COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO
DA QUARESMA – JESUS DIVINO E HUMANO – 02.04.2017
Caros Leitores,
Neste 5º domingo da quaresma, a
liturgia traz para nossa reflexão outro trecho do evangelho de João
que era utilizado na catequese antiga durante a preparação dos
catecúmenos, completando uma trilogia de ensinamentos. No domingo
anterior, o tema foi a luz, com a cura do cego; no domingo mais
anterior, o tema foi a água, no diálogo com a samaritana; neste
domingo, o tema é a vida, com a ressurreição de Lázaro. Jesus é
a luz que dissipa as trevas, a água que sacia para sempre a sede, a
vida que nunca se acaba. Nessa narrativa da ressurreição de Lázaro,
o evangelista faz questão de salientar o lado humano e emocional de
Jesus. Por duas vezes, o texto fala que Jesus emocionou-se
profundamente diante da comoção das irmãs do falecido e uma vez
diz mesmo que Jesus chorou. O apóstolo João mostra, nesse episódio,
os dois lados da personalidade de Cristo: a humanidade da emoção e
a divindade do poder de ressuscitar.
Na primeira leitura, o profeta Ezequiel
(37, 12-14) destaca o poder divino sobre a vida e a morte, ao
anunciar: “vou
abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel; e
quando eu abrir as vossas sepulturas e vos fizer sair delas, sabereis
que eu sou o Senhor”.
Mais de uma vez, Jesus demonstrou esse poder sobre a vida, fazendo
ressuscitar a filha de Jairo (Mt 9, 18), o filho da viúva de Naim
(Lc 7, 11), e o evento mais comentado: a ressurreição de Lázaro,
pelo grau de amizade que Jesus mantinha com a família dele. O
profeta Ezequiel foi discípulo de Jeremias e sucedeu a este na
atividade profética, tendo sido levado cativo para a Babilônia. A
sua profecia é cheia de imagens enigmáticas, que trazem
divergências nas interpretações dos teólogos, os quais comparam
suas visões àquelas narradas por João, no Apocalipse. Esse trecho
lido na liturgia de hoje refere-se aos israelitas mortos durante o
cativeiro, que mesmo assim serão conduzidos para a terra de Israel,
porque o Senhor é poderoso, Ele diz e faz.
Na segunda leitura, da carta aos
cristãos de Roma (Rm 8, 8-11), Paulo desenvolve também a temática
da ressurreição, fazendo o paralelo entre a vida segundo a carne e
a vida segundo o espírito. A primeira leva à morte, a segunda
conduz à vida plena. “Vós
não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, se realmente o
Espírito de Deus mora em vós. Se alguém não tem o Espírito de
Cristo, não pertence a Cristo.”
(8, 9) Quem vive segundo o espírito, tem o Espírito Santo dentro
dele e isso é a garantia de que aquele que ressuscitou Jesus dentre
os mortos também vivificará nossos corpos mortais. Neste último
domingo da quaresma, as leituras litúrgicas estão chamando a
atenção dos cristãos para o mistério da Redenção operada por
Cristo, cuja memória celebramos na festa da Páscoa. Embora a
tradição religiosa que nos foi legada tenha uma tendência a
enxergar sobretudo o aspecto do sofrimento e da paixão, a liturgia
já está nos exortando que o foco central da preparação da Páscoa
deve ser a fé na ressurreição de Cristo, porque esta é a verdade
básica do cristianismo. Paulo fez essa síntese catequética
extraordinária, quando declarou: se Cristo não ressuscitou, vã é
a nossa pregação e vã é a vossa fé (1Cor 15, 14). Devemos,
portanto, enxergar para além do sentimentalismo, que a devoção
tradicional associou aos eventos da semana santa, concentrados nos
sofrimentos de Cristo, para alcançarmos o verdadeiro sentido da
Páscoa cristã.
No evangelho (Jo 11, 3-45), lê-se um
dos trechos mais longos das leituras dominicais, no qual o apóstolo
narra com riqueza de detalhes os fatos circunstanciais relativos ao
milagre da ressurreição de Lázaro. O propósito catequético
joanino está bem evidente no destaque que ele dá a esses detalhes,
para demonstrar a figura divina de Cristo, que não se dissocia do
seu lado humano. João fala da amizade de Jesus com Lázaro e suas
irmãs. Mostra o receio dos discípulos pelo fato de Jesus querer
voltar para a Judéia, onde morava Lázaro, pois de lá eles haviam
escapado fazia pouco tempo, com medo da ira dos judeus, que queriam
apedrejar Jesus. E no meio de tudo isso, mostra um fenômeno raro nos
evangelhos, que evidencia a humanidade de Jesus, quando diz que ele
se emocionou profundamente até o ponto de chorar. Nenhum trecho do
evangelho afirma que Jesus sorriu, mas nessa leitura de hoje João
afirma que ele chorou.
