domingo, 23 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA PÁSCOA - VER E CRER - 23.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – VER E CRER – 23.04.2017

Caros Leitores,

Este segundo domingo da Páscoa ou domingo da oitava da Páscoa foi consagrado pelo Papa João Paulo II como o Domingo da Misericórdia, criando assim a Festa da Divina Misericórdia. Este domingo possui ainda uma milenar tradição na liturgia com o nome de Dominica in Albis (o domingo da brancura), porque na antiga oitava da Páscoa, aqueles que se haviam batizado na Vigília Pascal e haviam passado toda a semana em comemoração, usando sua veste batismal, reuniam-se novamente e ali depunham solenemente essas vestes brancas, voltando a usar suas roupas comuns e se inserindo na comunidade, juntando-se aos outros irmãos da fé. É comum que, em todas as festas religiosas importantes, se celebre a oitava da festa, mas a oitava da Páscoa sempre foi a mais solene, era quase como uma repetição da festa do domingo anterior. A tradição de celebrar a “oitava” de uma festa religiosa está também ligada à festa judaica dos pães ázimos, que tem duração de sete dias, e que corresponde à celebração da Páscoa.

Nas leituras litúrgicas selecionadas para este domingo, temos na primeira um conhecido trecho dos Atos dos Apóstolos (At 2, 42-47), que narra o modo de vida das primeiras comunidades cristãs, cujo exemplo permanece como desafio constante a todos nós: “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e colocavam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um.” (At 2, 44-45) Penso que esse modo de vida só existiu mesmo naqueles primeiros tempos, uma irmandade total e irrestrita. Depois que o cristianismo foi-se infiltrando no mundo romano, sobretudo no meio da população mais rica de Roma, essa disponibilidade e repartição dos bens já não era assim tão exemplar. Se observamos bem, foi isso que o Seráfico Patriarca Francisco colocou na sua regra, no século XIII, como o voto de pobreza, porque então já não se praticava mais entre os cristãos. Até o Papa da época, Inocêncio III, duvidou que alguém conseguisse viver desse modo... Quanta ironia, era como se esse comportamento não estivesse de acordo com o evangelho que ele, como Papa, devia observar. Atualmente, as relações sociais se tornaram muito mais complexas e a vivência desse ideal precisa passar por um conjunto de ajustes hermenêuticos, a fim de ser posto em prática. Por isso, o testemunho das primeiras comunidades cristãs permanece como um desafio sempre atual para os cristãos de todos os tempos, conclamando-os a buscarem viver autenticamente o evangelho de Cristo, de acordo com as peculiaridades de cada segmento histórico.

A segunda leitura é retirada da primeira carta de Pedro. Poucas vezes, a liturgia seleciona trechos de escritos não paulinos, como é o caso deste domingo. Esta carta de Pedro foi dirigida aos cristãos de língua grega dispersos nas províncias romanas da Ásia Menor (Ponto, Galácia, Capadócia, Bitínia), numa época difícil de perseguição por motivos religiosos. Pedro incentiva os novos cristãos daquelas paragens evocando aspectos autobiográficos, exemplos de sua própria vida como apóstolo de Cristo, lembrando-lhes que é necessário suportar provações passageiros, para merecer a glória do céu. “Deste modo, a vossa fé será provada como sendo verdadeira - mais preciosa que o ouro perecível, que é provado no fogo - e alcançará louvor, honra e glória no dia da manifestação de Jesus Cristo.” (1Pd 1,7) Mas também esse trecho da carta é escolhido porque sintoniza com a leitura do evangelho, retirada de João, e que narra o famoso episódio da falta de fé manifestada pelo apóstolo Tomé acerca da ressurreição de Cristo, quando Pedro afirma: “Sem ter visto o Senhor, vós o amais. Sem o ver ainda, nele acreditais.” (1Pd 1,8) Apenas uma informação de curiosidade: Pedro não era um homem de letras, todos sabem que ele era um pescador, ou seja, Pedro não sabia escrever, aliás, fato que era bastante comum naquele tempo, em que havia os escribas profissionais. Então a carta de Pedro foi manuscrita por seu discípulo Silvano.

