domingo, 30 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3ª DOMINGO DA PÁSCOA - FUGINDO PARA EMAÚS - 03.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA PÁSCOA – FUGINDO PARA EMAÚS – 30.04.2017

Caros Leitores,

A liturgia deste terceiro domingo da Páscoa nos dá uma pequena demonstração do “trabalho” que Jesus teve para preparar o grupo de seus discípulos, para que dessem continuidade à propagação da sua boa nova. Quando nós lemos sobre os primórdios do cristianismo, entendemos melhor de que modo a mão de Deus protegeu e guiou essas primeiras comunidades, de forma a mantê-las vivas e ativas, após o final da missão de Cristo. Muitas pessoas dizem: “ah, o Império Romano promoveu a Igreja e lhe deu sustentação política...” é inegável que isso aconteceu, porém apenas em parte, a conclusão é veraz. Esse apoio institucional do Roma se deu somente no século IV, por obra de Constantino. Mas até lá, foram mais de 300 anos de muita luta e, por cima de tudo, enfrentando perseguições cruéis, até que o vento soprasse favoravelmente. A Igreja de Cristo não dependeu do Império Romano para se manter, ao longo desses 300 anos iniciais, ao contrário, os imperadores romanos anteriores a Constantino tentaram, de diversas maneiras, destruir essas comunidades. Sem deixar de mencionar também a perseguição que os primeiros cristãos sofreram por parte dos chefes dos sacerdotes judeus, conforme se veem relatos nos Atos dos Apóstolos. Passemos à análise das leituras.

As duas primeiras leituras deste domingo dão ênfase ao trabalho de Pedro, nos primórdios do cristianismo (Atos 2, 14-33 e 1Pd 1, 17-21). Pedro não tinha o mesmo preparo intelectual nem a mesma eloquência de Paulo, observa-se isso bem pelo seu estilo, pela sua argumentação. Não precisa grande esforço para perceber que o estilo da pregação de Pedro não tem a força persuasiva, a construção elegante do raciocínio e a profundidade reflexiva dos escritos de Paulo. E Pedro era, mesmo assim, aquele mais esperto, tanto que foi indicado por Cristo como líder do grupo. Essa dificuldade pedagógica de Cristo pode ser percebida também nas palavras de Lucas, no evangelho lido hoje, quando ele censura os fujões, que iam retornando para a sua cidade, após a crucificação: 'Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?' (Lc 24, 25-26). A solução de Jesus foi cooptar Paulo, um judeu fervoroso, perseguidor implacável e transformá-lo num mais fervoroso ainda discípulo e propagador do evangelho. O chamado de Paulo foi uma consequência dessa dificuldade que Jesus enfrentou para formar um grupo de discípulos e continuadores do seu trabalho, dada a grande limitação humana dos vocacionados galileus.

Na primeira leitura, um trecho dos Atos dos Apóstolos, Pedro faz uma pregação para o povo no dia de Pentecostes e faz uma interpretação bastante extensiva do Salmo 15, atribuído a Davi, no qual ele canta: “ meu corpo no repouso está tranquilo; pois não haveis de me deixar entregue à morte, nem vosso amigo conhecer a corrupção- este salmo é rezado também na liturgia de hoje – aludindo a que Davi estaria profetizando a ressurreição de Cristo. Vejamos como Pedro interpretou essa passagem: “o patriarca Davi morreu e foi sepultado e seu sepulcro está entre nós até hoje. Mas, sendo profeta, sabia que Deus lhe jurara solenemente que um de seus descendentes ocuparia o trono. É, portanto, a ressurreição de Cristo que previu e anunciou com as palavras.Percebe-se que Pedro não tinha lá um grande entrosamento com as Escrituras e foi buscar um trecho de um salmo para tirar daí uma conclusão bem diferente do que os exegetas habitualmente fazem. Os salmos não são livros proféticos, são cânticos ora de louvor, ora de arrependimento, ora de confissão, ora de lamento, além do que Davi não era exatamente um profeta. Com todo respeito à figura apostólica singular de Pedro, mas sabe-se que ninguém dá o que não tem e, no caso dele, nem mesmo com a suprema inspiração do Espírito Santo, ele foi muito feliz na referência ao rei Davi. Ou seja, se a Igreja de Cristo tivesse que depender somente da pregação dos doze discípulos originais, teria sucumbido logo no início.

Na segunda leitura, da primeira Carta de Pedro (1Pd 1, 17-21), vemos uma referência aos judeus convertidos, que se espalhavam por toda a Ásia Menor. Os estudiosos colocam em dúvida a autoria de Pedro, por causa de certas semelhanças com o estilo de Paulo, porém outros justificam que o escriba desta carta teria sido Silas, que era discípulo de Paulo, e ao escrever a pedido de Pedro, teria mostrado uma certa influência paulina. Este trecho demonstra bem que Pedro se referia aos judeus convertidos: “Sabeis que fostes resgatados da vida fútil herdada de vossos pais, não por meio de coisas perecíveis, como a prata ou o ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem mancha nem defeito ” (18-19) Também o versículo anterior a este denota que os destinatários eram judeus dispersos, que viviam em locais onde pagãos e judeus não convertidos eram maioria e tinham atitudes hostis para com os judeus convertidos: “vivei então respeitando a Deus durante o tempo de vossa migração neste mundo.” (17) A palavra traduzida por “migração”, no texto acima, corresponde no original grego ao vocábulo “paroikias”, que significa a situação daquele 'que vive num país estrangeiro' e isso se aplicava nos dois sentidos, tanto no sentido material político da época (cristãos vivendo em cidades judias) quanto no sentido espiritual da “peregrinação” terrestre, a caminho do céu. Como deve ser do conhecimento de todos, enquanto Pedro e os outros discípulos desenvolveram seu trabalho na Ásia Menor, onde havia a maior quantidade de população judia, o trabalho de Paulo se voltou para as comunidades gregas, na época dominada pelos romanos, expandindo suas atividades até a própria Roma, abrindo caminho para Pedro depois se estabelecer por lá.

