COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA
PÁSCOA – FUGINDO PARA EMAÚS – 30.04.2017
Caros Leitores,
A liturgia deste terceiro domingo da
Páscoa nos dá uma pequena demonstração do “trabalho” que
Jesus teve para preparar o grupo de seus discípulos, para que dessem
continuidade à propagação da sua boa nova. Quando nós lemos sobre
os primórdios do cristianismo, entendemos melhor de que modo a mão
de Deus protegeu e guiou essas primeiras comunidades, de forma a
mantê-las vivas e ativas, após o final da missão de Cristo. Muitas
pessoas dizem: “ah, o Império Romano promoveu a Igreja e lhe deu
sustentação política...” é inegável que isso aconteceu, porém
apenas em parte, a conclusão é veraz. Esse apoio institucional do
Roma se deu somente no século IV, por obra de Constantino. Mas até
lá, foram mais de 300 anos de muita luta e, por cima de tudo,
enfrentando perseguições cruéis, até que o vento soprasse
favoravelmente. A Igreja de Cristo não dependeu do Império Romano
para se manter, ao longo desses 300 anos iniciais, ao contrário, os
imperadores romanos anteriores a Constantino tentaram, de diversas
maneiras, destruir essas comunidades. Sem deixar de mencionar também
a perseguição que os primeiros cristãos sofreram por parte dos
chefes dos sacerdotes judeus, conforme se veem relatos nos Atos dos
Apóstolos. Passemos à análise das leituras.
As duas primeiras leituras deste
domingo dão ênfase ao trabalho de Pedro, nos primórdios do
cristianismo (Atos 2, 14-33 e 1Pd 1, 17-21). Pedro não tinha o mesmo
preparo intelectual nem a mesma eloquência de Paulo, observa-se isso
bem pelo seu estilo, pela sua argumentação. Não precisa grande
esforço para perceber que o estilo da pregação de Pedro não tem a
força persuasiva, a construção elegante do raciocínio e a
profundidade reflexiva dos escritos de Paulo. E Pedro era, mesmo
assim, aquele mais esperto, tanto que foi indicado por Cristo como
líder do grupo. Essa dificuldade pedagógica de Cristo pode ser
percebida também nas palavras de Lucas, no evangelho lido hoje,
quando ele censura os fujões, que iam retornando para a sua cidade,
após a crucificação: 'Como
sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas
falaram! Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar
na sua glória?' (Lc
24, 25-26). A solução de Jesus foi cooptar Paulo, um judeu
fervoroso, perseguidor implacável e transformá-lo num mais
fervoroso ainda discípulo e propagador do evangelho. O chamado de
Paulo foi uma consequência dessa dificuldade que Jesus enfrentou
para formar um grupo de discípulos e continuadores do seu trabalho,
dada a grande limitação humana dos vocacionados galileus.
Na primeira leitura, um trecho dos Atos
dos Apóstolos, Pedro faz uma pregação para o povo no dia de
Pentecostes e faz uma interpretação bastante extensiva do Salmo 15,
atribuído a Davi, no qual ele canta: “ meu
corpo no repouso está tranquilo; pois não haveis de me deixar
entregue à morte, nem vosso amigo conhecer a corrupção”
- este salmo é rezado também na liturgia de hoje – aludindo a
que Davi estaria profetizando a ressurreição de Cristo. Vejamos
como Pedro interpretou essa passagem: “o
patriarca Davi morreu e foi sepultado e seu sepulcro está entre nós
até hoje.
Mas,
sendo profeta, sabia que Deus lhe jurara solenemente que um de seus
descendentes ocuparia o trono.
É,
portanto, a ressurreição de Cristo que previu e anunciou com as
palavras.”
Percebe-se que Pedro
não tinha lá um grande entrosamento com as Escrituras e foi buscar
um trecho de um salmo para tirar daí uma conclusão bem diferente do
que os exegetas habitualmente fazem. Os salmos não são livros
proféticos, são cânticos ora de louvor, ora de arrependimento, ora
de confissão, ora de lamento, além do que Davi não era exatamente
um profeta. Com todo respeito à figura apostólica singular de
Pedro, mas sabe-se que ninguém dá o que não tem e, no caso dele,
nem mesmo com a suprema inspiração do Espírito Santo, ele foi
muito feliz na referência ao rei Davi. Ou seja, se a Igreja de
Cristo tivesse que depender somente da pregação dos doze discípulos
originais, teria sucumbido logo no início.