Na leitura do evangelho de João (Jo 20, 19-31), o tema é a incredulidade de Tomé, um dos textos bíblicos mais conhecidos e que, naquela época, era muito utilizado na catequese dos primeiros cristãos, como uma forma de fortalecer a fé dos convertidos, tomando como referência o (mau) exemplo de Tomé, que queria ver para crer, e associando isso com a reprimenda de Jesus, para vitalizar a atitude dos que creem sem ter visto. Prova do uso catequético desta história da dúvida de Tomé é que o episódio é narrado apenas no evangelho de João. O evangelista Lucas (24, 13-43) narra o diálogo de Jesus com os discípulos que iam para Emaús e, em seguida, a aparição dele aos apóstolos todos reunidos no Cenáculo, mas não se refere a Tomé. A narrativa de João é plenamente fidedigna, porque ele estava presente no momento do fato, diferentemente dos outros evangelistas, que escreveram baseados em outras fontes literárias. Não se pode afirmar, contudo, que o fato narrado por João não fosse do conhecimento dos outros evangelistas também, mas estes não o registraram. Por outro lado, João escreveu seu evangelho mais tardiamente e certamente já conhecendo os textos dos outros autores, isso fez com que ele acrescentasse detalhes que considerou importantes e que os outros haviam omitido. O próprio João ainda justifica: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro.” (2, 30) Ou seja, João sabia de mais coisas, que não escreveu, mas provavelmente contava aos cristãos do seu tempo. Daí é que se originam as tradições orais de fatos que, mesmo não estando escritos, são aceitos e acreditados pelos fiéis desde os primeiros tempos. Além disso, o evangelho de João tinha um propósito bem definido de servir como texto-base para uso na catequese das primeiras comunidades, quando o cristianismo se difundia velozmente entre as comunidades estrangeiras. Outro exemplo disso podemos observar no diálogo de Jesus com a samaritana (Jo 4,5), mostrando como Jesus acolhia bem os não judeus.

Um outro detalhe que se percebe nesse ponto da narrativa joanina é a referência ao “primeiro dia da semana”, que era o dia preferido para Jesus aparecer aos discípulos. “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles...” (Jo 20,19). Um pouco adiante, repete de modo análogo: “Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa...” (Jo 20, 26), isto é, uma semana depois, portanto, no primeiro dia da semana novamente. É interessante analisarmos essa tradução portuguesa de “primeiro dia da semana”. Se consultarmos o texto latino de S. Jerônimo, ele escreveu assim: “Cum ergo sero esset die illo una sabbatorum...”, que significa “portanto, como já fosse tarde naquele dia, um depois do sábado...” isto é, ele não diz que é o “primeiro dia” e sim que é o dia depois do sábado. A tradução portuguesa é que adapta a expressão para “primeiro dia da semana”, porque a semana dos judeus terminava no shabat e os apóstolos eram judeus. Deduz-se daí que, nessa época, o sábado era ainda o dia mais importante da semana, porque prevalecia a tradição judaica. Para a cultura judaica, ainda hoje, o dia termina com o por-do-sol e aí tem início o dia seguinte. Dizer, portanto, que já era tarde da noite de sábado equivale a dizer que já era a “feria prima”, o primeiro dia da semana (o nome domingo não existia naquela época). Por isso, algum tempo depois, os cristãos começaram a notar essa preferência de Jesus para realizar coisas prodigiosas no “dia depois do sábado”, sendo este também o dia em que ele ressuscitou, razão pela qual o Concílio de Nicéia (325 d.C.) mandou transferir o dia do repouso (shabat) para o dia depois do sábado, ou seja, o primeiro dia da semana, que passou a chamar-se “dominica”, isto é, o dia do Senhor. É a tradição que seguimos até os dias de hoje.

E sobre a festa da Divina Misericórdia, celebrada hoje, o Papa Francisco recordou a instituição desse dia em 2000, por João Paulo II, afirmando: “Eis o sentido da misericórdia que se apresenta no dia da ressurreição de Jesus como perdão dos pecados. Jesus ressuscitado transmitiu à sua Igreja, como primeira tarefa, a sua própria missão de levar a todos o anúncio concreto do perdão. Este sinal visível da sua misericórdia traz consigo a paz do coração e a alegria do encontro renovado com o Senhor”, ”

Meus amigos, neste domingo especial da oitava da Páscoa e festa da Divina Misericórdia, renovo a todos os votos de uma contínua e permanente ressurreição, na labuta diária de cada um.

****

Nenhum comentário:

Postar um comentário