COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO
DA QUARESMA – IMAGENS SAGRADAS – 04.03.2018
Caros Leitores,
As leituras da liturgia do 3º da
quaresma trazem para a nossa reflexão alguns aspectos interessantes
relativos ao cumprimento da lei de Moisés, sobretudo a crítica de
Jesus à maneira segundo a qual os fariseus a cumpriam, isto é, de
um modo absolutamente literal e sem qualquer adesão interior. Aborda
também uma questão muito sensível no relacionamento do catolicismo
com outras religiões, aquele que diz respeito ao preceito de guardar
o sábado (shabat). Ao final, Jesus dá a chave para a compreensão
dessas questões polêmicas: a casa do meu Pai é casa de oração.
Temos na primeira leitura, do livro do
Êxodo (20, 1-17) a declaração divina dos mandamentos dados a
Moisés no monte Sinai. São preceitos fortes: “Eu
sou o Senhor teu Deus que te tirou do Egito, da casa da escravidão.
Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti imagem
esculpida nem figura alguma”,
mas também generosos: “uso
da misericórdia por mil gerações com aqueles que me amam e guardam
os meus mandamentos.”
O curioso na leitura desse texto é porque os hebreus se fixaram
muito mais na primeira parte (da exigência, do castigo) do que na
segunda parte (da misericórdia). Cumprir os mandamentos, para eles,
era seguir à risca o que estava escrito, cumprindo externamente
aqueles preceitos, de um modo irrefletido, como se isso bastasse e
como se Javeh não fosse capaz de saber o que se passava no interior
dos seus corações. Não terás outros deuses, não farás imagens
esculpidas de mim, não pronunciarás em vão o meu nome, lembra-te
de santificar o sábado, não matarás, não cometerá adultério,
não desejarás os bens do outro... vemos aqui um misto de regras de
caráter religioso com regras de comportamento social, como é praxe
encontrar-se em todas as culturas antigas, quando ainda não havia a
separação entre direito e religião. Os dez mandamentos são assim
um compêndio simplificado de normas religiosas, morais e sociais,
com as quais os líderes dos hebreus exerciam o poder e o controle
social do povo no deserto.
De todos esses preceitos, comentarei
apenas dois: não farás imagens esculpidas e descansarás no sétimo
dia, por serem dois pontos que os não católicos alegam contra o
catolicismo, afirmando que este não segue a Biblia. Todos sabem que,
desde muitos anos atrás, os templos cristãos usavam figuras e
imagens esculpidas. Nas igrejas orientais, predominam os ícones
pintados; nas igrejas ocidentais, vêem-se muitas imagens sagradas. A
pergunta é: esse costume contraria a determinação divina?
Literalmente, sim. Porém, seanalisarmos o texto de forma
contextualizada, perceberemos que a proibição divina de esculpir
imagens está associada à adoração delas. Ou seja, se observarmos
bem, o que Javeh pretende evitar não é o ato de esculpir imagens de
figura alguma (vers. 4), mas no ato de prostrar-se e adorar essas
imagens como 'deuses' (vers. 5), assim como faziam os pagãos.
Trata-se de um mandamento só: não esculpir imagens de figuras
(“eídolon”, em grego), para que o povo não venha a praticar a
'eidolon-latreia', ou seja, a idolatria ou a adoração dos ídolos.
O ciúme de Javeh se foca na eventualidade de ser 'substituído' por
figuras criadas pelos homens e não na proibição das esculturas em
si mesmas. Nós sabemos, pelos relatos bíblicos, que por diversas
vezes, isso aconteceu. Inclusive, quando Moisés desceu do Sinai para
anunciar a lei, encontrou os hebreus cultuando um bezerro de ouro.
Portanto, numa visão teleológica, a questão principal é a
proibição da idolatria. A proibição das esculturas seria apenas
uma espécie de prevenção, para que as pessoas não sejam
“tentadas” a colocar a sua fé nas imagens, e não no Criador.
Ora, nós todos sabemos que as imagens
sacras adotadas no catolicismo não têm essa mesma característica
dos 'ídolos' do antigo testamento, porque não são elas objeto de
adoração, elas apenas evocam, para nosso exemplo e edificação,
cristãos que podem ser considerados como modelos a serem seguidos,
pelas suas reconhecidas virtudes e piedade, e que por isso foram
canonizados. As imagens religiosas não são objetos de culto, embora
estejam presentes no recinto do culto. Não se pode negar que uma
significativa parcela dos fiéis, de instrução religiosa mais
elementar, de fato adoram as imagens, mas essa não é a postura
teológica doutrinária. Trata-se de um equívoco da catequese
tradicional, que se incrustou na mentalidade religiosa do nosso povo
e vai demorar bastante tempo para se ver este problema resolvido.