O texto do evangelho de Lucas (24, 13-35) relata o conhecido episódio dos discípulos que fugiam para Emaús. Essa história é contada apenas pelo evangelista Lucas, com o seu característico estilo cheio de detalhes, só faltou dizer o nome do segundo discípulo. O texto mostra como Jesus precisou sair correndo atrás daqueles dois fujões, que haviam se desgarrado do grupo que ficara em Jerusalém, certamente desiludidos com os últimos acontecimentos. E como foi difícil para eles reconhecerem a Jesus e compreenderem o significado de tudo o que acontecera. Jesus precisou repetir toda a catequese, relacionando com as escrituras e, por fim, somente no ato de partir o pão eles o identificaram. Então, voltaram imediatamente para Jerusalém (diz o evangelho que ficava a cerca de 11 km, distância do centro de Fortaleza a Messejana) e, chegando lá, encontraram os outros reunidos e relataram para eles a experiência que tiveram. A leitura do evangelho de hoje termina nesse ponto, mas no versículo seguinte, diz que “enquanto eles ainda estavam falando, Jesus apareceu no meio deles” (36) e eles ficaram amedrontados, pensando que estavam vendo um fantasma. Foi preciso Jesus dizer: 'por que estais perturbados? Sou eu...Vede as minhas mãos e pés...' que coisa mais incrível. Os dois estavam falando justamente que haviam conversado com Jesus ressuscitado e, ato contínuo, Jesus lhes apareceu e não conseguiram reconhecê-lo. Quão difícil foi, para Jesus, preparar esse pequeno grupo para dar continuidade ao seu trabalho messiânico.

Além dessa dificuldade de natureza pedagógica e administrativa, foram muitos os entraves de ordem política que os primeiros cristãos tiveram de enfrentar. O próprio apóstolo Paulo relatou que precisou, às vezes, sair da cidade às pressas, com medo de ser apedrejado pelos seus perseguidores, que eram judeus fanáticos e Paulo, com sua formação judaica, os desafiava. E depois vieram as perseguições mais audazes e destruidoras por parte das autoridades romanas, que vitimaram os dois grandes líderes Pedro e Paulo no mesmo ano, embora não juntos, na época do imperador Nero. Este e Diocleciano fizeram o maior massacre de cristãos naquele tempo, algo similar ao que está ocorrendo também nos dias de hoje na Síria e em outros países islâmicos, na Europa e na África. A força da fé mantinha unidos os cristãos dos primeiros tempos, como também os de hoje, que passam por severas provações. Nós, que temos uma vida relativamente calma em relação a essas políticas agressivas e sangrentas de outros países, não conseguimos fazer ideia do que é ser cristão em situação adversa. Contudo, no passado tanto quanto hoje, a presença de Cristo e os dons do Espírito fortalecem os cristãos que são perseguidos, mantendo-os firmes nas suas convicções.

Pois bem, meus amigos. Essas recordações dos tempos heroicos dos primeiros missionários devem servir para nos fortalecer também na nossa fé, quando tomamos consciência do quanto eles tiveram de suportar para testemunharem a Cristo, enquanto nós, muitas vezes por comodismo ou por preguiça, nos esquivamos de demonstrar a nossa fé e o nosso compromisso, através das nossas atitudes, pelas quais devemos ser identificados como discípulos de Cristo. O tempo pascal se presta para refletirmos sobre a nossa vocação cristã e para avaliarmos o grau de nossa fidelidade à fé que professamos.

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domingo, 23 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA PÁSCOA - VER E CRER - 23.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – VER E CRER – 23.04.2017

Caros Leitores,

Este segundo domingo da Páscoa ou domingo da oitava da Páscoa foi consagrado pelo Papa João Paulo II como o Domingo da Misericórdia, criando assim a Festa da Divina Misericórdia. Este domingo possui ainda uma milenar tradição na liturgia com o nome de Dominica in Albis (o domingo da brancura), porque na antiga oitava da Páscoa, aqueles que se haviam batizado na Vigília Pascal e haviam passado toda a semana em comemoração, usando sua veste batismal, reuniam-se novamente e ali depunham solenemente essas vestes brancas, voltando a usar suas roupas comuns e se inserindo na comunidade, juntando-se aos outros irmãos da fé. É comum que, em todas as festas religiosas importantes, se celebre a oitava da festa, mas a oitava da Páscoa sempre foi a mais solene, era quase como uma repetição da festa do domingo anterior. A tradição de celebrar a “oitava” de uma festa religiosa está também ligada à festa judaica dos pães ázimos, que tem duração de sete dias, e que corresponde à celebração da Páscoa.

Nas leituras litúrgicas selecionadas para este domingo, temos na primeira um conhecido trecho dos Atos dos Apóstolos (At 2, 42-47), que narra o modo de vida das primeiras comunidades cristãs, cujo exemplo permanece como desafio constante a todos nós: “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e colocavam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um.” (At 2, 44-45) Penso que esse modo de vida só existiu mesmo naqueles primeiros tempos, uma irmandade total e irrestrita. Depois que o cristianismo foi-se infiltrando no mundo romano, sobretudo no meio da população mais rica de Roma, essa disponibilidade e repartição dos bens já não era assim tão exemplar. Se observamos bem, foi isso que o Seráfico Patriarca Francisco colocou na sua regra, no século XIII, como o voto de pobreza, porque então já não se praticava mais entre os cristãos. Até o Papa da época, Inocêncio III, duvidou que alguém conseguisse viver desse modo... Quanta ironia, era como se esse comportamento não estivesse de acordo com o evangelho que ele, como Papa, devia observar. Atualmente, as relações sociais se tornaram muito mais complexas e a vivência desse ideal precisa passar por um conjunto de ajustes hermenêuticos, a fim de ser posto em prática. Por isso, o testemunho das primeiras comunidades cristãs permanece como um desafio sempre atual para os cristãos de todos os tempos, conclamando-os a buscarem viver autenticamente o evangelho de Cristo, de acordo com as peculiaridades de cada segmento histórico.

