COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA
PÁSCOA – 16.04.2017 – DIA DO SENHOR
Caros Leitores,
Foi num domingo de páscoa, em 2011, que comecei a escrever esses comentários, atendendo a algumas solicitações, e com isso pus-me a rever e aprofundar os conceitos bíblico-teológicos da nossa fé cristã. Associando isso aos estudos de hebraico, que passei a fazer em 2014, consigo hoje observar com mais amplitude os elementos doutrinários da teologia, procurando ultrapassar certos limites e preconceitos que nos foram ensinados na juventude, em especial aqueles relacionados com a festa da Páscoa. Existe muito romantismo associado à festa da Páscoa, como se percebe nos textos das mensagens que circulam na internet nesses dias, desviando o olhar do sentido histórico e cristão dessa festa, que tanto simbolismo contém.
Foi num domingo de páscoa, em 2011, que comecei a escrever esses comentários, atendendo a algumas solicitações, e com isso pus-me a rever e aprofundar os conceitos bíblico-teológicos da nossa fé cristã. Associando isso aos estudos de hebraico, que passei a fazer em 2014, consigo hoje observar com mais amplitude os elementos doutrinários da teologia, procurando ultrapassar certos limites e preconceitos que nos foram ensinados na juventude, em especial aqueles relacionados com a festa da Páscoa. Existe muito romantismo associado à festa da Páscoa, como se percebe nos textos das mensagens que circulam na internet nesses dias, desviando o olhar do sentido histórico e cristão dessa festa, que tanto simbolismo contém.
Numa abordagem histórica, os
pesquisadores não sabem a origem da festa da páscoa, porque essa é
uma tradição que se perde no tempo. Estima-se que a páscoa começou
a ser celebrada desde que os seres humanos começaram a formar grupos
estacionários em determinados locais, onde passaram a plantar
alimentos e criar animais, deixando assim de ser nômades, como eram
os primeiros grupos humanos. Ou seja, a festa da páscoa
originalmente estaria integrada com o próprio surgimento da
sociedade humana. Este período geográfico que, no hemisfério
norte, corresponde ao término do inverno e à chegada da primavera,
coincide com o tempo em que as árvores iniciam a brolhar após
degelo, começando a produzir os primeiros frutos da terra. Com as
nuvens se dissipando no céu, a lua podia ser divisada mais
facilmente e a primeira lua cheia após o inverno passou a ser
festejada como o tempo da primeira colheita, tempo de fartura e da
prosperidade, celebrando a paz entre a natureza e os seus habitantes,
tempo em que os animais também acasalam e a vida sobre a terra se
renova. Este seria o sentido primitivo da páscoa, festejada desde
tempos imemoriais.
Como podem verificar, nós celebramos a
páscoa pelo ciclo geográfico europeu, a páscoa do povo do norte,
pois se fôssemos considerar os mesmos fenômenos cósmicos no nosso
hemisfério, a nossa páscoa seria celebrada no mês de setembro.
Estando a festa da Páscoa relacionada com a primeira lua cheia da
primavera europeia, já imaginaram se nós, ocidentais e austrais,
fôssemos seguir o mesmo esquema para a definição da data da
páscoa? Deixaria de ser uma festa comemorada universalmente, como é
nos dias atuais, pois haveria a Páscoa do norte e a do sul. Porém,
essa divergência geográfica de fato não fará diferença, uma vez
que nós não celebramos a páscoa pelo seu significado histórico e
cultural, mas pelo sentido religioso que essa festa passou a ter após
a ressurreição de Cristo.
Numa abordagem teológica, a festa
cristã da Páscoa passou a ser celebrada logo depois que houve a
liberdade religiosa no império romano, o que se deu com o imperador
Constantino, em 321 d.C. O século IV da era cristã foi um período
de muitas definições dogmáticas e doutrinárias, tendo em vista
diversas heresias que se disseminavam no meio cristão, havendo a
necessidade do trabalho de refinamento teológico de insignes
Doutores da fé, expurgando doutrinas contrárias ao ensinamento de
Cristo, sendo necessário ainda, por diversas ocasiões, a reunião
de Concílios ecumênicos, com o objetivo de serem debatidas as
verdades teológicas que formam o núcleo central da doutrina cristã.
Foi nesse contexto que houve o debate acerca da definição da data
da Páscoa, bem como das diversas solenidades que compõem o ano
litúrgico. Foi nessa ocasião também que se deu uma importante e
radical mudança, que foi motivo de muita discussão e ainda hoje
divide opiniões, a mudança do “shabat”, ou seja, do descanso
semanal, que passou do sábado para o domingo. A partir da
consciência da magnitude da ressurreição de Cristo como sendo o
evento mais importante de todo o mistério da redenção, as
autoridades cristãs permutaram o antigo dia sabático pelo dia
dominical. Essa definição caracteriza também a passagem da
tradição do Antigo Testamento para o Novo Testamento.
Canonicamente, essa mudança foi definida nos Concílios de Nicéia
(325) e de Laodicéia (364).