Na segunda leitura, da primeira Carta
de Pedro (1Pd 1, 17-21), vemos uma referência aos judeus
convertidos, que se espalhavam por toda a Ásia Menor. Os estudiosos
colocam em dúvida a autoria de Pedro, por causa de certas
semelhanças com o estilo de Paulo, porém outros justificam que o
escriba desta carta teria sido Silas, que era discípulo de Paulo, e
ao escrever a pedido de Pedro, teria mostrado uma certa influência
paulina. Este trecho demonstra bem que Pedro se referia aos judeus
convertidos: “Sabeis
que fostes resgatados da vida fútil herdada de vossos pais, não por
meio de coisas perecíveis, como a prata ou o ouro, mas pelo precioso
sangue de Cristo, como de um cordeiro sem mancha nem defeito
” (18-19) Também o versículo anterior a este denota que os
destinatários eram judeus dispersos, que viviam em locais onde
pagãos e judeus não convertidos eram maioria e tinham atitudes
hostis para com os judeus convertidos: “vivei
então respeitando a Deus durante o tempo de vossa migração neste
mundo.” (17) A
palavra traduzida por “migração”, no texto acima, corresponde
no original grego ao vocábulo “paroikias”, que significa a
situação daquele 'que vive num país estrangeiro' e isso se
aplicava nos dois sentidos, tanto no sentido material político da
época (cristãos vivendo em cidades judias) quanto no sentido
espiritual da “peregrinação” terrestre, a caminho do céu. Como
deve ser do conhecimento de todos, enquanto Pedro e os outros
discípulos desenvolveram seu trabalho na Ásia Menor, onde havia a
maior quantidade de população judia, o trabalho de Paulo se voltou
para as comunidades gregas, na época dominada pelos romanos,
expandindo suas atividades até a própria Roma, abrindo caminho para
Pedro depois se estabelecer por lá.
O texto do evangelho de Lucas (24,
13-35) relata o conhecido episódio dos discípulos que fugiam para
Emaús. Essa história é contada apenas pelo evangelista Lucas, com
o seu característico estilo cheio de detalhes, só faltou dizer o
nome do segundo discípulo. O texto mostra como Jesus precisou sair
correndo atrás daqueles dois fujões, que haviam se desgarrado do
grupo que ficara em Jerusalém, certamente desiludidos com os últimos
acontecimentos. E como foi difícil para eles reconhecerem a Jesus e
compreenderem o significado de tudo o que acontecera. Jesus precisou
repetir toda a catequese, relacionando com as escrituras e, por fim,
somente no ato de partir o pão eles o identificaram. Então,
voltaram imediatamente para Jerusalém (diz o evangelho que ficava a
cerca de 11 km, distância do centro de Fortaleza a Messejana) e,
chegando lá, encontraram os outros reunidos e relataram para eles a
experiência que tiveram. A leitura do evangelho de hoje termina
nesse ponto, mas no versículo seguinte, diz que “enquanto eles
ainda estavam falando, Jesus apareceu no meio deles” (36) e eles
ficaram amedrontados, pensando que estavam vendo um fantasma. Foi
preciso Jesus dizer: 'por que estais perturbados? Sou eu...Vede as
minhas mãos e pés...' que coisa mais incrível. Os dois estavam
falando justamente que haviam conversado com Jesus ressuscitado e,
ato contínuo, Jesus lhes apareceu e não conseguiram reconhecê-lo.
Quão difícil foi, para Jesus, preparar esse pequeno grupo para dar
continuidade ao seu trabalho messiânico.
Além dessa dificuldade de natureza
pedagógica e administrativa, foram muitos os entraves de ordem
política que os primeiros cristãos tiveram de enfrentar. O próprio
apóstolo Paulo relatou que precisou, às vezes, sair da cidade às
pressas, com medo de ser apedrejado pelos seus perseguidores, que
eram judeus fanáticos e Paulo, com sua formação judaica, os
desafiava. E depois vieram as perseguições mais audazes e
destruidoras por parte das autoridades romanas, que vitimaram os dois
grandes líderes Pedro e Paulo no mesmo ano, embora não juntos, na
época do imperador Nero. Este e Diocleciano fizeram o maior massacre
de cristãos naquele tempo, algo similar ao que está ocorrendo
também nos dias de hoje na Síria e em outros países islâmicos, na
Europa e na África. A força da fé mantinha unidos os cristãos dos
primeiros tempos, como também os de hoje, que passam por severas
provações. Nós, que temos uma vida relativamente calma em relação
a essas políticas agressivas e sangrentas de outros países, não
conseguimos fazer ideia do que é ser cristão em situação adversa.
Contudo, no passado tanto quanto hoje, a presença de Cristo e os
dons do Espírito fortalecem os cristãos que são perseguidos,
mantendo-os firmes nas suas convicções.
Pois bem, meus amigos. Essas
recordações dos tempos heroicos dos primeiros missionários devem
servir para nos fortalecer também na nossa fé, quando tomamos
consciência do quanto eles tiveram de suportar para testemunharem a
Cristo, enquanto nós, muitas vezes por comodismo ou por preguiça,
nos esquivamos de demonstrar a nossa fé e o nosso compromisso,
através das nossas atitudes, pelas quais devemos ser identificados
como discípulos de Cristo. O tempo pascal se presta para refletirmos
sobre a nossa vocação cristã e para avaliarmos o grau de nossa
fidelidade à fé que professamos.
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