, com filhos adotados, e ainda as famílias monoparentais: pai e filhos de diferentes mães, mãe e filhos de diferentes pais. A religião católica tem bravamente resistido a essas mudanças, que são consequências diretas da maior assimilação dos comportamentos sexuais alternativos na nossa sociedade, os quais se tornam cada vez mais frequentes e gozam de reconhecimento jurídico pelo Estado. Não pretendo fazer aqui um juízo de valor, deixo isso para a consideração de cada um. A análise que faço é apenas para destacar que a instituição social mais antiga que se conhece, que é a família tradicional, vem passando por uma reforma substancial, sendo motivo também de discussão legislativa no Congresso Nacional (Estatuto da Família).

Voltando ao tema inicial, a liturgia deste domingo coloca a família de Nazaré como o modelo da família perfeita, até mesmo com as eventuais vicissitudes que ocorrem em todos os grupos familiares: por exemplo, o 'pito' que Maria deu no menino Jesus, depois da estressante procura por Ele, na ocasião do retorno de Jerusalém, depois da Páscoa. Um puxão de orelhas educativo (agora proibido pela lei dos castigos corporais) nunca fez mal a ninguém, desde os tempos bíblicos.

Na primeira leitura, temos um trecho do livro do Eclesiástico (Eclo, 3, 3-17), também conhecido como Ben Sirac ou Sirácide, em alusão ao seu escritor. Este era um judeu chamado Jesus Ben Sirac, que escreveu uma meditação sobre a felicidade, partindo da sabedoria tradicional do povo hebreu, numa época em que a cultura grega se espalhava entre os judeus. O autor quis reforçar os valores hebraicos tradicionais, que não devem ser substituídos pela cultura alienígena, detalhando-os para ensinamento dos mais jovens. Este livro não fazia parte da antiga bíblia judaica, sendo por isso considerado deuterocanônico. Ele foi incluído no cânon da Bíblia Católica após muitas discussões sobre a pertinência disso, porque nem todos os Padres da Igreja antiga assim o consideravam. Foi um dos motivos do protesto de Lutero, que não concordava com a sua inclusão na Bíblia.

Dentro do tema geral do livro, que trata da felicidade, a leitura escolhida pela liturgia traz conselhos aos filhos sobre o respeito aos pais, que tem a aprovação e a bênção de Javé. O cuidado dos filhos com os pais idosos, mesmo quando já sem lucidez, além de ser uma obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação, para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé. O conteúdo do texto se aplica perfeitamente na nossa sociedade, como aliás se aplicou em todas as épocas, porque a relação pais e filhos foi sempre um dos pontos fundamentais de sustentação da sociedade e as admoestações da sabedoria antiga são, podemos dizer, perenes e supraculturais.

A segunda leitura, de Paulo a Colossenses (Cl 3, 12-21) exorta os membros daquela comunidade ao exercício da caridade, da tolerância e do amor fraterno, como regra básica para a harmonia que deve marcar a vivência dos cristãos. Paulo escreveu esta carta quando estava na prisão em Roma e soube de algumas desavenças que ocorriam entre os cristãos de Colossos. Conclama as esposas a serem solícitas com os maridos e estes a amarem as esposas e não ser grosseiros com elas. Depois, admoesta os filhos para obedecerem aos pais, até parece que Paulo procura complementar ou atualizar a leitura do Sirácide, texto que ele devia muito bem conhecer.

No evangelho de Lucas (Lc 2, 41-52), temos mais um daqueles detalhes da vida de Jesus que somente este evangelista veio a saber, por conta da sua convivência cotidiana com Maria. Inicia Lucas dando amostras da fidelidade da família de Nazaré ao cumprimento da Lei de Moisés, afirmando que os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa. Pela Lei mosaica, os jovens só tinham obrigação de acompanhar os pais para a celebração da Páscoa a partir dos 13 anos de idade, mas José e Maria levaram Jesus um pouco mais cedo, aos 12 anos, deduzindo-se que aquela teria sido a sua primeira participação. No retorno, ele se desgarrou do grupo e isso não foi percebido pelos seus pais, pois essas viagens a pé eram feitas em caravanas compostas de parentes e pessoas residentes em Nazaré e em cidades próximas. Nesse grande grupo, por certo as crianças maiores tinham liberdade para circular entre os parentes e conhecidos, de modo que a ausência de Jesus não foi notada de imediato. Provavelmente foi na primeira dormida, por não ter ele voltado para o grupo dos pais, que deram conta de sua falta. Por isso, diz Lucas que eles haviam caminhado já um dia inteiro quando perceberam a ausência do menino e voltaram a Jerusalém para procurá-lo.

Cada um de nós, pela experiência de pais e mães, pode imaginar a aflição de José e Maria por terem 'perdido' o menino numa cidade grande, cheia de estrangeiros, no meio destes também gente de maus costumes (porque isso há em todo lugar), pode supor o que se passava na cabeça e no coração deles. E ainda demorou um tempo enorme: três dias de buscas, que devem ter parecido uma eternidade. Jerusalém, em tempos de festa da Páscoa, devia ficar assim como ficam as nossas cidades romeiras de Canindé e Juazeiro do Norte, na época dos festejos. Quem já esteve lá nesses períodos, pode fazer melhor uma ideia do ambiente. Vê-se que, apesar de toda a fé, que certamente nunca lhes faltou, a situação psicológica de José e Maria era de grande estresse e angústia, tanto que, ao encontrarem o menino na sinagoga, ao invés de se sentirem aliviados, deram-lhe um 'puxão de orelhas': porque você fez isso conosco, disse Maria?

Eu fico aqui imaginando a cena de Maria contando essas histórias para Lucas. Com certeza, um grande exercício de paciência deste, porque penso que somente a muito custo Maria concordava em revelar certos detalhes. E para ela falar no 'pito' que deu no menino após a angustiante procura, deve ter sido permeado de reticências, as quais Lucas ia completando com o conhecimento que ele tinha da personalidade de Maria. E a resposta de Jesus até parece indelicada, pois o mais esperado seria um pedido de desculpas. No entanto, Ele chegou a ser até arrogante ao dizer: eu estava cuidando das coisas do meu Pai... e Maria se acalmou e conservou mais este mistério em seu coração.

Com este episódio, o evangelista Lucas conclui a parte em que trata da infância de Jesus. Certamente, Maria deve ter contado a ele outros detalhes que, no entanto, não foram incluídos neste escrito. Depois deste fato, Jesus já vai aparecer adulto, com cerca de 30 anos. As especulações dos estudiosos indicam que, nesse meio tempo, ele frequentou uma escola rabínica, provavelmente a escola dos Essênios, uma comunidade que existiu nas margens do Mar Morto e que foi destruída por ocasião da dominação romana. Embora sendo Deus, Jesus não 'nasceu sabendo' as escrituras, ele precisou estudar e assim, quando iniciou sua missão no deserto, após o batismo por João, Ele já tinha conhecimento suficiente da Lei de Moisés e dos Profetas, como os doutores do seu tempo. O que o evangelista fez questão de ressaltar foi que, superado esse episódio, o menino foi obediente em tudo aos seus pais. Esse exemplo de harmonia familiar é o grande legado que devemos aprender da Sagrada Família de Nazaré, o qual deve ser assimilado também pelos modelos familiares alternativos, para que sempre se orientem no sentido dos verdadeiros ensinamentos cristãos.

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