A segunda leitura é retirada da primeira carta de Pedro. Poucas vezes, a liturgia seleciona trechos de escritos não paulinos, como é o caso deste domingo. Esta carta de Pedro foi dirigida aos cristãos de língua grega dispersos nas províncias romanas da Ásia Menor (Ponto, Galácia, Capadócia, Bitínia), numa época difícil de perseguição por motivos religiosos. Pedro incentiva os novos cristãos daquelas paragens evocando aspectos autobiográficos, exemplos de sua própria vida como apóstolo de Cristo, lembrando-lhes que é necessário suportar provações passageiros, para merecer a glória do céu. “Deste modo, a vossa fé será provada como sendo verdadeira - mais preciosa que o ouro perecível, que é provado no fogo - e alcançará louvor, honra e glória no dia da manifestação de Jesus Cristo.” (1Pd 1,7) Mas também esse trecho da carta é escolhido porque sintoniza com a leitura do evangelho, retirada de João, e que narra o famoso episódio da falta de fé manifestada pelo apóstolo Tomé acerca da ressurreição de Cristo, quando Pedro afirma: “Sem ter visto o Senhor, vós o amais. Sem o ver ainda, nele acreditais.” (1Pd 1,8) Apenas uma informação de curiosidade: Pedro não era um homem de letras, todos sabem que ele era um pescador, ou seja, Pedro não sabia escrever, aliás, fato que era bastante comum naquele tempo, em que havia os escribas profissionais. Então a carta de Pedro foi manuscrita por seu discípulo Silvano.

Na leitura do evangelho de João (Jo 20, 19-31), o tema é a incredulidade de Tomé, um dos textos bíblicos mais conhecidos e que, naquela época, era muito utilizado na catequese dos primeiros cristãos, como uma forma de fortalecer a fé dos convertidos, tomando como referência o (mau) exemplo de Tomé, que queria ver para crer, e associando isso com a reprimenda de Jesus, para vitalizar a atitude dos que creem sem ter visto. Prova do uso catequético desta história da dúvida de Tomé é que o episódio é narrado apenas no evangelho de João. O evangelista Lucas (24, 13-43) narra o diálogo de Jesus com os discípulos que iam para Emaús e, em seguida, a aparição dele aos apóstolos todos reunidos no Cenáculo, mas não se refere a Tomé. A narrativa de João é plenamente fidedigna, porque ele estava presente no momento do fato, diferentemente dos outros evangelistas, que escreveram baseados em outras fontes literárias. Não se pode afirmar, contudo, que o fato narrado por João não fosse do conhecimento dos outros evangelistas também, mas estes não o registraram. Por outro lado, João escreveu seu evangelho mais tardiamente e certamente já conhecendo os textos dos outros autores, isso fez com que ele acrescentasse detalhes que considerou importantes e que os outros haviam omitido. O próprio João ainda justifica: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro.” (2, 30) Ou seja, João sabia de mais coisas, que não escreveu, mas provavelmente contava aos cristãos do seu tempo. Daí é que se originam as tradições orais de fatos que, mesmo não estando escritos, são aceitos e acreditados pelos fiéis desde os primeiros tempos. Além disso, o evangelho de João tinha um propósito bem definido de servir como texto-base para uso na catequese das primeiras comunidades, quando o cristianismo se difundia velozmente entre as comunidades estrangeiras. Outro exemplo disso podemos observar no diálogo de Jesus com a samaritana (Jo 4,5), mostrando como Jesus acolhia bem os não judeus.

Um outro detalhe que se percebe nesse ponto da narrativa joanina é a referência ao “primeiro dia da semana”, que era o dia preferido para Jesus aparecer aos discípulos. “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles...” (Jo 20,19). Um pouco adiante, repete de modo análogo: “Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa...” (Jo 20, 26), isto é, uma semana depois, portanto, no primeiro dia da semana novamente. É interessante analisarmos essa tradução portuguesa de “primeiro dia da semana”. Se consultarmos o texto latino de S. Jerônimo, ele escreveu assim: “Cum ergo sero esset die illo una sabbatorum...”, que significa “portanto, como já fosse tarde naquele dia, um depois do sábado...” isto é, ele não diz que é o “primeiro dia” e sim que é o dia depois do sábado. A tradução portuguesa é que adapta a expressão para “primeiro dia da semana”, porque a semana dos judeus terminava no shabat e os apóstolos eram judeus. Deduz-se daí que, nessa época, o sábado era ainda o dia mais importante da semana, porque prevalecia a tradição judaica. Para a cultura judaica, ainda hoje, o dia termina com o por-do-sol e aí tem início o dia seguinte. Dizer, portanto, que já era tarde da noite de sábado equivale a dizer que já era a “feria prima”, o primeiro dia da semana (o nome domingo não existia naquela época). Por isso, algum tempo depois, os cristãos começaram a notar essa preferência de Jesus para realizar coisas prodigiosas no “dia depois do sábado”, sendo este também o dia em que ele ressuscitou, razão pela qual o Concílio de Nicéia (325 d.C.) mandou transferir o dia do repouso (shabat) para o dia depois do sábado, ou seja, o primeiro dia da semana, que passou a chamar-se “dominica”, isto é, o dia do Senhor. É a tradição que seguimos até os dias de hoje.