O relato da ressurreição de Lázaro é
um texto clássico na literatura cristã e apresenta uma verdade
incontestável. Nenhum daqueles judeus que estavam presentes na casa
das irmãs Marta e Maria, quando Jesus ali chegou depois de Lázaro
ter sido sepultado, pôs em dúvida este fato. No caso do cego de
nascença, conforme vimos no domingo passado, houve questionamentos
se o homem era mesmo cego, até os pais dele foram inquiridos para
atestarem isso. Mas no caso de Lázaro, a prova foi tão contundente
que João diz apenas assim, no fim da narrativa: muitos dos judeus
que viram isso creram nele. Lázaro já estava sepultado há quatro
dias, não havia como alegar algum tipo de armação ou fingimento.
As irmãs até alertaram Jesus: ele já cheira mal. Não havia nada
que alguém pudesse alegar para tentar desconstituir aquele
espetacular milagre que Jesus produziu. É de se destacar ainda a
oração que Jesus fez ao Pai antes de operar o milagre: “por
causa do povo que me rodeia, para que creia que tu me enviaste
” (Jo 11, 42)
Quero comentar um detalhe dentre os
muitos contidos nessa narrativa, que é este: e Jesus chorou. João
relata que os judeus viram Jesus chorando e até comentaram: veja
como Ele o amava... Isto é, ninguém duvidou de que Jesus estivesse
realmente chorando, ninguém alegou que fosse fingimento. Por que
estou eu insistindo nesse detalhe? Porque o principal mistério da
teologia cristológica é exatamente esse das duas naturezas de
Cristo: a natureza divina e a humana. Esse foi um dos temas mais
difíceis enfrentados pelos primeiros teólogos do cristianismo, por
causa da dificuldade de sua compreensão. Foi nesse contexto que
surgiu a principal heresia dos tempos iniciais do cristianismo, o
arianismo, criada por um bispo chamado Ario. A doutrina dele era
assim: Jesus é filho de Deus, mas não é Deus, porque Deus é um
só. Ele seria filho de Deus, criado desde o início dos tempos,
conforme consta na Bíblia, mas não seria igual a Deus, ou seja, ele
não teria a natureza divina. Ele estaria colocado numa posição
acima dos homens e abaixo de Deus, uma espécie de semi-deus. Em
resumo, Ario negava a natureza divina de Cristo. Ele seria um ser
humano especial, mas não igual a Deus, porque só existe um Deus.
Com isso, Ario negava também a Trindade Santa, o Deus Uno e Trino,
porque essa verdade da fé não pode ser explicada pela razão
humana. Desde o início, a teoria ariana foi rejeitada pelos teólogos
orientais, porém os cristãos gregos a admitiam com facilidade, por
causa da semelhança dessa doutrina com as divindades gregas, que
eles cultuavam antes do cristianismo.
Foi o sustentáculo dos teólogos
orientais, sobretudo de Santo Atanásio, bispo de Alexandria, que fez
prevalecer a doutrina de que Cristo é “homo-ousios”, ou seja,
tem a mesma essência do Pai. A consolidação dessa doutrina
atanasiana se deu no Concílio de Nicéia, em 325, quando foi
redigido o símbolo dos Apóstolos, o Credo que se reza na missa:
Cristo foi gerado (não criado), consubstancial ao Pai, e o Espírito
procede do Pai e do Filho. Dizem os historiadores que, ao final
daquele Concílio, onde foi vencedora a tese de Santo Atanásio,
alguns bispos presentes que tiveram voto vencido (os bispos arianos),
mesmo não concordando, terminaram por assinar o documento oficial do
Concilio, porém houve bispos que se recusaram a assinar e esses
foram destituídos dos seus cargos e expulsos da Igreja. Dizem ainda
os historiadores que isso não determinou o fim do arianismo, pois
esses bispos expulsos fugiram para outras localidades mais distantes,
onde continuaram pregando a sua doutrina como verdadeira e assim,
durante séculos, várias comunidades continuaram professando a fé
ariana, especialmente no território oriental.
Meus amigos, quando lemos sobre essas
difíceis polêmicas suportadas pelo cristianismo primitivo,
compreendemos melhor o motivo de termos, nos dias de hoje, tantas
divergências doutrinárias dentro do universo cristão católico. Ou
seja, essas dissensões sempre existiram e já foram causa de
inomináveis ações separatistas, as quais tenta-se evitar nos dias
de hoje. O caso mais recente é o da comunidade São Pio X, do
Monsenhor Lefébvre, cujo realinhamento com a Santa Sé vem sendo
negociado já faz alguns anos, embora ainda não tenha se
concretizado. E o Papa Francisco carrega consigo essa enorme
responsabilidade de unificar as comunidades divididas, para que haja
um só rebanho. Que a Páscoa seja uma festa inspiradora para a união
de todos aqueles que creem em Cristo e estão comprometidos com a sua
mensagem de salvação.
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