Contudo, isso não significa que o catolicismo desobedece a Bíblia.
Afirmar isso significa manter uma compreensão puramente literal e
formalista da Escritura, a qual não é recomendada por nenhum
teólogo consciente do nosso tempo, nem mesmo pelos não católicos.
O outro ponto polêmico entre o
catolicismo e outras religiões é o descanso sabático. Afirma-se
que o catolicismo desobedece a Bíblia porque ali está dito que “o
sétimo dia é dedicado ao Senhor teu Deus”. De início, quero
dizer que considero coerente a obediência dessa regra pela religião
judaica atual, porque eles não reconhecem nem aceitam o Novo
Testamento. Mas para as religiões cristãs, ao meu ver, ao
reconhecerem o Evangelho de Cristo, não vale essa justificativa,
porque o Antigo Testamento deve ser compreendido na perspectiva do
Novo Testamento, seguindo o ensinamento de Cristo, que não veio
abolir a lei, mas cumpri-la com perfeição (Mt 5, 17). No princípio
do cristianismo, os cristãos e judeus convertidos guardavam o dia do
sábado (shabat) como o dia do descanso, tal como está posto na lei.
Todavia, com o avanço do entendimento da fé nas primeiras
comunidades, com o surgimento das primeiras propostas doutrinárias,
os cristãos foram percebendo que o melhor cumprimento da lei do
descanso, instituída por Deus, devia ser compreendido na perspectiva
daquilo que Jesus falou aos judeus, conforme está escrito no
evangelho de João (2, 19), lido hoje: “'Destruí
este Templo, e em três dias o levantarei.'”
É o próprio João quem interpreta essa metáfora, logo depois, no
vers. 21: “Jesus
estava falando do Templo do seu corpo.”
Meus amigos, somente no evangelho de João aparece essa explicação.
Isso porque o texto foi escrito por volta do ano 100 d.C., e só
nessa época os líderes cristãos compreenderam essa analogia feita
por Cristo. Nos outros evangelhos em que essa narrativa aparece (Mt
21,12; Mc 11,15; Lc 19,45), evangelhos escritos bem antes do
evangelho de João, não consta esse detalhe. O que se conclui dessa
análise é que, com o passar do tempo, os cristãos perceberam que o
cumprimento mais perfeito da Lei não devia ficar vinculado ao templo
de pedra dos judeus, mas ao templo corpóreo de Cristo ressuscitado.
A partir daí, foi amadurecendo a ideia
de que o dia do descanso (shabat) não devia mais ficar vinculado à
lei mosaica (sétimo dia), mas ao novo sentido dado a esta pela
ressurreição de Cristo, ocorrendo então a troca do sábado pelo
domingo como o dia do preceito divino. Esta prática foi consolidada
no Concílio de Laodicéia (364 d.C.), que oficializou a mudança.
Alguns estudiosos não católicos afirmam que a mudança foi feita
por ordem do Papa e que o Papa não tem mais autoridade do que a
Bíblia. Quem afirma isso, não sabe o que significa um Concílio nem
consegue entender que o próprio Cristo deixou uma velada
recomendação neste sentido, conforme explicado acima. Pretender
justificar a guarda do sábado, porque assim está na lei de Moisés,
equivale a não saber interpretar a escritura no seu dinamismo
histórico, é o mesmo que desconhecer todo o esforço de Cristo, no
sentido da correta compreensão da vontade do Pai. Quando Jesus
expulsou os vendedores do templo, alegando que eles haviam
transformado a casa do Pai numa “spelunca latronum” (covil de
ladrões), Ele estava dando um recado indireto aos judeus acerca do
modo de cumprir a lei. Aqueles vendedores eram, na verdade,
facilitadores do cumprimento da lei de Moisés, a qual determinava as
oferendas que os judeus deviam fazer no templo, nas festas rituais:
os ricos ofereciam bois, a classe média oferecia ovelhas, os pobres
ofereciam pombas. Para que as pessoas (que vinham de longe, muitas
vezes) não tivessem que viajar tangendo seus animais pelo caminho,
os comerciantes vendiam na porta do templo (ou até dentro do
recinto). Aquilo não era um “mercado” comum, era uma prática
piedosa para favorecer o cumprimento do preceito. Ao expulsá-los,
Jesus estava querendo dizer: meu Pai não precisa de bois, nem de
ovelhas, nem de pombas, Ele quer os vossos corações. Jesus estava
descumprindo a lei de Moisés? Literalmente falando, sim. Mas no
sentido do cumprimento mais perfeito do preceito, ele estava dando a
alternativa mais correta para agradar a Deus.
Estejamos atentos para compreender a
palavra de Deus em plenitude, não só na sua literalidade.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário