COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO
COMUM – PODER E LIDERANÇA – 27.08.2017
Caros Confrades,
Neste 21º domingo comum, a liturgia
coloca para nossa reflexão um tema importante e ao mesmo tempo
polêmico, qual seja o da liderança de Pedro. Afinal, Jesus quis
mesmo instituir Pedro como “chefe” da sua Igreja? Esse trecho de
Mateus (16, 17-19) foi utilizado historicamente para fundamentar a
teoria do primado de Pedro e, por via de consequência, a autoridade
do Papa como “chefe” da Igreja universal. Mas será que Cristo,
de fato, pretendeu isso? Ele que sempre ensinou e deu exemplo da
liderança pelo serviço? Ele que sempre se recusou a ser considerado
como chefe do seu grupo de discipulos? Ele sempre ensinou e insistiu:
o que se julgar ser maior do que os outros seja aquele que serve
mais, ou quem se julgar o maior, que seja o menor. A clareza na
solução das discussões em torno desse tema é a chave para a
re-união das Igrejas ocidental e oriental.
Temos na primeira leitura, retirada do
livro de Isaías (22, 19-23), uma repreensão do Profeta contra
Sobna, o administrador do palácio real no tempo do rei Ezequias. O
reinado deste trouxe desastrosas consequências para Israel, em
virtude de seus erros administrativos, colocando em risco a segurança
do povo, ao fazer alianças políticas duvidosas, além de não
valorizar o poder do Javeh, preferindo confiar nos reis vizinhos.
Sobna era um estrangeiro administrador do palácio real e, diante da
ameaça de invasão de Israel pelo exército da Assiria, em vez de
estimular o povo a rezar, fazer penitência e pedir a proteção de
Javeh, duvidou do seu poder, mandando oferecer banquetes para todos,
dizendo: vamos comer hoje, porque amanhã iremos todos morrer. Ou
seja, tanto Ezequias quanto Sobna foram infiéis a Javeh e duvidaram
do seu poder contra os inimigos do povo, por isso o profeta Isaías
foi avisá-lo de que aquele lugar de administrador seria agora
assumido por Eliakim, filho de Helcias. O castigo para Ezequias viria
depois. Podemos associar a figura de Sobna à do administrador
infiel. Ele desconheceu totalmente a autoridade em nome de quem
exercia o poder e, com seu mau exemplo, transmitiu a desconfiança ao
povo. Ao invés de exercer a liberança a serviço do povo, Sobna
fazia na verdade um desserviço, por isso, Javeh irá substitui-lo
por um outro administrador, como disse o Profeta: “eu
o vestirei com a tua túnica e colocarei nele a tua faixa, porei em
suas mãos a tua autoridade; ele será um pai para os habitantes de
Jerusalém e para a casa de Judá.”
(Is 22, 21) A liturgia utiliza esse episódio de Sobna para fazer o
contraponto com o trecho do evangelho de Mateus, no conhecido
episódio em que Cristo institui Pedro como a “pedra” fundamental
da Igreja.
Na segunda leitura, um trecho em
continuidade da Carta aos Romanos, que vem sendo lida já há vários
domingos, o Apóstolo louva a riqueza, a sabedoria e a ciência
divinas. Esse hino de louvor, da forma como está apresentado na
liturgia, fica melhor entendido se for contextualizado. Nas linhas
anteriores, Paulo está explicando aos Romanos que nós, pessoas
humanas, estávamos iguais a ramos que foram cortados de uma oliveira
e Cristo, com o seu sacrifício, nos reinseriu na árvore, dando-nos
de novo a vida. Paulo lembra aos Romanos que os judeus se recusaram a
ser reinseridos na oliveira, por causa da incredulidade deles, mas
ele (Paulo) está convocando os gentios para assumirem aquele lugar
recusado pelos judeus. Por isso, ele proclama: “Ó
profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são
inescrutáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos!”
(11, 33) Paulo utiliza um argumento bem simples e convincente, de
modo a conseguir a adesão dos romanos cultos à doutrina cristã. Os
romanos daquele tempo estavam muito influenciados pela filosofia
grega, sobretudo pelo moralismo dos pós-socráticos e Paulo
servia-se dessa situação para mostrar que o cristianismo era
superior ao moralismo grego. E com isso ele conquistou numerosos
adeptos entre os romanos, aqueles que se reuniam nas catacumbas para
ouvir a pregação dele e receber o batismo.
Na leitura do evangelho de Mateus (16,
13-20), Jesus interroga seus discípulos sobre o que as pessoas falam
a respeito d'Ele. “O que dizem os homens sobre o Filho do Homem?”
