COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO
DA PÁSCOA – O INTERCESSOR – 15.04.2018
Caros Leitores,
A liturgia deste terceiro domingo da
Páscoa traz dois textos escritos por Lucas (Atos e Evangelho) e uma
carta de João. Nas três leituras de hoje, encontramos alguma
referência a Cristo como o defensor, o intercessor. Essa palavra é
da raiz do verbo grego donde vem o termo “paráclito”, que se
atribui ao Espírito Santo. Na sua carta, João diz: se alguém
pecar, temos diante do Pai um Defensor. E no evangelho, Lucas relata
a primeira aparição de Cristo aos apóstolos, após a ressurreição,
deixando-os assustados e medrosos, pensando estarem vendo um
fantasma. No final, coloca também a referência à ressurreição de
Cristo que perdoa os pecados de todo o mundo. Nesse contexto do
intercessor, parece-me oportuna uma reflexão sobre o conceito do
pecado.
Na primeira leitura, dos Atos dos
Apóstolos (3, 13-19), o autor narra um discurso de Pedro dirigido ao
povo, certamente aos judeus, dado o conteúdo da fala, porque se
refere a eles dizendo diretamente: vós o entregastes a Pilatos, vós
matastes o autor da vida... porém, se vos arrependerdes, os vossos
pecados serão perdoados. Eu percebi no teor dessa leitura o ranço
que, durante séculos, a liturgia conservou em relação aos judeus
(pérfidos judeus, assim dizia a oração oficial da sexta feira
santa), situação que só começou a se abrandar após o Concílio
Vaticano II, com Paulo VI. Porém, nesse discurso de Pedro, ele mesmo
diz que “agistes por ignorância”, mas desse modo, se cumpriu o
que todos os profetas haviam anunciado. É curiosa essa contradição,
a mesma que durante séculos também perseguiu Judas, protofigura do
traidor. Se a ação deles foi necessária para que se cumprissem as
escrituras, então por que essa discriminação, esse repúdio?
Talvez porque eles não manifestaram arrependimento público, assim
como fez Myrian de Magdala (a Madalena), mas lembremo-nos de que
Pedro dirige esse discurso aos judeus que o ouviam de bom grado, com
certeza, em vias de conversão ao cristianismo. Realmente, essa
conduta tradicional do cristianismo com relação aos judeus
configura um pecado histórico, da mesma forma como foram
discriminadas todas as demais religiões não católicas. Felizmente,
vimos testemunhando um processo de restauração da verdade dos
fatos, um esforço dos nossos Papas dos últimos 50 anos, no sentido
de reaproximar os diversos credos, cujas divergências já provocaram
tantas violências ao longo da história.
Eu achei interessante abordar esse tema
do pecado, porque na catequese tradicional, havia uma “lista” de
pecados com as devidas especificações: tal era um pecado leve ou
venial, outro tal era um pecado grave ou mortal, que podia até levar
a pessoa ao inferno, ou seja, criou-se uma tabela moralista na qual
se enquadravam as condutas exteriores das pessoas, deixando de lado o
que verdadeiramente interessa, que é o interior de cada um. A
religião de exterioridades ainda está implantada na cabeça de
muitos católicos, desde bispos e padres até os fiéis leigos.
Deixar de ir à missa no domingo é pecado grave; deixar de fazer a
comunhão na Páscoa é pecado grave; caluniar alguém é pecado
venial; mentir é pecado venial... ora, meus amigos, é tempo de
passar por cima desse tabelamento. Pecado é o que nos afasta do amor
de Deus, pecado é faltar com a caridade. Até algum tempo atrás,
era proibido aos católicos trabalharem aos domingos, porque esse é
o dia do preceito. Nos dias atuais, em que muitas atividades
profissionais envolvem o trabalho dominical, o católico consciente
fica em dificuldade para conciliar sua fé com a sua profissão. Além
disso, observem a expressão “dia de preceito”, isso indica uma
coisa que se deve fazer por obrigação. Imaginem só: ir à missa
porque é obrigação não adianta de nada, não é isso que Deus
quer. Fazer abstinência de carne na sexta feira santa porque é
obrigação não adianta de nada, não é isso que faz de você um
crente, um fiel a Cristo. Tudo aquilo que é realizado simplesmente
porque é obrigação não tem valor. O agente deve agir porque
considera que aquela ação é boa, é útil, é louvável, é para a
glória de Deus, é para o seu bem espiritual e para o bem de toda a
comunidade. Deixar de ajudar ao irmão necessitado, quando se tem a
possibilidade de fazê-lo, mas não se faz por omissão ou por
preguiça ou por desprezo é muito mais grave do que deixar de ir à
missa dominical. E como tem gente que pensa que, ao ir à missa, está
garantindo a sua salvação eterna. Vejam bem, não estou afirmando
que ir à missa não é importante, estou comparando os dois
comportamentos. Ir à missa e não praticar a caridade com os irmãos
é uma atividade vazia de sentido e de resultados, é hipocrisia.