E sobre a festa da Divina Misericórdia, celebrada hoje, o Papa Francisco recordou a instituição desse dia em 2000, por João Paulo II, afirmando: “Eis o sentido da misericórdia que se apresenta no dia da ressurreição de Jesus como perdão dos pecados. Jesus ressuscitado transmitiu à sua Igreja, como primeira tarefa, a sua própria missão de levar a todos o anúncio concreto do perdão. Este sinal visível da sua misericórdia traz consigo a paz do coração e a alegria do encontro renovado com o Senhor”, ”

Meus amigos, neste domingo especial da oitava da Páscoa e festa da Divina Misericórdia, renovo a todos os votos de uma contínua e permanente ressurreição, na labuta diária de cada um.

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domingo, 16 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA PÁSCOA - 16.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA PÁSCOA – 16.04.2017 – DIA DO SENHOR

Caros Leitores,

Foi num domingo de páscoa, em 2011, que comecei a escrever esses comentários, atendendo a algumas solicitações, e com isso pus-me a rever e aprofundar os conceitos bíblico-teológicos da nossa fé cristã. Associando isso aos estudos de hebraico, que passei a fazer em 2014, consigo hoje observar com mais amplitude os elementos doutrinários da teologia, procurando ultrapassar certos limites e preconceitos que nos foram ensinados na juventude, em especial aqueles relacionados com a festa da Páscoa. Existe muito romantismo associado à festa da Páscoa, como se percebe nos textos das mensagens que circulam na internet nesses dias, desviando o olhar do sentido histórico e cristão dessa festa, que tanto simbolismo contém.

Numa abordagem histórica, os pesquisadores não sabem a origem da festa da páscoa, porque essa é uma tradição que se perde no tempo. Estima-se que a páscoa começou a ser celebrada desde que os seres humanos começaram a formar grupos estacionários em determinados locais, onde passaram a plantar alimentos e criar animais, deixando assim de ser nômades, como eram os primeiros grupos humanos. Ou seja, a festa da páscoa originalmente estaria integrada com o próprio surgimento da sociedade humana. Este período geográfico que, no hemisfério norte, corresponde ao término do inverno e à chegada da primavera, coincide com o tempo em que as árvores iniciam a brolhar após degelo, começando a produzir os primeiros frutos da terra. Com as nuvens se dissipando no céu, a lua podia ser divisada mais facilmente e a primeira lua cheia após o inverno passou a ser festejada como o tempo da primeira colheita, tempo de fartura e da prosperidade, celebrando a paz entre a natureza e os seus habitantes, tempo em que os animais também acasalam e a vida sobre a terra se renova. Este seria o sentido primitivo da páscoa, festejada desde tempos imemoriais.

Como podem verificar, nós celebramos a páscoa pelo ciclo geográfico europeu, a páscoa do povo do norte, pois se fôssemos considerar os mesmos fenômenos cósmicos no nosso hemisfério, a nossa páscoa seria celebrada no mês de setembro. Estando a festa da Páscoa relacionada com a primeira lua cheia da primavera europeia, já imaginaram se nós, ocidentais e austrais, fôssemos seguir o mesmo esquema para a definição da data da páscoa? Deixaria de ser uma festa comemorada universalmente, como é nos dias atuais, pois haveria a Páscoa do norte e a do sul. Porém, essa divergência geográfica de fato não fará diferença, uma vez que nós não celebramos a páscoa pelo seu significado histórico e cultural, mas pelo sentido religioso que essa festa passou a ter após a ressurreição de Cristo.

Numa abordagem teológica, a festa cristã da Páscoa passou a ser celebrada logo depois que houve a liberdade religiosa no império romano, o que se deu com o imperador Constantino, em 321 d.C. O século IV da era cristã foi um período de muitas definições dogmáticas e doutrinárias, tendo em vista diversas heresias que se disseminavam no meio cristão, havendo a necessidade do trabalho de refinamento teológico de insignes Doutores da fé, expurgando doutrinas contrárias ao ensinamento de Cristo, sendo necessário ainda, por diversas ocasiões, a reunião de Concílios ecumênicos, com o objetivo de serem debatidas as verdades teológicas que formam o núcleo central da doutrina cristã. Foi nesse contexto que houve o debate acerca da definição da data da Páscoa, bem como das diversas solenidades que compõem o ano litúrgico. Foi nessa ocasião também que se deu uma importante e radical mudança, que foi motivo de muita discussão e ainda hoje divide opiniões, a mudança do “shabat”, ou seja, do descanso semanal, que passou do sábado para o domingo. A partir da consciência da magnitude da ressurreição de Cristo como sendo o evento mais importante de todo o mistério da redenção, as autoridades cristãs permutaram o antigo dia sabático pelo dia dominical. Essa definição caracteriza também a passagem da tradição do Antigo Testamento para o Novo Testamento. Canonicamente, essa mudança foi definida nos Concílios de Nicéia (325) e de Laodicéia (364).

Nesses concílios, ficou decidido que a festa da Páscoa seria no domingo que sucede a lua cheia após o equinócio da primavera no hemisfério norte, que tem como data de referência o dia 21 de março. Desse modo, o domingo que sucede a lua cheia após 21 de março de cada ano é a data da festa da Páscoa. Essa definição, porém, continua sendo ponto de discórdia entre a igreja romana e as igrejas orientais, pois estas consideram que foi uma imposição do império romano, do mesmo modo que a celebração do Natal, também definida na mesma oportunidade, teria sido feita para atender a um pedido do imperador Constantino. Atualmente, a mim parece que não é mais o caso de levar adiante tal discussão, porque seria de pouca utilidade prática e o calendário internacional não iria ser alterado por conta disso. Assim, a data da páscoa continua seguindo o calendário lunar, gerando divergências com as demais datas, que se orientam pelo calendário solar, mas isso é administrado de uma forma já convencional e não acarreta maiores transtornos. Embora não haja uma coincidência exata de datas, no entanto a festividade pascal, em todas as culturas, é celebrada sempre nesse mesmo período do ano, desde os tempos ancestrais.

