COMENTÁRIO LITÚRGICO – 31º DOMINGO
COMUM – CORRIGIR COM CARINHO – 30.10.2016
Caros Leitores,
A liturgia deste domingo nos convida a
refletir sobre a atitude que devemos ter para com aqueles irmãos que
erram, aqueles que procedem mal e causam transtornos e dificuldades
nas relações interpessoais. Na antiguidade, havia duas categorias
de pessoas, que eram consideradas pecadores públicos e todos os
evitavam: as prostitutas e os cobradores de impostos. De acordo com a
tradição do povo hebreu, essas pessoas estavam irremediavelmente
perdidas e nem podiam disfarçar as maldades que cometiam. No
entanto, Jesus mostrou com suas atitudes uma outra maneira de nos
relacionarmos com os irmãos 'pecadores', como é exemplificativo o
episódio do seu encontro com Zaqueu, narrado no evangelho.
Na primeira leitura, extraída do livro
da Sabedoria (Sb 11,22 – 12-2), vemos uma imagem de Javeh
misericordioso, que de todos tem compaixão, que fecha os olhos para
os pecados dos homens, a fim de que se arrependam. Diz o escritor
sagrado: “A
todos, porém, tu tratas com bondade, porque tudo é teu, Senhor,
amigo da vida… É
por isso que corriges com carinho os que caem e os repreendes,
lembrando-lhes seus pecados, para que se afastem do mal e creiam em
ti, Senhor.”
(11,26-12,2) Este livro, cuja autoria é atribuída pela tradição a
Salomão, embora haja controvérsias, reproduz a histórica cultura
dos hebreus numa época de grande influência do pensamento grego
materialista e imanentista no ambiente dos judeus residentes nas
cidades de língua grega, muitos dos quais renegavam as suas origens
para aderirem à nova cultura. O que se observa de mais curioso na
leitura deste livro é a imagem de Javeh compassivo, diferente
daqueloutra figura transmitida em outros textos antigos, mostrando um
Deus irritado e vingativo. O autor sapiencial destaca a misericórdia
de Javeh e o cuidado especial que ele dedica aos que se desviam do
bom caminho, numa alusão antecipada da conduta que Cristo iria
praticar com aqueles mais desprezados da comunidade judaica. E o
hagiógrafo justifica essa atitude misericordiosa de Javeh da
seguinte maneira: “Sim,
amas tudo o que existe, e não desprezas nada do que fizeste; porque,
se odiasses alguma coisa não a terias criado.”
(11, 24) Jesus Cristo, tempos depois, faz uma outra afirmativa nesse
mesmo sentido, quando explica: “Os sãos não necessitam de médico,
mas os enfermos, sim. “(Mt 9, 12) As pessoas que, por algum motivo,
vieram a desviar-se dos seus compromissos cristãos não devem ser
alijados e evitados, mas atraídos de novo para o núcleo do rebanho.
Na segunda leitura, retirada da carta 2
de Paulo aos Tessalonicenses (1,11 – 2,2), o apóstolo exorta
delicadamente os cristãos daquela cidade sobre certas inverdades que
ali foram divulgadas, numa espécie de carta a ele atribuída,
contendo informações duvidosas acerca da vinda de Cristo, fato que
perturbou alguns fiéis e os levou até a abandonarem os trabalhos só
esperando a vinda de Cristo. Assim, ociosos, dedicavam à
maledicência e à preguiça. O Apóstolo chama a atenção deles
para que prossigam regularmente com as suas atividades, porque a
vinda de Cristo deve ser aguardada como um fato da vida ordinária,
não se justificando o afastamento das atividades próprias de cada
um, pois isso tramaria contra os ensinamentos do próprio Cristo.
Naquela comunidade, havia um grande contingente de judeus adversários
do cristianismo, que espalhavam notícias falsas e conseguiam
convencer os cristãos de fé vacilante. Porém, Paulo sabia que não
podia adotar críticas drásticas, pois isso contribuiria para uma
maior divisão interna dos fiéis. Por isso, ele usa palavras bem
cordiais para advertir os mais incautos e desse modo
reconquistar-lhes a confiança. Diz ele, no cap. 3, 14-15 (não
incluído na leitura de hoje): “Se alguém desobedecer ao que
dizemos nesta carta, marquem-no e não se associem com ele, para que
se sinta envergonhado; contudo, não o considerem como inimigo, mas
chamem a atenção dele como irmão.” O nosso povo sertanejo
tem um ditado popular, que bem se encaixa nesse contexto: “quem
quer pegar a galinha, não diz xô”. A advertência ao irmão que
errou não pode chegar ao ponto de distanciá-lo ainda mais do
verdadeiro caminho.
