COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO
COMUM – ORAÇÃO E HUMILDADE – 23.10.2016
Caros Leitores,
As leituras da liturgia deste 30º
domingo comum nos levam a meditar sobre a atitude interior que
devemos ter, quando oramos. A oração supõe sempre uma confissão
de impotência e um sentimento de humildade. A oração do humilde
atravessa as nuvens e não passará despercebida pelo Senhor. Ele é
um justo juiz, que consegue sondar os nossos sentimentos mais
profundos e é inútil tentar camuflar o orgulho e a autossuficiência
com palavreados sonoros e encenações caprichosas. Orar somente com
os lábios, sem a humildade do espírito, é igual ao címbalo que
tine: faz grande barulho, mas seu interior é oco, sem conteúdo.
Na primeira leitura, extraída do livro
do Eclesiástico (35, 15-22), temos a descrição de Javeh como o
justo juiz, aquele que não faz distinção entre as pessoas nem usa
de parcialidade nos seus julgamentos. O livro do Eclesiástico, cuja
autoria é atribuída a Jesus Ben Sirac, foi escrito para lembrar aos
hebreus, numa época de mudanças sócio políticas, a fidelidade de
Javeh contida na Lei de Moisés, que é a verdadeira sabedoria
divina. Esta expressão “lei de Moisés” não significa um texto
legislativo específico, mas refere-se à aliança e à promessa de
Javeh com Abraão e seus descendentes, lembrando ao povo que não
podem misturar o judaísmo tradicional com os novos costumes dos
povos estrangeiros, porque isso deturpa a aliança celebrada com os
antigos patriarcas. Sendo um justo juiz, o Senhor não deixa de
atender às preces daqueles que o invocam, sobretudo os excluídos da
sociedade (pobres, órfãos e viúvas), os mais humildes. “A
prece do humilde atravessa as nuvens: enquanto não chegar não terá
repouso; e não descansará até que o Altíssimo intervenha, faça
justiça aos justos e execute o julgamento.”
(Eclo, 35, 21) O Senhor não se deixa levar pelas aparências, mas
perscruta a nossa interioridade, atendendo aos que o procuram com
coração sincero e humilde. Esta referência do Eclesiástico irá
encontrar eco, tempos depois, na oração do publicano, que Jesus
compara com a oração do fariseu, no trecho do evangelho de Lucas,
lido também neste domingo.
A segunda leitura, dando continuidade
ao texto da segunda carta a Timóteo, iniciada nos domingos
anteriores (2Tim 4, 6-18), é o epílogo da carta, no qual Paulo
comenta que combateu o bom combate, terminou a carreira e guardou a
fé. Tendo cumprido a sua missão, recebida de Cristo, ele agora
espera apenas o desfecho final de sua vida, sabendo que o seu
sacrifício está cada vez mais próximo. E faz sua confissão de fé
e confiança no Senhor, justo juiz, que outorgará a coroa da vitória
a ele e a todos os que permanecerem firmes na fé. Fala ainda, com
tristeza, dos amigos que o abandonaram no seu julgamento perante o
tribunal, pedindo que o mesmo justo juiz não leve isso em conta,
quando chegar o tempo do julgamento deles. Segundo os historiadores,
esta carta teria sido, provavelmente, a última escrita por Paulo,
pouco antes de sua morte, na época da grande perseguição dos
cristãos pelo imperador Nero, que mandou incendiar a cidade de Roma
e colocou a culpa disso nos cristãos, insuflando os romanos a
persegui-los. Numa época de grandes arbitrariedades cometidas pelo
imperador Nero, que usava os cristãos como bodes expiatórios dos
seus próprios desmandos, Paulo aproveita a imagem do sádico
imperador para fazer o contraponto com o justo juiz, que é o Senhor,
e que dará a coroa a todos os que combatem o bom combate. A queixa
de Paulo sobre ter sido abandonado na prisão em Roma, segundo os
historiadores, deveu-se ao fato de que, com a grande perseguição,
os amigos de Paulo na sociedade romana, que eram cristãos em sigilo,
tinham muita dificuldade em ir visitá-lo, por causa dos evidentes
riscos que isso acarretava.
Na leitura do evangelho deste domingo,
dando sequência ao evangelista Lucas (18, 9-14), temos a muito
conhecida parábola em que Jesus faz a comparação entre a oração
do fariseu e a oração do publicano (cobrador de impostos). De
acordo com o próprio evangelista, o objetivo que Jesus tinha em
mente era ensinar que não se deve confiar nos próprios julgamentos,
nem a respeito de si nem a respeito dos outros. A cena descrita é
clássica: o fariseu orgulhoso e arrogante reza fazendo autoelogios
e, ao mesmo tempo, lançando um ar de desdém para o publicano,
pecador público, que estava rezando ao seu lado. Enquanto isso, o
publicano, em atitude de humildade, rezava apenas pedindo perdão.