A Páscoa, portanto, originalmente está associada à renovação da vida na terra, (no caso, considerando a geografia europeia, pois naquela época as terras do lado sul terrestre não eram conhecidas). Dentro da economia da salvação, o plano salvífico de Deus fez coincidir a ressurreição de Cristo com essa simbólica festividade da humanidade setentrional, dando-lhe um sentido totalmente novo e inusitado. Integrando o Antigo com o Novo Testamento, há uma curiosidade interessante: a entrada de Jesus em Jerusalém deu-se no 10º. dia do mês de Nissan, data que corresponde à prescrição constante em Êxodo 12:3-6, dia em que, de acordo com a Lei de Moisés, um cordeiro era separado do rebanho e colocado à disposição para ser sacrificado na Páscoa. Nesse dia, entrando triunfalmente em Jerusalém, Jesus foi colocado à disposição dos sumos sacerdotes judeus para ser sacrificado, uma coincidência que, sem dúvida, une os dois Testamentos. Após a ressurreição de Cristo, a Páscoa deixou de ser apenas uma festa das colheitas do campo, da celebração da vida natural, da cultura humana, e veio assumir uma dimensão especial na economia da salvação, transmudando o seu sentido para a dimensão espiritual e alcançando não apenas os habitantes de uma região do mundo, mas toda a humanidade. Jesus ia todos os anos a Jerusalém, para celebrar a páscoa com os discípulos, mas Ele sabia que naquela vez seria diferente, daí ter preparado tudo, conforme descrevem os evangelistas, inclusive aquela entrada triunfal, sendo aclamado com ramos de palmeiras, de modo a chamar bem a atenção dos fariseus, sacerdotes e chefes do povo. Ali, ele se colocou à disposição. Tudo fora preparado, no plano divino, para que a antiga páscoa dos homens fosse transformada na nova Páscoa de Cristo.

As primeiras comunidades cristãs não perceberam essa nova dimensão dos fatos logo no início e continuaram celebrando o dia do Senhor no sábado, como era a tradição judaica. Mas depois foram percebendo que, com a ressurreição de Cristo, a Páscoa tinha ganho um novo sentido e aquela tradição sabática precisava ser superada pela celebração dominical, porque Jesus havia ressuscitado no primeiro dia da semana, após o shabat. Aqueles que não creem em Cristo como o Salvador e, portanto, não reconhecem o novo testamento escrito com o seu sangue, continuam guardando o sábado. Ou algumas denominações cristãs radicais que, mesmo acreditando em Cristo, não aceitam a mudança de significado do “sábado-dia do descanso” para o “domingo-dia do senhor” e continuam a guardar o sétimo dia, em vez do primeiro dia da semana. O novo significado da Páscoa, como festa da vida renovada, da vida plena e definitiva, da vida que supera a morte devia ser comemorada como uma nova festa, com um novo simbolismo. O dia da ressurreição do Senhor, o primeiro dia da semana, passou a ser, então, a nova referência para as festividades pascais.

Meus amigos, quando hoje celebramos a Páscoa, devemos nos lembrar disso: pela Páscoa da ressurreição de Cristo, nós ganhamos um verdadeiro motivo para comemorar, qual seja, a nossa redenção, a conquista da nossa vida plena e definitiva, que Cristo antecipou para nós com a sua ressurreição dos mortos e nos deu a certeza de que, assim como Ele, nós também teremos a nossa vitória sobre a morte e sobre o pecado e um dia nos uniremos com Ele, junto do Pai, na morada eterna. Para além, portanto, das costumeiras saudações de Feliz Páscoa ou mesmo utilizando essa costumeira terminologia, nossas palavras passam a ter um novo sentido, se estivermos conscientes do seu verdadeiro significado.

Renovados votos de Feliz Páscoa a todos.

domingo, 9 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE RAMOS - 09.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE RAMOS – FOI POR AMOR - 09.04.2017

Caros Leitores,

O ciclo anual da liturgia nos coloca novamente no período mais simbólico das comemorações cristãs, que é o tempo da Páscoa. A celebração desta é antecedida pelo Tríduo Pascal (quinta, sexta e sábado santos) e estes são antecedidos pelo Domingo de Ramos, festejado nesta data. Na condição de cristãos amadurecidos na fé, precisamos ultrapassar as velhas tradições que recebemos, não nos quedando apenas na memória da Paixão do Senhor, mas sempre recordando que se deve colocar acima desta a memória da Páscoa do Senhor. Na verdade, toda a nossa fé cristã e católica se alicerça na Ressurreição de Cristo, não na sua paixão. Foi pela cruz que Jesus redimiu nossos pecados, mas foi pela ressurreição que ele nos abriu a porta do céu, por isso, todas essas comemorações só fazem sentido se estivermos olhando para a ressurreição. Se não for assim, é vã a nossa fé, já disse o apóstolo Paulo. (1Cor 15, 17).