Na leitura do evangelho de Lucas (19,
1-10), essa atitude de perdão compassivo da parte de Jesus está
exemplarmente mostrada no episódio envolvendo Zaqueu, o cobrador de
impostos de Jericó. Os publicanos, como eram chamados esses
profissionais, eram odiados pela população das cidades judaicas
dominadas pelos romanos, porque os consideravam traidores do povo,
visto que estavam a beneficiar o inimigo com suas cobranças, além
de eventualmente praticarem a extorsão e até de se apropriarem do
que recolhiam. A figura do cobrador de impostos é escarnecida em
todas as épocas históricas, como exemplo de arrogância, ganância,
insensibilidade, desfaçatez, arbitrariedade, todos os tipos de
maldades. Zaqueu não foi o único desses profissionais aos quais
Jesus deu uma atenção especial. Mateus também era publicano e
Jesus o interpelou de forma inapelável: segue-me! E ele se tornou um
dos doze discípulos. No caso de Zaqueu, a iniciativa foi deste ao
querer conhecer Jesus.
Há uma curiosidade etimológica a ser
destacada aqui, em relação ao nome de Zaqueu, que se escreve em
hebraico “zakkay” e significa puro, justo. Contraditoriamente à
sua profissão, o seu nome indicava as virtudes que ele devia
possuir, embora estas ficassem obscurecidas pela sua atividade
rotineira. Mas Jesus sabia o que se passava na sua alma, quando ele
subiu na figueira, para poder vê-Lo, já que era de baixa estatura e
havia grande multidão ao redor de Jesus, naquela sua passagem por
Jericó. Zaqueu não podia perder aquela oportunidade, pois não
sabia quando isso iria acontecer novamente, porém jamais esperava
vê-Lo assim tão de perto, tencionava olhar de cima da figueira e
passar despercebido de Jesus e da multidão. Qual não foi o seu
espanto, quando Jesus o chamou pelo nome e ordenou que descesse. Como
Jesus sabia o nome dele, pois nunca o tinha visto? E a sua surpresa
maior ainda estava por vir, quando Ele falou: hoje vou hospedar-me na
tua casa. Zaqueu tinha consciência fama associada à profissão que
exercia e não se sentia digno de aproximar-se de Jesus, quanto mais
de recebê-lo na própria casa. O autoconvite de Jesus para visitar a
casa de Zaqueu desmontou totalmente as suas estruturas psicológicas:
eu não sou digno disso, vou ter que fazer algo para merecer, algo em
retribuição a tamanha distinção. E então declarou: vou
distribuir metade dos meus bens para os pobres e retribuir em
quádruplo para quem eu tenha fraudado. E Jesus arrematou: hoje
entrou a salvação nesta casa, porque também este homem é filho de
Abraão.
Meus
amigos, a imagem de Zaqueu simboliza o arrependimento do pecador
diante da misericórdia de Deus. Se Jesus tivesse aplicado a ele uma
repreensão, como provavelmente os fariseus esperavam, quando Jesus
mandou que ele descesse, a reação de Zaqueu teria sido de
distanciamento e de raiva. No mundo religioso hipócrita dos
fariseus, não havia espaço para um pecador público. Eles deviam
pensar que, naquela cidade, havia tantas pessoas boas, honradas e
dignas, que poderiam muito bem hospedar Jesus e se sentiriam
sumamente prestigiadas com isso. Porque Jesus vai escolher a casa de
um publicano para visitar e hospedar-se? Pois é, dentro da lógica
humana (e do próprio Zaqueu, que não imaginava que isso fosse
acontecer), ele estaria excluído dos “bem-aventurados” referidos
no sermão da montanha, mas dentro da lógica de Cristo, a ele foi
ofertada a salvação e ele muito que aceitou.
O
Papa Francisco, no sermão para os fiéis que estavam na Praça de
São Pedro, fez o seguinte comentário, a
propósito desse evangelho:
“Não
existe profissão ou condição social, não há pecado ou crime de
qualquer gênero que possa cancelar da memória e do coração de
Deus um filho sequer. “Deus recorda, sempre, não esquece nenhum
daqueles que criou; Ele é Pai, sempre à espera vigilante e amorosa
de ver renascer no coração do filho o desejo de retornar à casa. E
quando reconhece este desejo, mesmo que simplesmente manifestado, e
tantas vezes quase inconsciente, imediatamente põe-se a seu lado, e
com o seu perdão lhe torna mais leve o caminho da conversão e do
retorno.”
O
convite que Jesus fez a Zaqueu, ignorando que ele era um pecador
público e,
como filho de Abraão, era também digno da salvação, enche
de esperança a todos nós, que ainda estamos na “grande
tribulação” e, portanto, sujeitos às maiores adversidades no
cumprimento fiel à nossa vocação cristã. A atitude de Cristo é a
certeza de que, em qualquer circunstância, ele não levará em
consideração as nossas fraquezas, mas a intensidade da nossa fé.
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