segunda-feira, 5 de março de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA QUARESMA - IMAGENS SAGRADAS - 04.03.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – IMAGENS SAGRADAS – 04.03.2018

Caros Leitores,

As leituras da liturgia do 3º da quaresma trazem para a nossa reflexão alguns aspectos interessantes relativos ao cumprimento da lei de Moisés, sobretudo a crítica de Jesus à maneira segundo a qual os fariseus a cumpriam, isto é, de um modo absolutamente literal e sem qualquer adesão interior. Aborda também uma questão muito sensível no relacionamento do catolicismo com outras religiões, aquele que diz respeito ao preceito de guardar o sábado (shabat). Ao final, Jesus dá a chave para a compreensão dessas questões polêmicas: a casa do meu Pai é casa de oração.

Temos na primeira leitura, do livro do Êxodo (20, 1-17) a declaração divina dos mandamentos dados a Moisés no monte Sinai. São preceitos fortes: “Eu sou o Senhor teu Deus que te tirou do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti imagem esculpida nem figura alguma”, mas também generosos: “uso da misericórdia por mil gerações com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos.” O curioso na leitura desse texto é porque os hebreus se fixaram muito mais na primeira parte (da exigência, do castigo) do que na segunda parte (da misericórdia). Cumprir os mandamentos, para eles, era seguir à risca o que estava escrito, cumprindo externamente aqueles preceitos, de um modo irrefletido, como se isso bastasse e como se Javeh não fosse capaz de saber o que se passava no interior dos seus corações. Não terás outros deuses, não farás imagens esculpidas de mim, não pronunciarás em vão o meu nome, lembra-te de santificar o sábado, não matarás, não cometerá adultério, não desejarás os bens do outro... vemos aqui um misto de regras de caráter religioso com regras de comportamento social, como é praxe encontrar-se em todas as culturas antigas, quando ainda não havia a separação entre direito e religião. Os dez mandamentos são assim um compêndio simplificado de normas religiosas, morais e sociais, com as quais os líderes dos hebreus exerciam o poder e o controle social do povo no deserto.

De todos esses preceitos, comentarei apenas dois: não farás imagens esculpidas e descansarás no sétimo dia, por serem dois pontos que os não católicos alegam contra o catolicismo, afirmando que este não segue a Biblia. Todos sabem que, desde muitos anos atrás, os templos cristãos usavam figuras e imagens esculpidas. Nas igrejas orientais, predominam os ícones pintados; nas igrejas ocidentais, vêem-se muitas imagens sagradas. A pergunta é: esse costume contraria a determinação divina? Literalmente, sim. Porém, seanalisarmos o texto de forma contextualizada, perceberemos que a proibição divina de esculpir imagens está associada à adoração delas. Ou seja, se observarmos bem, o que Javeh pretende evitar não é o ato de esculpir imagens de figura alguma (vers. 4), mas no ato de prostrar-se e adorar essas imagens como 'deuses' (vers. 5), assim como faziam os pagãos. Trata-se de um mandamento só: não esculpir imagens de figuras (“eídolon”, em grego), para que o povo não venha a praticar a 'eidolon-latreia', ou seja, a idolatria ou a adoração dos ídolos. O ciúme de Javeh se foca na eventualidade de ser 'substituído' por figuras criadas pelos homens e não na proibição das esculturas em si mesmas. Nós sabemos, pelos relatos bíblicos, que por diversas vezes, isso aconteceu. Inclusive, quando Moisés desceu do Sinai para anunciar a lei, encontrou os hebreus cultuando um bezerro de ouro. Portanto, numa visão teleológica, a questão principal é a proibição da idolatria. A proibição das esculturas seria apenas uma espécie de prevenção, para que as pessoas não sejam “tentadas” a colocar a sua fé nas imagens, e não no Criador.

Ora, nós todos sabemos que as imagens sacras adotadas no catolicismo não têm essa mesma característica dos 'ídolos' do antigo testamento, porque não são elas objeto de adoração, elas apenas evocam, para nosso exemplo e edificação, cristãos que podem ser considerados como modelos a serem seguidos, pelas suas reconhecidas virtudes e piedade, e que por isso foram canonizados. As imagens religiosas não são objetos de culto, embora estejam presentes no recinto do culto. Não se pode negar que uma significativa parcela dos fiéis, de instrução religiosa mais elementar, de fato adoram as imagens, mas essa não é a postura teológica doutrinária. Trata-se de um equívoco da catequese tradicional, que se incrustou na mentalidade religiosa do nosso povo e vai demorar bastante tempo para se ver este problema resolvido. Contudo, isso não significa que o catolicismo desobedece a Bíblia. Afirmar isso significa manter uma compreensão puramente literal e formalista da Escritura, a qual não é recomendada por nenhum teólogo consciente do nosso tempo, nem mesmo pelos não católicos.