Conforme alguns Colegas já sabem, eu estou participando de um curso sobre hebraico bíblico e no decorrer do curso, tomamos conhecimento também dos costumes judaicos. O curioso é que os judeus ainda hoje celebram a sua páscoa do mesmo modo como era no tempo de Cristo: mesma data, mesmos rituais, mesma tradição. Quando o evangelho de Mateus, lido hoje, diz assim: “no primeiro dia dos ázimos...” (26, 17), lembrei que a professora de hebraico explicou como os judeus celebram esse período, que compreende aos dez dias subsequentes à lua nova do mês de nissan, pra eles, o primeiro mês do ano. Outra curiosidade que ela informou sobre a “pessach” é que, nesse período, ninguém pode comer nenhum alimento proveniente do trigo, apenas esse pão ázimo, que é preparado com a massa sem fermento. Trata-se da mesma tradição milenar, que já era observada no tempo de Cristo e faz-nos lembrar daquelas regras antigas sobre o jejum, quando o Direito Canônico estabelecia a quantidade de gramas máxima para cada refeição, para não “quebrar o jejum”. Felizmente, já superamos essa “burocracia” ritual.

Pois bem, estou comentando acerca dos costumes judaicos, porque desenvolveu-se, na nossa cultura cristã, um terrível preconceito contra os judeus, porque foram eles que mataram a Jesus. Vale a pena lembrar que uma santa italiana, Santa Gemma Galgani, relatou ter conversado com Jesus e, certa vez, perguntou-lhe: Senhor, quem te matou? E Jesus respondeu a ela: foi o amor. De fato, Jesus deu sua vida por amor da criação divina, do universo inteiro, incluído aí o ser humano, conforme fora prometido a Abraão. Os operadores dessa promessa foram os sumos sacerdotes judeus e Judas, o Iscariotes. Por causa disso, esses personagens foram historicamente execrados. Judas, encarnou o traidor; os judeus se tornaram os pérfidos judeus, como dizia uma antiga oração da sexta feira santa. Mas quem matou Jesus foi o amor, o imenso amor, incomensurável amor, que só cabia mesmo no seu incomensurável coração. Então, nós precisamos também ir além daquela vetusta tradição com que nos martelaram a cabeça durante muito tempo: Judas traidor, pérfidos judeus. Nesse Domingo de Ramos, dediquemo-nos a falar um pouco sobre esse personagem execrado na tradição, Judas Iscariotes, aquele que é enforcado e queimado em mastros públicos, não sem antes ser açoitado, maltratado, esfarrapado, tudo como uma espécie de vingança tardia dos seguidores de Cristo.

Comecemos por interpretar o nome dele – Judas Iscariotes. O nome em português Judas é a transliteração do grego IOUDA, que por sua vez é adaptado do hebraico Yehudhah, palavra que significa “abençoado”. Vejam só a contradição que esse nome encerra: Judas significa o abençoado. Iscariotes em hebraico corresponde a duas palavras ISH QUERYOT, significando (uma das suas compreensões) “o homem de Queryot”, filho de Simão de Queryot, sendo esse o nome de uma vila na Judéia. Existe outra interpretação mais política para esse apelido, que é ISH SICARI, em que sicari significa punhal, então ish sicari seria o assassino que mata por dinheiro, o pistoleiro dos sertões nordestinos. Essa interpretação recorda um grupo de terroristas judeus, que existia dentro de um partido político chamado de zelotes. Os zelotes eram inimigos dos romanos, que naquele tempo ocupavam a Palestina, e incitavam o povo judeu a resistir contra os invasores. Havia uma facção dos zelotes, que praticavam assassinatos de adversários políticos, usando punhais. Talvez Judas fizesse parte desse grupo, mas isso não tem confirmação histórica, são apenas hipóteses dos estudiosos. Mas embora não seja certo que ele pertencia a esse grupo de assassinos, o fato de ser ele um zelote é aceito por todos. Os zelotes eram conhecidos na época, porque faziam propaganda aberta contra os romanos e, enquanto zelote, Judas lutava pela libertação da Palestina, pela expulsão dos romanos de lá e viu em Jesus um líder que tinha apoio popular para realizar isso. Desse modo, a aproximação de Judas a Cristo teria sido motivada por esse interesse político.

Não podemos esquecer, porém, que o grupo dos doze foi escolhido por Jesus, Ele os chamou para a sua companhia, não foi imposição de ninguém. Ora, todos cremos que Jesus sabia de todos os desafios que iria enfrentar, sabia que Judas seria o intermediário dos acontecimentos, então, por que razão Jesus teria chamado e mantido Judas no grupo dos doze até o final? Com certeza, era porque Jesus tinha consciência do papel dele, da sua importância, fazia parte do 'plano' do Pai. De acordo com um manuscrito descoberto há pouco tempo, denominado o evangelho de Judas, documento escrito por volta do século II ou III, Judas era o discípulo que mais conversava com Jesus, era da sua total confiança. Se Jesus fosse apenas um ser humano comum, poderíamos dizer que ele fora enganado. Mas Jesus, sendo homem e Deus, não teria como ser enganado por Judas. Portanto, Jesus sabia de tudo e sabia que Judas seria “necessário” para que o plano do Pai se concretizasse. Aquele conhecido filme de Hollywood – Jesus Cristo Superstar – aborda bem essa temática sobre a missão de Judas.