As respostas são várias: uns dizem que é João Batista ou Elias ou
Jeremias, ou algum profeta que ressuscitou. Foi quando Pedro
sintetizou: Tu és o Cristo de Deus. E Jesus advertiu os discípulos
para que não espalhassem essa informação por enquanto. Até aqui,
o trecho do evangelho de Mateus (16, 13-17) é semelhante aos outros
dois evangelhos sinóticos: Marcos (8, 27-30) e Lucas (9, 18-21). O
problema começa no versículo seguinte, que dá continuidade à fala
de Jesus: “… por isso, eu te digo que tu és Pedro e sobre essa
pedra edificarei a minha igreja e as forças do mal não prevalecerão
contra ela”. Ou seja, considerando que os outros dois evangelhos
sinóticos não contém tal acréscimo, há fortes suspeitas de que,
durante a Idade Média, antes que fosse definido o cânon dos livros
da Bíblia, certos trechos das escrituras teriam sido propositalmente
“editados”, de modo a servir de fundamento a algumas doutrinas
que começaram a ser divulgadas. O fato de que os outros dois
evangelhos terminam o seu relato na parte em que Pedro diz: Tu és o
Cristo de Deus e somente o evangelho de Mateus contém aquela parte
restante levanta sérias dúvidas de que esse trecho final teria
sido, possivelmente, uma inserção que não constava no manuscrito
original, com o objetivo específico de dar um fundamento bíblico à
autoridade de Pedro como “chefe” da Igreja. Tal suspeita é
reforçada pelo fato de que os Patriarcas das igrejas orientais não
concordaram quando o Bispo de Roma se arvorou na autoridade suprema
de todos os cristãos, acima da autoridade deles, levando ao cisma,
que ainda hoje persiste. De fato, sabe-se que os evangelhos
denominados de sinóticos são compilações de documentos mais
antigos, manuscritos que circulavam nas primeiras comunidades cristãs
formadas logo após a ressurreição de Cristo, por isso suas
passagens guardam grande semelhança. Qual seria a explicação para
esse trecho dos versículos 18 e 19 se encontrarem apenas na
compilação de Mateus? Por que os outros dois evangelistas não
citam isso? Não há resposta uniforme e clara para essas perguntas.
Não obstante isso, é importante
deixar claro que essas são dúvidas acadêmicas e que há de ser
prestigiado o texto oficial, que é reconhecido como autêntico.
Mesmo assim, a situação está longe de ser pacificada, porque surge
outra questão igualmente importante. Ainda que Pedro tenha sido
formalmente indicado por Cristo para liderar o grupo dos apóstolos
após a sua paixão, que ocorreria logo depois desses eventos, vem a
outra dúvida séria: a autoridade dada a ele por Cristo era para ser
o chefe mesmo, isto é, para ele ter um nível hierárquico superior
aos demais?
A propósito dessa questão, trago aqui
um trecho de um artigo do Cardeal Orani Tempesta: “O Papa
Emérito Bento XVI ensinou que: "A Cátedra de Pedro evoca outra
recordação: a conhecida expressão de Santo Inácio de Antioquia
que, na sua Carta aos Romanos, designa a Igreja de Roma como «aquela
que preside à caridade» (Inscr.: PG 5, 801). Com efeito, o fato de
presidir na fé está inseparavelmente ligado à presidência no
amor. Uma fé sem amor deixaria de ser uma fé cristã autêntica.
Mas as palavras de Santo Inácio contêm ainda outro aspecto, muito
mais concreto: de fato, o termo «caridade» era usado pela Igreja
primitiva para indicar também a Eucaristia. Efetivamente, a
Eucaristia é Sacramentum caritatis Christi, por meio do qual Ele
continua a atrair a Si todos nós, como fez do alto da cruz (cf. Jo
12, 32). Portanto, «presidir à caridade» significa atrair os
homens num abraço eucarístico – o abraço de Cristo – que
supera toda a barreira e estranheza, criando a comunhão entre as
múltiplas diferenças."1
Ora, meus amigos, presidir na caridade significa estar a serviço.
Foi justamente o que Cristo fez na última ceia, quando amarrou uma
toalha na cintura e passou a lavar os pés dos apóstolos. E ainda
disse: eu vos dei o exemplo para que façais o mesmo. “O maior
de vocês deve ser aquele que serve.” (Mt 25,11)
Infelizmente, a doutrina do primado de Pedro e dos seus sucessores no
bispado de Roma não foi sempre tomada nesse sentido. Ao contrário,
a autoridade romana se tornou símbolo de monarquia, de
autoritarismo, de poder político mesmo, isso durante muitos séculos.
Pelo que eu conheço da história dos Papas, eu destacaria somente
dois, os quais eu posso dizer que presidiram realmente na caridade: o
Papa João XXIII e o atual Papa Francisco. Todos os demais foram
sempre supremas majestades, que exerciam autoridade política acima
até dos governantes estatais, que usavam a tríplice coroa como
símbolo dos poderes religioso, material e político. Certamente, não
foi isso que Cristo transmitiu a Pedro e esse foi o grande motivo
para a cisão das igrejas orientais, que não aceitaram a submissão
ao Bispo de Roma. Este fato é um real e difícil obstáculo para que
se alcance a unidade dos cristãos.
Que o Divino Mestre inspire o Papa
Francisco a presidir realmente na caridade e assim possamos ter
novamente a união de todos os cristãos dentro da mesma comunidade.
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1http://www.cnbb.org.br/eventos-1/muticom/13641-a-catedra-de-pedro