domingo, 9 de abril de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE RAMOS - 09.04.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE RAMOS – FOI POR AMOR - 09.04.2017

Caros Leitores,

O ciclo anual da liturgia nos coloca novamente no período mais simbólico das comemorações cristãs, que é o tempo da Páscoa. A celebração desta é antecedida pelo Tríduo Pascal (quinta, sexta e sábado santos) e estes são antecedidos pelo Domingo de Ramos, festejado nesta data. Na condição de cristãos amadurecidos na fé, precisamos ultrapassar as velhas tradições que recebemos, não nos quedando apenas na memória da Paixão do Senhor, mas sempre recordando que se deve colocar acima desta a memória da Páscoa do Senhor. Na verdade, toda a nossa fé cristã e católica se alicerça na Ressurreição de Cristo, não na sua paixão. Foi pela cruz que Jesus redimiu nossos pecados, mas foi pela ressurreição que ele nos abriu a porta do céu, por isso, todas essas comemorações só fazem sentido se estivermos olhando para a ressurreição. Se não for assim, é vã a nossa fé, já disse o apóstolo Paulo. (1Cor 15, 17).

Conforme alguns Colegas já sabem, eu estou participando de um curso sobre hebraico bíblico e no decorrer do curso, tomamos conhecimento também dos costumes judaicos. O curioso é que os judeus ainda hoje celebram a sua páscoa do mesmo modo como era no tempo de Cristo: mesma data, mesmos rituais, mesma tradição. Quando o evangelho de Mateus, lido hoje, diz assim: “no primeiro dia dos ázimos...” (26, 17), lembrei que a professora de hebraico explicou como os judeus celebram esse período, que compreende aos dez dias subsequentes à lua nova do mês de nissan, pra eles, o primeiro mês do ano. Outra curiosidade que ela informou sobre a “pessach” é que, nesse período, ninguém pode comer nenhum alimento proveniente do trigo, apenas esse pão ázimo, que é preparado com a massa sem fermento. Trata-se da mesma tradição milenar, que já era observada no tempo de Cristo e faz-nos lembrar daquelas regras antigas sobre o jejum, quando o Direito Canônico estabelecia a quantidade de gramas máxima para cada refeição, para não “quebrar o jejum”. Felizmente, já superamos essa “burocracia” ritual.

Pois bem, estou comentando acerca dos costumes judaicos, porque desenvolveu-se, na nossa cultura cristã, um terrível preconceito contra os judeus, porque foram eles que mataram a Jesus. Vale a pena lembrar que uma santa italiana, Santa Gemma Galgani, relatou ter conversado com Jesus e, certa vez, perguntou-lhe: Senhor, quem te matou? E Jesus respondeu a ela: foi o amor. De fato, Jesus deu sua vida por amor da criação divina, do universo inteiro, incluído aí o ser humano, conforme fora prometido a Abraão. Os operadores dessa promessa foram os sumos sacerdotes judeus e Judas, o Iscariotes. Por causa disso, esses personagens foram historicamente execrados. Judas, encarnou o traidor; os judeus se tornaram os pérfidos judeus, como dizia uma antiga oração da sexta feira santa. Mas quem matou Jesus foi o amor, o imenso amor, incomensurável amor, que só cabia mesmo no seu incomensurável coração. Então, nós precisamos também ir além daquela vetusta tradição com que nos martelaram a cabeça durante muito tempo: Judas traidor, pérfidos judeus. Nesse Domingo de Ramos, dediquemo-nos a falar um pouco sobre esse personagem execrado na tradição, Judas Iscariotes, aquele que é enforcado e queimado em mastros públicos, não sem antes ser açoitado, maltratado, esfarrapado, tudo como uma espécie de vingança tardia dos seguidores de Cristo.

Comecemos por interpretar o nome dele – Judas Iscariotes. O nome em português Judas é a transliteração do grego IOUDA, que por sua vez é adaptado do hebraico Yehudhah, palavra que significa “abençoado”. Vejam só a contradição que esse nome encerra: Judas significa o abençoado. Iscariotes em hebraico corresponde a duas palavras ISH QUERYOT, significando (uma das suas compreensões) “o homem de Queryot”, filho de Simão de Queryot, sendo esse o nome de uma vila na Judéia. Existe outra interpretação mais política para esse apelido, que é ISH SICARI, em que sicari significa punhal, então ish sicari seria o assassino que mata por dinheiro, o pistoleiro dos sertões nordestinos. Essa interpretação recorda um grupo de terroristas judeus, que existia dentro de um partido político chamado de zelotes. Os zelotes eram inimigos dos romanos, que naquele tempo ocupavam a Palestina, e incitavam o povo judeu a resistir contra os invasores. Havia uma facção dos zelotes, que praticavam assassinatos de adversários políticos, usando punhais. Talvez Judas fizesse parte desse grupo, mas isso não tem confirmação histórica, são apenas hipóteses dos estudiosos. Mas embora não seja certo que ele pertencia a esse grupo de assassinos, o fato de ser ele um zelote é aceito por todos. Os zelotes eram conhecidos na época, porque faziam propaganda aberta contra os romanos e, enquanto zelote, Judas lutava pela libertação da Palestina, pela expulsão dos romanos de lá e viu em Jesus um líder que tinha apoio popular para realizar isso. Desse modo, a aproximação de Judas a Cristo teria sido motivada por esse interesse político.