A partir desse raciocínio, podemos concluir que a infâmia de “traidor” foi atribuída a Judas pelos outros onze apóstolos, após os acontecimentos, com a finalidade de execrá-lo. Todos os evangelistas tratam Judas como traidor, mas Mateus é o que carrega mais na difamação dele, descrevendo até o seu suicídio. Na verdade, podemos dizer que o evangelho de Mateus tem dois objetivos básicos: um é mostrar que Jesus é o Messias esperado e predito pelos Profetas; o outro é execrar Judas. Quando lemos o texto de Mateus, vemos que ele está, com frequência, dizendo algo assim: isso aconteceu para que se cumprisse o que disse o profeta tal. Na narração da Paixão, Mateus até inclui a história das 30 moedas, relacionando com um trecho de Jeremias (Mt 27, 9), quando na verdade, a citação é de Zacarias (11, 12-13), ele até confundiu os profetas. Mas ele queria apenas justificar a história das 30 moedas. Os demais evangelistas não falam na quantidade de moedas, dizendo apenas que os sumos sacerdotes haviam lhe prometido dinheiro (Mc 14, 10; Lc 22,5) e João nem comenta sobre alguma recompensa. Com certeza, foi o evangelista Mateus o responsável pela tremenda má fama que recai ainda hoje sobre o personagem Judas, fato que leva as pessoas a evitarem colocar tal nome nos seus filhos. Contudo, nessa linha de raciocínio que estamos desenvolvendo, pode perceber-se que há uma grande injustiça embutida nessa tradição e, em nome da verdade e da caridade, devemos procurar observar Judas como um agente necessário para a economia da salvação. Num arroubo poético, Santo Agostinho chamou o pecado de Adão de “feliz culpa”, porque nos proporcionou tão insigne Redendor. Parafraseando Agostinho, podemos fizer que o ato de Judas foi também uma espécie de “feliz denúncia”, necessária para a arrematação dos fatos da história da salvação.

Na leitura dos relatos evangélicos, observamos que nenhum dos evangelistas comentou o fato de que Jesus sabia de tudo desde o início e, mesmo assim, manteve a presença de Judas no grupo e não o discriminou. Ao contrário, Jesus até confiava nele e fez dele o “caixa” do grupo. Os discípulos aproveitaram esse fato e transmitiram a imagem de Judas como um avarento, que só estava preocupado com as finanças do grupo. Provavelmente, Mateus também se aproveitou disso para ajudar a compor esse personagem avaro e odiado, em que Judas se transformou. Por outro lado, segundo o texto do evangelho apócrito citado acima (evangelho de Judas), não teria havido traição, mas sim o atendimento a um pedido de Jesus, para que Judas informasse aos romanos onde Ele estava. Como se pode deduzir, há muitos aspectos desse episódio e da própria pessoa de Judas que necessitam de maiores estudos e esclarecimentos a fim de que, numa perspectiva de maior serenidade, possamos reescrever a antiga tradição que o difama e o abomina. Com efeito, quem matou Jesus foi o grande amor que ele tem por todos nós.

Com essas reflexões, antecipo meus votos de Feliz Páscoa a todos.

domingo, 2 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA QUARESMA - JESUS DIVINO E HUMANO - 02.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – JESUS DIVINO E HUMANO – 02.04.2017

Caros Leitores,

Neste 5º domingo da quaresma, a liturgia traz para nossa reflexão outro trecho do evangelho de João que era utilizado na catequese antiga durante a preparação dos catecúmenos, completando uma trilogia de ensinamentos. No domingo anterior, o tema foi a luz, com a cura do cego; no domingo mais anterior, o tema foi a água, no diálogo com a samaritana; neste domingo, o tema é a vida, com a ressurreição de Lázaro. Jesus é a luz que dissipa as trevas, a água que sacia para sempre a sede, a vida que nunca se acaba. Nessa narrativa da ressurreição de Lázaro, o evangelista faz questão de salientar o lado humano e emocional de Jesus. Por duas vezes, o texto fala que Jesus emocionou-se profundamente diante da comoção das irmãs do falecido e uma vez diz mesmo que Jesus chorou. O apóstolo João mostra, nesse episódio, os dois lados da personalidade de Cristo: a humanidade da emoção e a divindade do poder de ressuscitar.

Na primeira leitura, o profeta Ezequiel (37, 12-14) destaca o poder divino sobre a vida e a morte, ao anunciar: “vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel; e quando eu abrir as vossas sepulturas e vos fizer sair delas, sabereis que eu sou o Senhor”. Mais de uma vez, Jesus demonstrou esse poder sobre a vida, fazendo ressuscitar a filha de Jairo (Mt 9, 18), o filho da viúva de Naim (Lc 7, 11), e o evento mais comentado: a ressurreição de Lázaro, pelo grau de amizade que Jesus mantinha com a família dele. O profeta Ezequiel foi discípulo de Jeremias e sucedeu a este na atividade profética, tendo sido levado cativo para a Babilônia. A sua profecia é cheia de imagens enigmáticas, que trazem divergências nas interpretações dos teólogos, os quais comparam suas visões àquelas narradas por João, no Apocalipse. Esse trecho lido na liturgia de hoje refere-se aos israelitas mortos durante o cativeiro, que mesmo assim serão conduzidos para a terra de Israel, porque o Senhor é poderoso, Ele diz e faz.

Na segunda leitura, da carta aos cristãos de Roma (Rm 8, 8-11), Paulo desenvolve também a temática da ressurreição, fazendo o paralelo entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. A primeira leva à morte, a segunda conduz à vida plena. “Vós não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, se realmente o Espírito de Deus mora em vós. Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo.” (8, 9) Quem vive segundo o espírito, tem o Espírito Santo dentro dele e isso é a garantia de que aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos também vivificará nossos corpos mortais. Neste último domingo da quaresma, as leituras litúrgicas estão chamando a atenção dos cristãos para o mistério da Redenção operada por Cristo, cuja memória celebramos na festa da Páscoa. Embora a tradição religiosa que nos foi legada tenha uma tendência a enxergar sobretudo o aspecto do sofrimento e da paixão, a liturgia já está nos exortando que o foco central da preparação da Páscoa deve ser a fé na ressurreição de Cristo, porque esta é a verdade básica do cristianismo. Paulo fez essa síntese catequética extraordinária, quando declarou: se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação e vã é a vossa fé (1Cor 15, 14). Devemos, portanto, enxergar para além do sentimentalismo, que a devoção tradicional associou aos eventos da semana santa, concentrados nos sofrimentos de Cristo, para alcançarmos o verdadeiro sentido da Páscoa cristã.

