COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO
DA PÁSCOA – OS PASTORES MODERNOS – 22.04.2018
Caros Leitores,
Neste 4º domingo da Páscoa, a
liturgia nos traz a conhecida imagem do Bom Pastor (Jo 10, 11). A
figura romântica do pastor de outrora está muito distante da
profissão de pecuarista dos dias atuais. Mesmo nos povoados mais
distantes, no sertão mais distante, já não se pastoreia mais como
antigamente. Os atuais pastores trabalham andando em motocicleta e os
seus rebanhos são enxotados ao ronco dos motores, isto é, aquela
figura tradicional do pastor, do vaqueiro, do boiadeiro só existe no
nosso folclore e certamente não haverá retrocesso nisso. Devemos,
portanto, repaginar essa figura, que já foi tão simbólica no
passado, mas que não faz mais qualquer sentido evocá-la no mundo
moderno.
Na época de suas pregações, Jesus
utilizava, dentro da sua pedagogia catequética, as imagens
conhecidas pelas pessoas da região, preferencialmente, as dualidades
pescador-peixe e pastor-rebanho. Em diversas ocasiões, ele usou
figuras e ações ligadas à profissão do pescador para associar com
a missão do cristão; outras vezes, o tema foi a figura do pastor,
como no caso da leitura deste domingo. A liturgia de hoje pede
orações pelos nossos pastores, pelos vocacionados, religiosos e
religiosas. Fico procurando na minha mente associar a imagem do
pastor às autoridades eclesiásticas que temos e chego à conclusão
de que muito poucas delas poderiam se enquadrar nesse figurino. Com
raras exceções, não existem mais nos dias de hoje padres como o
Cura d'Ars, como Frei Damião, Frei Inocêncio, Frei Higino, só para
citar alguns que conhecemos e que realmente faziam o autêntico
pastoreio. Quero fazer aqui uma menção especial a Dom Aloísio
Lorscheider, que representava, para mim, a figura típica do pastor
dos tempos pós-modernos. O que vemos no comportamento de muitos
ordenados dos dias atuais são perfis de profissionais, preocupados
com um “salário” que a paróquia lhe possibilita, com um
“emprego” paralelo em algum colégio ou faculdade, com um veículo
para se locomoverem, com uma casa confortável para morar, ou seja,
um profissional liberal, como existem tantos outros na sociedade. O
diferencial do autêntico pastoreio fica totalmente esquecido.
Sinto-me triste em afirmar isso, mas lamentavelmente é assim a nossa
realidade eclesiástica atual. Por isso, não prolongarei os
comentários sobre essa figura romântica da catequese tradicional,
atendo-me a outros temas postos nas leituras deste domingo.
Na primeira leitura, da carta de João
(1Jo 3,2), o Apóstolo, com a sua linguagem carinhosa do pai idoso,
diz que o grande presente que recebemos de Cristo foi o de sermos
chamados filhos de Deus, “desde
já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que
seremos!”. Eu
entendo que João quer afirmar que, por ora, mesmo sendo pecadores e
frágeis, já temos esse dom de sermos chamados 'filhos de Deus', o
que será realizado em plenitude quando Jesus se manifestar em nós,
porque então seremos semelhantes a ele. Penso que aqui João está
se referindo explicitamente à nossa ressurreição, quando morrermos
em Cristo e formos com ele ressuscitados. É como se a situação
atual fosse uma antecipação do que acontecerá no futuro, para que,
através do nosso testemunho, outras pessoas possam também acreditar
em Jesus, filho de Deus. Se o mundo não nos conhece, continua João,
é porque não conheceu o Pai. Ora, somente através de Cristo, é
possível chegar até o Pai. Nós, enquanto cristãos, temos essa
missão de testemunhar Cristo perante o mundo, para que assim o mundo
conheça o Pai.
Coerente com este mesmo tema é a
primeira leitura, retirada do livro dos Atos dos Apóstolos (At 4,8),
que relata um discurso de Pedro perante os membros do Sinédrio
judaico, em mais um interrogatório pelo qual passavam, por estarem
realizando milagres em nome de Jesus. Muito inspirado pelo Espírito
Santo, Pedro diz que não existe, debaixo do céu, nenhum outro nome
pelo qual possamos ser salvos. Essa afirmação de Pedro, é a mesma
que está presente na carta de Paulo aos Filipenses (2, 10): ao nome
de Jesus, todo joelho se dobre... e toda língua confesse que Jesus é
o Senhor. Esse tema é muito preferido entre os pregadores não
católicos, desde Lutero, quando a catequese tradicional afirmava que
fora da Igreja não havia salvação. Eles dizem que o catolicismo
distorce a palavra de Cristo, ao transferir para a Igreja uma
prerrogativa que é do Senhor. Sob certo aspecto, não lhes tiro a
razão, sobretudo no exagerado devocionismo que marca a religião
tradicional. No entanto, a Igreja somente poderá ser local de
salvação se estiver unida a Cristo, afinal Ele é a única porta,
aliás a porta estreita (Mt 7, 13), porque larga e espaçosa é a
porta que conduz à perdição.