Não podemos esquecer, porém, que o grupo dos doze foi escolhido por Jesus, Ele os chamou para a sua companhia, não foi imposição de ninguém. Ora, todos cremos que Jesus sabia de todos os desafios que iria enfrentar, sabia que Judas seria o intermediário dos acontecimentos, então, por que razão Jesus teria chamado e mantido Judas no grupo dos doze até o final? Com certeza, era porque Jesus tinha consciência do papel dele, da sua importância, fazia parte do 'plano' do Pai. De acordo com um manuscrito descoberto há pouco tempo, denominado o evangelho de Judas, documento escrito por volta do século II ou III, Judas era o discípulo que mais conversava com Jesus, era da sua total confiança. Se Jesus fosse apenas um ser humano comum, poderíamos dizer que ele fora enganado. Mas Jesus, sendo homem e Deus, não teria como ser enganado por Judas. Portanto, Jesus sabia de tudo e sabia que Judas seria “necessário” para que o plano do Pai se concretizasse. Aquele conhecido filme de Hollywood – Jesus Cristo Superstar – aborda bem essa temática sobre a missão de Judas.

A partir desse raciocínio, podemos concluir que a infâmia de “traidor” foi atribuída a Judas pelos outros onze apóstolos, após os acontecimentos, com a finalidade de execrá-lo. Todos os evangelistas tratam Judas como traidor, mas Mateus é o que carrega mais na difamação dele, descrevendo até o seu suicídio. Na verdade, podemos dizer que o evangelho de Mateus tem dois objetivos básicos: um é mostrar que Jesus é o Messias esperado e predito pelos Profetas; o outro é execrar Judas. Quando lemos o texto de Mateus, vemos que ele está, com frequência, dizendo algo assim: isso aconteceu para que se cumprisse o que disse o profeta tal. Na narração da Paixão, Mateus até inclui a história das 30 moedas, relacionando com um trecho de Jeremias (Mt 27, 9), quando na verdade, a citação é de Zacarias (11, 12-13), ele até confundiu os profetas. Mas ele queria apenas justificar a história das 30 moedas. Os demais evangelistas não falam na quantidade de moedas, dizendo apenas que os sumos sacerdotes haviam lhe prometido dinheiro (Mc 14, 10; Lc 22,5) e João nem comenta sobre alguma recompensa. Com certeza, foi o evangelista Mateus o responsável pela tremenda má fama que recai ainda hoje sobre o personagem Judas, fato que leva as pessoas a evitarem colocar tal nome nos seus filhos. Contudo, nessa linha de raciocínio que estamos desenvolvendo, pode perceber-se que há uma grande injustiça embutida nessa tradição e, em nome da verdade e da caridade, devemos procurar observar Judas como um agente necessário para a economia da salvação. Num arroubo poético, Santo Agostinho chamou o pecado de Adão de “feliz culpa”, porque nos proporcionou tão insigne Redendor. Parafraseando Agostinho, podemos fizer que o ato de Judas foi também uma espécie de “feliz denúncia”, necessária para a arrematação dos fatos da história da salvação.

Na leitura dos relatos evangélicos, observamos que nenhum dos evangelistas comentou o fato de que Jesus sabia de tudo desde o início e, mesmo assim, manteve a presença de Judas no grupo e não o discriminou. Ao contrário, Jesus até confiava nele e fez dele o “caixa” do grupo. Os discípulos aproveitaram esse fato e transmitiram a imagem de Judas como um avarento, que só estava preocupado com as finanças do grupo. Provavelmente, Mateus também se aproveitou disso para ajudar a compor esse personagem avaro e odiado, em que Judas se transformou. Por outro lado, segundo o texto do evangelho apócrito citado acima (evangelho de Judas), não teria havido traição, mas sim o atendimento a um pedido de Jesus, para que Judas informasse aos romanos onde Ele estava. Como se pode deduzir, há muitos aspectos desse episódio e da própria pessoa de Judas que necessitam de maiores estudos e esclarecimentos a fim de que, numa perspectiva de maior serenidade, possamos reescrever a antiga tradição que o difama e o abomina. Com efeito, quem matou Jesus foi o grande amor que ele tem por todos nós.

Com essas reflexões, antecipo meus votos de Feliz Páscoa a todos.

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