O outro ponto polêmico entre o catolicismo e outras religiões é o descanso sabático. Afirma-se que o catolicismo desobedece a Bíblia porque ali está dito que “o sétimo dia é dedicado ao Senhor teu Deus”. De início, quero dizer que considero coerente a obediência dessa regra pela religião judaica atual, porque eles não reconhecem nem aceitam o Novo Testamento. Mas para as religiões cristãs, ao meu ver, ao reconhecerem o Evangelho de Cristo, não vale essa justificativa, porque o Antigo Testamento deve ser compreendido na perspectiva do Novo Testamento, seguindo o ensinamento de Cristo, que não veio abolir a lei, mas cumpri-la com perfeição (Mt 5, 17). No princípio do cristianismo, os cristãos e judeus convertidos guardavam o dia do sábado (shabat) como o dia do descanso, tal como está posto na lei. Todavia, com o avanço do entendimento da fé nas primeiras comunidades, com o surgimento das primeiras propostas doutrinárias, os cristãos foram percebendo que o melhor cumprimento da lei do descanso, instituída por Deus, devia ser compreendido na perspectiva daquilo que Jesus falou aos judeus, conforme está escrito no evangelho de João (2, 19), lido hoje: “'Destruí este Templo, e em três dias o levantarei.'” É o próprio João quem interpreta essa metáfora, logo depois, no vers. 21: “Jesus estava falando do Templo do seu corpo.” Meus amigos, somente no evangelho de João aparece essa explicação. Isso porque o texto foi escrito por volta do ano 100 d.C., e só nessa época os líderes cristãos compreenderam essa analogia feita por Cristo. Nos outros evangelhos em que essa narrativa aparece (Mt 21,12; Mc 11,15; Lc 19,45), evangelhos escritos bem antes do evangelho de João, não consta esse detalhe. O que se conclui dessa análise é que, com o passar do tempo, os cristãos perceberam que o cumprimento mais perfeito da Lei não devia ficar vinculado ao templo de pedra dos judeus, mas ao templo corpóreo de Cristo ressuscitado.

A partir daí, foi amadurecendo a ideia de que o dia do descanso (shabat) não devia mais ficar vinculado à lei mosaica (sétimo dia), mas ao novo sentido dado a esta pela ressurreição de Cristo, ocorrendo então a troca do sábado pelo domingo como o dia do preceito divino. Esta prática foi consolidada no Concílio de Laodicéia (364 d.C.), que oficializou a mudança. Alguns estudiosos não católicos afirmam que a mudança foi feita por ordem do Papa e que o Papa não tem mais autoridade do que a Bíblia. Quem afirma isso, não sabe o que significa um Concílio nem consegue entender que o próprio Cristo deixou uma velada recomendação neste sentido, conforme explicado acima. Pretender justificar a guarda do sábado, porque assim está na lei de Moisés, equivale a não saber interpretar a escritura no seu dinamismo histórico, é o mesmo que desconhecer todo o esforço de Cristo, no sentido da correta compreensão da vontade do Pai. Quando Jesus expulsou os vendedores do templo, alegando que eles haviam transformado a casa do Pai numa “spelunca latronum” (covil de ladrões), Ele estava dando um recado indireto aos judeus acerca do modo de cumprir a lei. Aqueles vendedores eram, na verdade, facilitadores do cumprimento da lei de Moisés, a qual determinava as oferendas que os judeus deviam fazer no templo, nas festas rituais: os ricos ofereciam bois, a classe média oferecia ovelhas, os pobres ofereciam pombas. Para que as pessoas (que vinham de longe, muitas vezes) não tivessem que viajar tangendo seus animais pelo caminho, os comerciantes vendiam na porta do templo (ou até dentro do recinto). Aquilo não era um “mercado” comum, era uma prática piedosa para favorecer o cumprimento do preceito. Ao expulsá-los, Jesus estava querendo dizer: meu Pai não precisa de bois, nem de ovelhas, nem de pombas, Ele quer os vossos corações. Jesus estava descumprindo a lei de Moisés? Literalmente falando, sim. Mas no sentido do cumprimento mais perfeito do preceito, ele estava dando a alternativa mais correta para agradar a Deus.

Estejamos atentos para compreender a palavra de Deus em plenitude, não só na sua literalidade.

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