Na segunda leitura, o apóstolo João,
com a sua linguagem carinhosa de um pai idoso, admoesta: meus
filhinhos, eu digo isso para que não pequeis; mas se alguém pecar,
fique calmo, você não está perdido, nós temos um intercessor, um
defensor junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo. E depois, dá uma
alfinetada forte: se alguém diz que conhece a Deus, mas não guarda
seus mandamentos, esse é um mentiroso. É mais ou menos o que eu
escrevi acima, com outras palavras. E que mandamentos são esses? São
aqueles que todos nós já sabemos de cor: amar a Deus e amar ao
próximo, nesses dois, estão resumidos toda a lei e os profetas.
Então, não basta dizer: Senhor, Senhor... todo mundo se lembra
disso. Não adianta se confessar toda semana, comungar todos os dias,
rezar três terços por dia, etc, se não praticar a caridade. Paulo
disse isso naquele conhecido texto aos Coríntios (1Cor, 13):
praticar a religião sem amor é igual a um sino que tine, só faz
barulho, não tem nada no seu interior. Com outras palavras, diz
João: conhecer a Deus sem cumprir os mandamentos é uma mentira. Não
podemos ter assim um comportamento religioso de mentira, de fachada,
de barulho. Então, é importante o ensinamento de João, porque ele
sabe que todos nós somos imperfeitos, sujeitos a falhas na nossa
conduta. Por isso, ele diz: eu digo isso para que não pequeis; mas,
se alguém pecar, tem um jeito: Jesus é o nosso defensor, é a nossa
fé nEle que possibilita a nossa remissão. Naquele que guarda a sua
palavra, o amor de Deus se realiza plenamente.
Na leitura do evangelho de Lucas (24,
35-48), temos a sequência do episódio conhecido, ocorrido no
próprio domingo da ressurreição, quando Jesus ressuscitado
dialogou com os discípulos que iam para Emaús e os fez voltarem a
Jerusalém. Ainda estavam contando o fato para os outros, quando
Jesus apareceu no meio deles. Aqui estou eu, ressuscitei conforme
prometi. E então, foi relembrar aos apóstolos o que havia lhes
ensinado. Se não fosse essa 'prova de segunda chamada' da pedagogia
de Jesus, os ensinamentos de antes teriam ficado esquecidos, pois os
apóstolos eram homens rudes, não acostumados a leituras e estudos.
E no final da lição, profetizou: no
meu
nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas
as nações, começando por Jerusalém e
vós
sereis testemunhas de tudo isso. Jesus
passou quarenta dias fazendo a reciclagem, dando aulões de reforço
àqueles ex-pescadores, demonstrações fantásticas de seu poder,
para que assim eles se firmassem na fé. Nenhum dos evangelistas
relata que Jesus tenha perguntado a Pedro porque o negara diante dos
palacianos, pois Jesus sabia que o conhecimento deles ainda era muito
superficial, era necessário um aprofundamento, uma revisão geral.
Quando, por fim, receberam o Espírito, então estavam preparados pro
que desse e viesse, foi o que aconteceu. Então, se explica aquele
discurso de Pedro aos judeus, relatado por Lucas na primeira leitura
deste domingo.
Nas leituras da liturgia diária da
semana, são lidos vários trechos dos Atos dos Apóstolos, relatando
as primeiras pregações dos apóstolos, as prisões que eles
sofreram, as chicotadas e a perseguição dos fariseus e saduceus,
proibindo-os de falar em nome de Jesus. Quanto mais eles eram
proibidos de falar, mais falavam. Dentre essas, uma que merece
destaque é a leitura de Atos (5, 34), onde temos o ponderado
discurso de Gamaliel, que era mestre da lei e membro do Sinédrio,
dizendo: 'deixai esses homens irem embora, porque se o projeto deles
for obra humana, daqui a pouco se acaba, mas se for obra divina, vós
não conseguireis detê-los.' E o seu conselho foi seguido pelo
Sinédrio. Através desse conselho de 'deixar os apóstolos irem
embora', Gamaliel estava, com sábia argumentação lógica e
jurídica, ao mesmo tempo, querendo livrar os apóstolos daquela
incômoda situação e ainda insinuando que a obra deles era de
origem divina e que as perseguições não iriam detê-los. Como de
fato, a história comprovou que a profecia de Cristo sobre o anúncio
do Seu nome para o perdão dos pecados de todas as nações foi
testemunhado tanto pelos apóstolos, como é ainda testemunhado por
nós nos nossos dias. Porém, para sermos autênticos discípulos de
Cristo e testemunhas da sua palavra, será necessário desmistificar
o conceito burocrático de pecado, que a pedagogia catequética nos
ensinou, para assumirmos aquele compromisso definido por João:
conhecer a Deus é guardar os mandamentos.
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