COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO
DA QUARESMA – A FIGURA DO MESSIAS – 11.03.2018
Caros Leitores,
A liturgia do 4º domingo da quaresma
possui um tema comum que aparece nas três leituras, que é a figura
do ungido. Em cada uma das leituras, o vocábulo é diferente, mas o
significado comum dentre eles é o mesmo. Na primeira leitura,
aparece o personagem Ciro, rei dos Persas, a quem Isaías (44, 29)
chama de ungido; na carta de Paulo aos Efésios, por diversas vezes,
é citado o nome de Cristo; no evangelho de João, no seu diálogo
com Nicodemos, Jesus relembra a figura salvadora da serpente elevada
na vara, como preconização do Messias que salva pela Sua cruz. É
curioso observarmos que o vocábulo Messias (em hebraico mashiach)
foi traduzido na língua grega por KRISTÓS, ambos com o significado
de consagrado, ungido. Ciro, o libertador do povo hebreu cativo na
Babilônia, foi ungido por Javeh para derrotar o inimigo
escravizador; Cristo, o ungido pelo Pai, nos salva do pecado em um
ritual semelhante ao que Moisés usou no deserto para salvar o povo
da serpente venenosa. O Antigo e o Novo Testamento se entrelaçam
através desses episódios e sinais.
Na primeira leitura retirada do livro
de Paralipômenos ou Crônicas, o escritor sagrado destaca a
infelidelidade do povo a Javeh, substituindo-O pelos ídolos das
nações pagãs e profanando o sagrado templo, por isso, obteve como
consequência a morte e a escravidão, assim como a destruição de
Jerusalém. Foi o tempo do cativeiro da Babilônia. Nesse contexto,
Javeh enviou o profeta Isaías, para catequizar os hebreus e fazê-los
compreender que o castigo era resultado da sua infidelidade, mas que
a misericórdia do Senhor estava sempre pronta a perdoar, esquecer
tudo e devolver a liberdade deles. Por fim, Isaias mostrou ao povo
que Javeh se utilizou da força do exército de Ciro, rei dos Persas,
para vencer o dominador babilônico e restituir-lhes a liberdade. É
o que se contém em Isaías 44, 29: “ASSIM diz o SENHOR ao seu
ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações
diante de sua face, e descingir os lombos dos reis, para abrir diante
dele as portas ”. E na leitura deste domingo, nas Crônicas,
lemos que o rei Ciro baixou um Edito que ele mandou publicar de viva
voz e afixar em todo o reino, confirmando a promessa de Javeh: 'Assim
fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os
reinos da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em
Jerusalém, que está no país de Judá. Quem dentre vós todos,
pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que
se ponha a caminho'. (II Cro 36, 23) Foi a concretização da tão
sonhada liberdade do povo hebreu. O próprio Ciro não precisou fazer
nenhum esforço para a reconstrução de Jerusalém, porque disso os
hebreus se encarregaram e puderam retornar ao seu país, após
setenta anos de escravidão. Na verdade, se fizermos as contas, os
que retornaram não foram os mesmos que partiram, mas a segunda ou a
terceira geração deles, se considerarmos o espaço de vinte anos
entre uma geração e outra. Aqueles que violaram o templo e
praticaram infidelidades e foram por isso submetidos ao cativeiro já
não mais existiam no momento da libertação.
Na segunda leitura, de Paulo aos
Efésios, ele destaca a figura central de Cristo (o ungido do Pai)
para nos libertar de outra escravidão, não aquela do tipo político,
como os hebreus do passado, mas a escravidão do espírito, através
do pecado, quando afirma: “Por causa do grande amor com que nos
amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos
deu a vida com Cristo. É por graça que vós sois salvos! ” (Ef 2,
4) Neste outro momento da história do povo de Deus, a libertação
chegou novamente ao povo de Deus de forma plena na pessoa de Cristo,
em cuja ressurreição, o Pai nos ressuscitou a todos e nos garantiu
um assento no céu. Nesta leitura, temos também uma afirmação
paulina, que é motivo de divergência entre os teólogos, em relação
àquilo que é necessário para a salvação. Lutero divergiu da
doutrina eclesiástica ao afirmar que a salvação advém pela fé,
ela basta. Mas a teologia ensina que somente a fé não é
suficiente, mas é necessário que a fé se manifeste através de
obras de caridade. No cap 2, vers 8, Paulo diz que “é pela graça
que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de
Deus! Não vem das obras, para que ninguém se orgulhe. ” Até
aqui, tem-se a impressão de que Lutero estava com a razão. Porém,
no versículo seguinte, Paulo continua e completa: “nós
fomos criados em Jesus Cristo para as obras boas, que Deus preparou
de antemão para que nós as praticássemos.”
