COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO
COMUM – O TAMANHO DA FÉ – 02.10.2016
Caros Leitores,
Neste 27º domingo comum, as leituras
litúrgicas abordam o tema da fé e a sua inserção na nossa vida
cotidiana, questionando-nos sobre o tamanho da nossa fé (se é que
podemos medi-la). A vivência na fé é um exercício reflexivo
permanente, dinâmico, sempre em progresso, aumentando cada vez que
somos capazes de perceber e compreender a ação de Deus na nossa
vida. O resultado da fé é a justiça. O justo vive pela fé.
Observando os fatos da vida cotidiana à luz da fé, podemos
descobrir a mão de Deus no comando dos acontecimentos, até nos
menores detalhes.
Na primeira leitura, retirada do
profeta Habacuc (trechos dos cap. 1 e 2), vemos o profeta reclamando
de Javeh porque clama e não é atendido. Habacuc tem a ousadia de
questionar Javeh: “até quando clamarei sem que me atendas?”, o
que é uma atitude incomum no Antigo Testamento, onde a figura de
Javeh é mostrada como um Deus irado e vingativo, quase intolerante.
Interpelar Javeh dessa forma era uma atitude arriscada. Mas o profeta
não tinha dúvidas de que fazia a súplica do modo correto e
esperava o resultado, no entanto, nada acontecia. Javeh, então,
mostrou a Habacuc uma visão desoladora, da qual ele teve muito medo,
e Javeh disse: escreve isso em tábuas, para que fique fácil para o
povo ler. E espera, porque ainda nesta geração, essas coisas
acontecerão: “Os infiéis morrerão, mas os justos viverão pela
sua fé.” A grande catástrofe que estava por vir contra os infiéis
era a invasão dos exércitos da Babilônia, a destruição de
Jerusalém e a condução do povo hebreu como escravos daquele país.
O profeta ficou deveras preocupado, porque pedia a Deus um castigo
para o povo infiel, mas não imaginava que Ele fosse tão impiedoso.
O próprio Habacuc foi levado como escravo para a Babilônia, algum
tempo depois, de acordo com a promessa de Javeh. No entanto, sendo
justo, ele sobreviveu e foi libertado, também de acordo com a
promessa de Javeh.
Na segunda leitura,
sequência da carta de Paulo a Timóteo, que vem sendo lida nos
domingos anteriores, o Apóstolo exorta o discípulo a permanecer
firme na fé, “pois
Deus não nos deu um espírito de timidez mas de fortaleza, de amor e
sobriedade.” (2Tim
1,7). Paulo escreveu esta carta enquanto estava preso, aguardando
julgamento pelo tribunal romano, por causa da sua fé em Jesus Cristo
e convida Timóteo a sofrer com ele. Na carta a Filipenses (1, 21),
Paulo também escreveu que “para mim, viver é Cristo e morrer é
lucro”, porque ele sabia muito bem que a morte não tiraria a sua
vida na fé em Cristo, pelo contrário, morrer pela fé apenas
abrevia os sofrimentos e introduz o fiel na vida plena. Paulo
escreveu diversas cartas enquanto estava preso e, em todas elas, dá
o testemunho de sua fé irrestrita, mesmo antevendo as provações
que o aguardavam. Ele compreendia muito bem a palavra de Javeh ao
profeta Habacuc: o justo vive pela fé.
Na leitura do evangelho (Lc 17, 5-10),
vemos exemplos práticos dados pelo próprio Cristo sobre a avaliação
que cada um pode fazer da medida da sua fé. É a conhecida passagem:
“'Se
vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda,
poderíeis dizer a esta amoreira: `Arranca-te daqui e planta-te no
mar', e ela vos obedeceria.
” (Lc 17, 6) Meus amigos, é hora de cada um de nós baixar a
cabeça e refletir sobre o “tamanho” da nossa fé. Talvez seja
necessário usar uma grande lupa para podermos observá-la. Um grão
de mostarda é menor do que um caroço de arroz cru, do que uma
semente de gergelim. É óbvio que se trata de um raciocínio
metafórico, porque a fé não pode ser comparada a um objeto físico.
Mas se alguém fizer uma comparação entre a sua altura e o tamanho
de uma semente dessas, verá uma enorme desproporção. Assim também
deverá acontecer quando compararmos a altura do nosso soberba com o
tamanho da nossa fé. E imaginemos que essa fé, ainda que minúscula,
seria capaz de transportar uma montanha. Nem vamos continuar essa
linha de raciocínio...