Nesses concílios, ficou decidido que a
festa da Páscoa seria no domingo que sucede a lua cheia após o
equinócio da primavera no hemisfério norte, que tem como data de
referência o dia 21 de março. Desse modo, o domingo que sucede a
lua cheia após 21 de março de cada ano é a data da festa da
Páscoa. Essa definição, porém, continua sendo ponto de discórdia
entre a igreja romana e as igrejas orientais, pois estas consideram
que foi uma imposição do império romano, do mesmo modo que a
celebração do Natal, também definida na mesma oportunidade, teria
sido feita para atender a um pedido do imperador Constantino.
Atualmente, a mim parece que não é mais o caso de levar adiante tal
discussão, porque seria de pouca utilidade prática e o calendário
internacional não iria ser alterado por conta disso. Assim, a data
da páscoa continua seguindo o calendário lunar, gerando
divergências com as demais datas, que se orientam pelo calendário
solar, mas isso é administrado de uma forma já convencional e não
acarreta maiores transtornos. Embora não haja uma coincidência
exata de datas, no entanto a festividade pascal, em todas as
culturas, é celebrada sempre nesse mesmo período do ano, desde os
tempos ancestrais.
A Páscoa, portanto, originalmente está
associada à renovação da vida na terra, (no caso, considerando a
geografia europeia, pois naquela época as terras do lado sul
terrestre não eram conhecidas). Dentro da economia da salvação, o
plano salvífico de Deus fez coincidir a ressurreição de Cristo com
essa simbólica festividade da humanidade setentrional, dando-lhe um
sentido totalmente novo e inusitado. Integrando o Antigo com o Novo
Testamento, há uma curiosidade interessante: a
entrada de
Jesus
em Jerusalém deu-se
no
10º. dia do
mês de
Nissan, data
que corresponde
à
prescrição constante em
Êxodo 12:3-6, dia
em
que, de
acordo com a Lei de Moisés,
um cordeiro era separado do rebanho e colocado à disposição para
ser sacrificado na Páscoa. Nesse dia, entrando
triunfalmente em Jerusalém, Jesus
foi colocado à disposição dos sumos sacerdotes judeus para ser
sacrificado, uma
coincidência que, sem dúvida, une os dois Testamentos.
Após a ressurreição de Cristo, a Páscoa deixou de
ser apenas uma festa das colheitas do campo, da celebração da vida
natural, da cultura humana, e veio assumir uma dimensão especial na
economia da salvação, transmudando o seu sentido para a dimensão
espiritual e alcançando não apenas os habitantes de uma região do
mundo, mas toda a humanidade. Jesus ia todos os anos a Jerusalém,
para celebrar a páscoa com os discípulos, mas Ele sabia que naquela
vez seria diferente, daí ter preparado tudo, conforme descrevem os
evangelistas, inclusive aquela entrada triunfal, sendo aclamado com
ramos de palmeiras, de modo a chamar bem a atenção dos fariseus,
sacerdotes e chefes do povo. Ali, ele se colocou à disposição.
Tudo fora preparado, no plano divino, para que a antiga páscoa dos
homens fosse transformada na nova Páscoa de Cristo.
As primeiras comunidades cristãs não
perceberam essa nova dimensão dos fatos logo no início e
continuaram celebrando o dia do Senhor no sábado, como era a
tradição judaica. Mas depois foram percebendo que, com a
ressurreição de Cristo, a Páscoa tinha ganho um novo sentido e
aquela tradição sabática precisava ser superada pela celebração
dominical, porque Jesus havia ressuscitado no primeiro dia da semana,
após o shabat. Aqueles que não creem em Cristo como o Salvador e,
portanto, não reconhecem o novo testamento escrito com o seu sangue,
continuam guardando o sábado. Ou algumas denominações cristãs
radicais que, mesmo acreditando em Cristo, não aceitam a mudança de
significado do “sábado-dia do descanso” para o “domingo-dia do
senhor” e continuam a guardar o sétimo dia, em vez do primeiro dia
da semana. O novo significado da Páscoa, como festa da vida
renovada, da vida plena e definitiva, da vida que supera a morte
devia ser comemorada como uma nova festa, com um novo simbolismo. O
dia da ressurreição do Senhor, o primeiro dia da semana, passou a
ser, então, a nova referência para as festividades pascais.
Meus amigos, quando hoje celebramos a Páscoa, devemos nos lembrar disso: pela Páscoa da ressurreição de Cristo, nós ganhamos um verdadeiro motivo para comemorar, qual seja, a nossa redenção, a conquista da nossa vida plena e definitiva, que Cristo antecipou para nós com a sua ressurreição dos mortos e nos deu a certeza de que, assim como Ele, nós também teremos a nossa vitória sobre a morte e sobre o pecado e um dia nos uniremos com Ele, junto do Pai, na morada eterna. Para além, portanto, das costumeiras saudações de Feliz Páscoa ou mesmo utilizando essa costumeira terminologia, nossas palavras passam a ter um novo sentido, se estivermos conscientes do seu verdadeiro significado.
Renovados votos de Feliz Páscoa a todos.
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