Como em diversas outras ocasiões, Jesus toma o exemplo do fariseu
para nos ensinar que as ações exteriores não bastam, mas é
necessário que essas sejam o reflexo do nosso sentir interior. Os
fariseus se consideravam justos e automaticamente salvos, porque
cumpriam rigorosamente a lei (“jejuo duas vezes por semana e dou o
dízimo de toda a minha renda”), mas faziam assim apenas para serem
vistos e elogiados pelos outros, isso não correspondia a um
sentimento íntimo de piedade e de convicção. Por isso, tal oração
não tinha nenhum valor.
Observemos que Jesus não diz que o
fariseu agia mal em cumprir a lei, pois a lei é mesmo para ser
cumprida. O problema está no julgamento que o fariseu fazia de si
próprio, ou seja, na sua falta de humildade. O livro do
Eclesiástico, conforme visto na primeira leitura, já dizia que a
prece do humilde atravessa as nuvens e chega até o céu e suas
súplicas são sempre atendidas. O fariseu da parábola tinha uma
elevada presunção de santidade, segundo a sua própria justiça,
não segundo a justiça divina. E com a mesma facilidade com que
julgava a si mesmo uma pessoa santa, também arriscava-se a julgar o
seu próximo, pecador público, como alguém que não merecia a
salvação e o perdão. Ora, diz Jesus, o publicano voltou para casa
justificado; o fariseu, não.
Podemos fazer aqui uma ligação com
outra parábola na qual Jesus compara a oferta da viúva com a oferta
do fariseu (Marcos 12, 43), quando a viúva colocou apenas duas
pequenas moedas, enquanto o fariseu depositou vários dobrões, que
tilintavam no fundo do cofre. E Jesus concluiu: a viúva ofertou mais
do que o outro, porque ela deu tudo o que possuía. Enquanto o
fariseu doava o que lhe sobrava, a viúva doava toda a sua fortuna.
Seguindo a mesma linha de raciocínio do parágrafo anterior, Jesus
não censura o fariseu por colocar moedas valiosas, mas recrimina o
modo como ele se considera autêntico cumpridor da lei, porque dá o
dízimo de toda a sua renda. O problema não está no tamanho da
oferta, mas no autojulgamento, isto é, no fato de ele se considerar,
por isso, merecedor da salvação, confiando-se na sua própria
justiça e não na justiça divina.
Meus amigos, nesse contexto, devemos
nos lembrar da advertência do apóstolo Paulo aos Coríntios (10,
12): aquele que pensa estar de pé, cuide para que não caia. O
autojulgamento é uma tentação constante na nossa vida. Nos nossos
dias, há muitos cristãos que pensam já estar com a salvação
garantida porque vão à missa aos domingos, participam dos
sacramentos, rezam o terço, pagam o dízimo, etc., mas fazem isso
como uma obrigação formal, como um costume tradicional, uma prática
de exterioridade, não colocam o coração junto com a sua oferta.
Essa atitude do fariseu, reprovada por Cristo na parábola, pode ser
uma ameaça velada e constante na nossa prática de cristãos, quando
cumprimos nossos deveres religiosos apenas por obrigação e sem
refletir sobre o significado eclesial de nossas atitudes, sobretudo
quando tais atos são acompanhados do julgamento que fazemos do nosso
próximo, com o qual inconscientemente nos comparamos. Se eu vou à
missa dominical e recebo os sacramentos, mas na vida social não
pratico a caridade com os irmãos, meus atos religiosos são vazios
de significado. A parábola do fariseu e do publicado deve ser
permanente motivo de exame de consciência de todos nós, para que
evitemos a sempre cômoda atitude de fazer julgamento das atitudes
dos outros, valendo-nos do nosso próprio conceito de justiça.
Algumas vezes, censuramos o comportamento de outras pessoas e,
posteriormente, nos surpreendemos praticando aquelas mesmas atitudes.
Daí a oportuna exortação do apóstolo Paulo: quem pensa estar de
pé, cuide para que não caia. Antes de observarmos maldosamente as
ações do nosso próximo, devemos tentar compreender seus motivos e,
se for o caso, ajudá-lo a superar seus defeitos e dificuldades, em
vez de criticá-los. Assim, evitaremos julgar pela nossa justiça
pessoal, deixando essa tarefa para o justo juiz de todos nós.
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