No evangelho (Jo 11, 3-45), lê-se um dos trechos mais longos das leituras dominicais, no qual o apóstolo narra com riqueza de detalhes os fatos circunstanciais relativos ao milagre da ressurreição de Lázaro. O propósito catequético joanino está bem evidente no destaque que ele dá a esses detalhes, para demonstrar a figura divina de Cristo, que não se dissocia do seu lado humano. João fala da amizade de Jesus com Lázaro e suas irmãs. Mostra o receio dos discípulos pelo fato de Jesus querer voltar para a Judéia, onde morava Lázaro, pois de lá eles haviam escapado fazia pouco tempo, com medo da ira dos judeus, que queriam apedrejar Jesus. E no meio de tudo isso, mostra um fenômeno raro nos evangelhos, que evidencia a humanidade de Jesus, quando diz que ele se emocionou profundamente até o ponto de chorar. Nenhum trecho do evangelho afirma que Jesus sorriu, mas nessa leitura de hoje João afirma que ele chorou.

O relato da ressurreição de Lázaro é um texto clássico na literatura cristã e apresenta uma verdade incontestável. Nenhum daqueles judeus que estavam presentes na casa das irmãs Marta e Maria, quando Jesus ali chegou depois de Lázaro ter sido sepultado, pôs em dúvida este fato. No caso do cego de nascença, conforme vimos no domingo passado, houve questionamentos se o homem era mesmo cego, até os pais dele foram inquiridos para atestarem isso. Mas no caso de Lázaro, a prova foi tão contundente que João diz apenas assim, no fim da narrativa: muitos dos judeus que viram isso creram nele. Lázaro já estava sepultado há quatro dias, não havia como alegar algum tipo de armação ou fingimento. As irmãs até alertaram Jesus: ele já cheira mal. Não havia nada que alguém pudesse alegar para tentar desconstituir aquele espetacular milagre que Jesus produziu. É de se destacar ainda a oração que Jesus fez ao Pai antes de operar o milagre: “por causa do povo que me rodeia, para que creia que tu me enviaste ” (Jo 11, 42)

Quero comentar um detalhe dentre os muitos contidos nessa narrativa, que é este: e Jesus chorou. João relata que os judeus viram Jesus chorando e até comentaram: veja como Ele o amava... Isto é, ninguém duvidou de que Jesus estivesse realmente chorando, ninguém alegou que fosse fingimento. Por que estou eu insistindo nesse detalhe? Porque o principal mistério da teologia cristológica é exatamente esse das duas naturezas de Cristo: a natureza divina e a humana. Esse foi um dos temas mais difíceis enfrentados pelos primeiros teólogos do cristianismo, por causa da dificuldade de sua compreensão. Foi nesse contexto que surgiu a principal heresia dos tempos iniciais do cristianismo, o arianismo, criada por um bispo chamado Ario. A doutrina dele era assim: Jesus é filho de Deus, mas não é Deus, porque Deus é um só. Ele seria filho de Deus, criado desde o início dos tempos, conforme consta na Bíblia, mas não seria igual a Deus, ou seja, ele não teria a natureza divina. Ele estaria colocado numa posição acima dos homens e abaixo de Deus, uma espécie de semi-deus. Em resumo, Ario negava a natureza divina de Cristo. Ele seria um ser humano especial, mas não igual a Deus, porque só existe um Deus. Com isso, Ario negava também a Trindade Santa, o Deus Uno e Trino, porque essa verdade da fé não pode ser explicada pela razão humana. Desde o início, a teoria ariana foi rejeitada pelos teólogos orientais, porém os cristãos gregos a admitiam com facilidade, por causa da semelhança dessa doutrina com as divindades gregas, que eles cultuavam antes do cristianismo.

Foi o sustentáculo dos teólogos orientais, sobretudo de Santo Atanásio, bispo de Alexandria, que fez prevalecer a doutrina de que Cristo é “homo-ousios”, ou seja, tem a mesma essência do Pai. A consolidação dessa doutrina atanasiana se deu no Concílio de Nicéia, em 325, quando foi redigido o símbolo dos Apóstolos, o Credo que se reza na missa: Cristo foi gerado (não criado), consubstancial ao Pai, e o Espírito procede do Pai e do Filho. Dizem os historiadores que, ao final daquele Concílio, onde foi vencedora a tese de Santo Atanásio, alguns bispos presentes que tiveram voto vencido (os bispos arianos), mesmo não concordando, terminaram por assinar o documento oficial do Concilio, porém houve bispos que se recusaram a assinar e esses foram destituídos dos seus cargos e expulsos da Igreja. Dizem ainda os historiadores que isso não determinou o fim do arianismo, pois esses bispos expulsos fugiram para outras localidades mais distantes, onde continuaram pregando a sua doutrina como verdadeira e assim, durante séculos, várias comunidades continuaram professando a fé ariana, especialmente no território oriental.

Meus amigos, quando lemos sobre essas difíceis polêmicas suportadas pelo cristianismo primitivo, compreendemos melhor o motivo de termos, nos dias de hoje, tantas divergências doutrinárias dentro do universo cristão católico. Ou seja, essas dissensões sempre existiram e já foram causa de inomináveis ações separatistas, as quais tenta-se evitar nos dias de hoje. O caso mais recente é o da comunidade São Pio X, do Monsenhor Lefébvre, cujo realinhamento com a Santa Sé vem sendo negociado já faz alguns anos, embora ainda não tenha se concretizado. E o Papa Francisco carrega consigo essa enorme responsabilidade de unificar as comunidades divididas, para que haja um só rebanho. Que a Páscoa seja uma festa inspiradora para a união de todos aqueles que creem em Cristo e estão comprometidos com a sua mensagem de salvação.

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