Ora, meus amigos, o que Paulo está dizendo? Que a fé é uma graça
que Deus nos dá e, com ela, faremos boas obras e assim teremos
acesso à salvação, ou seja, tudo se inicia com a fé, porém essa
fé precisa ser operante. De acordo com Paulo, sem a graça que Deus
nos dá, não teríamos a fé e sem a fé não teríamos a salvação.
Eu entendo que, quando ele falou antes que a salvação não vem das
obras, para que ninguém se orgulhe, referia-se às obras puramente
humanas, que não são motivadas pela fé. Essas não valem, mas as
obras humanas banhadas pela graça que Deus nos dá, essas
frutificam. Então, podemos concluir que são igualmente inúteis
para a salvação tanto as obras puramente humanas, aquelas que não
são inspiradas pela graça, quanto a fé inoperante, aquela que fica
retida no interior do crente e não se concretiza em boas obras.
Portanto, é pela graça de Deus que temos a salvação, mas esse
prêmio somente nos é dado se, pela fé, realizarmos boas obras,
aquelas que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos.
Na leitura do evangelho de João, lemos
aquele conhecido diálogo de Cristo com Nicodemos. Este e José de
Arimatéia, eram fariseus que reconheciam em Cristo o Messias, mas
não assumiam isso em público, com medo da represália dos membros
do seu grupo. Tanto que Nicodemos só se encontrava com Cristo em
ambiente reservado, para conversar a sós. No início desse diálogo,
que não aparece na leitura de hoje, Jesus havia dito a Nicodemos
que, para conhecer o reino de Deus, é necessário nascer de novo (Jo
3, 3), e Nicodemos ficou todo embaraçado com essa afirmação, pois
ele interpretou isso literalmente e sabia ser impossível a alguém
retornar para o ventre da mãe depois de adulto. Então Jesus Cristo
foi pacientemente explicar a ele a diferença entre nascer pela carne
e nascer pelo Espírito. Foi quando Jesus lembrou a ele, que era um
mestre da lei, o episódio da serpente elevada numa vara por Moisés,
no deserto, que curava aqueles que olhavam para ela com fé. “Do
mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é
necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os
que nele crerem tenham a vida eterna.”
Aqui estava exemplificado o significado
de nascer de novo, nascer pelo Espírito, isto é, crer que Jesus é
Messias enviado do Pai: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu
Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha
a vida eterna. ” Os hebreus do tempo de Moisés, que eram picados
pela serpente, livravam-se da morte corporal olhando para a
serpente-símbolo da salvação. Pois bem, o Messias será elevado do
solo assim como a serpente, como novo símbolo da salvação, a fé
nessa mensagem é o renascer. O evangelista não esclarece o que
Nicodemos fez depois que ouviu isso. Mas o fato é que Cristo estava,
com isso, mandando um recado aos fariseus através de Nicodemos.
Vejam, eu vou ser elevado do solo assim como Moisés fez com a
serpente no deserto, para salvação do povo. (Jo 3, 16) Quem crer,
será salvo, “mas
quem não crê, já está condenado, porque não acreditou no nome do
Filho unigênito.”
(Jo 3, 18) E a condenação se dá porque preferiram acreditar nas
trevas do que enxergar a luz. Nós não temos condição de saber o
que ocorreu com Nicodemos, se finalmente ele conseguiu renascer pelo
Espírito. Eu acredito que ele tenha compreendido isso, sobretudo
depois dos eventos que sucederam à morte e ressurreição de Cristo,
fatos que ele deve ter testemunhado. Mas nós, nos dias de hoje, não
podemos ter essa dúvida que passou pela cabeça de Nicodemos, porque
para nós os fatos já estão bastante esclarecidos, e não podemos
continuar compreendendo a mensagem de Cristo literalmente, de modo
fundamentalista, depois de tantos ensinamentos que a teologia, em
todos esses anos, vem desenvolvendo. Em Nicodemos, essa atitude
ambígua até podia ser justificada, mas quanto a nós, não tem
desculpa.
Que Deus nos ilumine, nesse tempo
quaresmal, para termos a mente aberta à orientação da Sua divina
graça.
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