Refletindo sobre o tema da fé, vale
recordar o evangelho de Mateus, cap. 14, onde lemos aquele conhecido
episódio em que os discípulos estavam pescando à noite, com um mar
agitado, e viram Jesus caminhando sobre as águas. Pedro, como
sempre, impetuoso, disse logo: posso ir também? E Jesus disse: vem.
Mas logo ele começou a afundar. “E Jesus, estendendo a mão,
segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que
duvidaste?” (Mt 14, 31). Homens de pouca fé é o que nós
também somos. Quantas vezes, nos lamentamos diante de certas
ocorrências e até pensamos que Deus se esqueceu de nós. Nesse
momento, deve soar no nosso ouvido a advertência de Jesus a Pedro:
Homem de pouca fé, por que duvidaste? O justo viverá pela sua fé,
ecoa do outro lado a visão do profeta Habacuc.
Acerca da fé, o autor da carta aos
Hebreus faz a definição talvez mais perfeita em linguagem humana:
“A fé é uma posse antecipada
do que espera, um meio de demonstrar as realidades que não se veem.”
(Hb 11,1) Para
a teologia cristã, a fé é um estado de espírito
no qual a
pessoa
se envolve irresistivelmente com o objeto de sua crença,
convencendo-se da realidade invisível por meio de uma experiência
existencial profunda. Em vista de uma melhor compreensão deste
fenômeno, ao longo do tempo, os teólogos têm buscado
na filosofia um auxílio racional para esclarecer o sentido do enigma
que envolve a fé. Os grandes expoentes da filosofia e teologia
medievais foram unânimes em afirmar que não existe oposição, mas
uma relação de complementaridade entre a fé e a razão. Santo
Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto
Magno, sempre defenderam esse ponto de vista, o que vem servindo de
apoio logístico para a doutrina teológica até os dias de hoje.
O Papa Francisco, no ano de 2013,
publicou uma encíclica, cujo rascunho fora escrito por Bento XVI,
mas que o Papa concluiu e publicou em nome próprio. Trata-se da
encíclica “Lumen Fidei” (Luz da Fé). No n.º 7 desse documento,
ele admite isso: «Estas considerações sobre a fé - em
continuidade com tudo o que o magistério da Igreja pronunciou acerca
desta virtude teologal - pretendem juntar-se a tudo aquilo que Bento
XVI escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridade e a esperança.
Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta
encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na
fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me
a acrescentar ao texto qualquer nova contribuição». E no número
32, ele prossegue: “O encontro da mensagem evangélica com o
pensamento filosófico do mundo antigo constituiu uma passagem
decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e favoreceu uma
fecunda sinergia entre fé e razão, que se foi desenvolvendo no
decurso dos séculos até aos nossos dias.” A antiga formação
seminarística, no curso de filosofia, abordava exatamente essas
“contribuições” dos filósofos antigos e medievais para o
melhor esclarecimento da fé, pois o curso era baseado na filosofia
tomista. Lamentavelmente, o curso seguido pelos seminaristas de hoje
já não segue essa perspectiva, em vez disso, carrega forte acento
no pensamento filosófico contemporâneo, o qual não fornece base
teórica suficiente para o entendimento do pensamento teológico
católico, totalmente ainda embasado na filosofia medieval. Por isso,
percebe-se claramente a diferença quando se ouve uma homilia de um
sacerdote mais antigo, em comparação com os presbíteros mais
modernos, em relação ao fundamento filosófico que cada um
demonstra (ou não) possuir.
Nos tempos modernos, a tecnologia e o
cientificismo tendem a anular a fé ou mostrá-la como atitude de
pessoas fracas e sem argumentos. A fé ficou associada à escuridão,
adverte o Papa. Mister se faz encontrar o seu verdadeiro sentido.
Ora, se na época de Cristo, os discípulos pediram para que Ele lhes
aumentasse o tamanho da fé, quando mais devemos pedir isso nos
tempos atuais. É útil ter sempre em mente a advertência do profeta
Habacuc: o justo viverá por sua fé. Uma maneira didática de obter
um aumento da fé é buscar sempre encontrar a mão de Deus nos
acontecimentos da nossa vida. Assim, estaremos continuamente
aumentando o tamanho da nossa fé.
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