No comentário do domingo passado, fiz
referência ao discurso de Gamaliel no Sinédrio, quando Pedro e João
eram interrogados por estarem pregando o cristianismo. Nas leituras
litúrgicas do meio da semana, foram lidos diversos trechos do livro
dos Atos, sempre referindo-se a ações miraculosas feitas pelos
apóstolos, logo após a ressurreição de Cristo. Foi o caso de um
homem chamado Enéias, que era paralítico e estava acamado fazia 8
anos e Pedro o curou, da mesma forma como Jesus curara outro
paralítico, e este também saiu andando e carregando a cama na qual
jazia pouco tempo antes. Outro milagre de Pedro foi a ressurreição
de uma mulher caridosa, chamada Tabita. A morte dela causou grande
comoção na comunidade, porque ela fazia muito bem aos pobres, que
lamentaram o fato. Pedro estava na cidade e foi avisado e,
dirigindo-se até lá, orou pedindo a Jesus que a ressuscitasse, e
isso aconteceu. E diz o texto: todos ficaram maravilhados e muitos
habitantes creram em Jesus.
Foi por isso que Pedro foi, mais uma
vez, convocado pelo Sinédrio e ali, cheio de coragem, encarou os
anciãos e os chefes do povo e disse sem meias palavras: nós estamos
sendo perseguidos porque fazemos o bem, pois saibam que fazemos isso
em nome daquele Jesus que vós matastes... Imaginemos a cena: Pedro
um pescador, uma pessoa rude e sem instrução, falando diante dos
mestres e doutores da lei, os donos da sabedoria de Israel.
Cumpriu-se aí literalmente aquilo que Jesus predissera, que eles não
se preocupassem com o que iriam dizer, porque o Espírito falaria
através deles. E o curioso é que Pedro utiliza uma imagem que Jesus
havia ensinado aos apóstolos, sobre a pedra angular rejeitada pelos
construtores.
Jesus era verdadeiramente um grande
pedagogo. O conceito da pedra angular não era propriamente da
cultura judaica, mas da engenharia romana, que naquela época era
dominante no território da Palestina. Todos conhecem as famosas
arcadas de Roma, fruto da engenhosa arte dos construtores romanos
que, antes da existência do concreto armado com ferro, conseguiam
fazer vãos enormes que se auto sustentavam, pela colocação de uma
pedra em formato triangular bem no centro do arco, equilibrando o
peso dos semiarcos laterais. Em qualquer foto das construções da
Roma antiga é possível ver a sua presença, e a sua importância
decorre do fato de que, se ela fosse retirada, toda a construção
iria abaixo. Jesus traz para a sua pedagogia uma imagem importada de
uma cultura que, embora não sendo nativa da cultura judaica, mas que
já se tornara bastante conhecida, por causa da prolongada presença
dos romanos na região. E Pedro repete este conceito perante os
mestres da lei e chefes do povo, reforçando o seu discurso. É pelo
nome de Jesus de Nazaré que este homem está curado diante de vós,
conclui Pedro.
Assim como a figura do Bom Pastor ficou
esmaecida nos dias atuais e precisa ser repensada, do mesmo modo, o
modelo tradicional devocionista da religião não pode mais ser
utilizado na formação da nossa juventude. Deixemos isso com os
idosos que aprenderam assim, pois eles não irão mais mudar o modo
de pensar, mas à juventude deve ser ensinada a religião
cristocêntrica. “Em nenhum outro nome há salvação”, continua
repetindo Pedro nos nossos dias. Se nos espelharmos em Cristo, iremos
refletir a imagem dele para os que nos conhecem. Nesse processo,
Cristo se manifestará em nós, como disse João, e seremos
semelhantes a ele. Sem desmerecer a virtude e o exemplo dos santos
cristãos que se destacaram na autenticidade da fé e na vivência da
caridade, a pessoa de Jesus Cristo deve ser o centro da nossa atenção
primordial.
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