COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO
DA PÁSCOA – CRER SEM TER VISTO – 08.04.2018
Caros Leitores,
Neste segundo domingo da Páscoa, a
liturgia nos oferece apenas leituras do Novo Testamento – Atos dos
Apóstolos e escritos de João (epístola e evangelho). A leitura dos
Atos sinaliza o tempo inicial das comunidades cristãs, enquanto os
escritos de João representam o pensamento teológico mais evoluído
dos tempos posteriores. Observemos que o evangelho e as cartas de
João são, no aspecto cronológico, os últimos escritos do NT, pois
foram elaborados por volta do ano 100 d. C., muito após João ter
saído do seu exílio na ilha de Patmos, onde escreveu o Apocalipse.
Na tradição medieval, este domingo era conhecido como Pascoela, que
era a oitava da Páscoa. Naquela época, as festas mais importantes
duravam oito dias, por isso, este era o domingo da oitava da Páscoa.
Na leitura dos Atos dos Apóstolos (4,
32-35), o cronista relata a vida das primeiras comunidades cristãs,
onde os convertidos colocavam todos os seus bens à disposição dos
Apóstolos, para divisão entre os irmãos mais necessitados, de modo
que ninguém se sentia dono de alguma coisa, mas tudo era
literalmente de todos. Esse sentimento de comunidade autêntica,
historicamente, só se verificou nesses primeiros tempos, os chamados
tempos apostólicos, pois logo que o cristianismo foi-se divulgando
entre os povos das culturas diversas, e sobretudo após a morte dos
Apóstolos, novas práticas e novas influências culturais foram-se
infiltrando nas comunidades. Tal sentimento de pertença foi revivido
nas nossas congregações religiosas, também nos tempos românticos
até os anos de 1970. Depois que se iniciou o processo de
globalização e com a abertura pós-conciliar, nem mesmo nas
comunidades religiosas houve mais espaço para esse tipo de conduta
solidária. Pensando em termos da mentalidade contemporânea,
apresenta-se como uma vivência utópica e inexequível, no entanto
foi esse o modelo proposto, por exemplo, por São Francisco, quando
disse que os frades não deveriam receber pecúnia, mas apenas o
necessário para o seu sustento. Bem diferente é a situação nos
dias atuais.
Na segunda leitura deste domingo, temos
a Carta de João (1Jo 5, 1-6), de cujo texto podemos destacar duas
lições. A primeira está no vers. 3: “pois isso é amar a Deus:
observar os seus mandamentos, e os mandamentos de Deus não são
pesados.” Ou seja, trata-se do mandamento do amor, aquele que
Cristo resumiu no lava-pés, quando disse: “eu vos dou um novo
mandamento – que vos ameis uns aos outros”, este é o sinal pelo
qual os cristãos devem ser reconhecidos. Por isso, João diz que os
mandamentos não são pesados, porque não existe algo mais digno e
prazeroso do que amar. E quem ama aquele que gerou amará também o
que d'Ele nasceu. Portanto, ficam em segundo plano aqueles
mandamentos da lei de Moisés, da antiga aliança. Agora, com o novo
mandamento, os antigos 10 são resumidos em apenas 2: amar a Deus e
ao próximo.
A segunda lição está no vers. 6:
“Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo. Nâo
veio somente com água, mas com a água e o sangue.” João
refere-se claramente ao batismo e ao calvário, isto é, o batismo
apenas não salva, não basta ser batizado, mas é preciso participar
também da morte e ressurreição de Cristo, através do sacrifício
eucarístico. Para sermos merecedores da salvação, direito
conquistado com o batismo, devemos participar com Ele da sua cruz
através da memória da redenção, que se renova a cada dia na
celebração eucarística. João reforça o trabalho de Paulo, com o
objetivo de evitar certas deturpações da doutrina cristã por parte
dos judeus convertidos, no tempo das primeiras comunidades cristãs,
colocando em choque os ditames do antigo testamento com o novo
testamento. O batismo representa o final da antiga aliança e a
morte- ressurreição de Cristo representam o início da nova
aliança. Os dois são inseparáveis: água e sangue.
Na leitura do evangelho de hoje, também
de João (Jo 20, 19-31), está relatado o episódio da incredulidade
de Tomé, que se transformou em conhecida história popular – o
teste de São Tomé. Mas passando um pouco adiante dessa história,
vamos observar, no vers 22, uma declaração importante de João. Diz
ele que Jesus “soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito
Santo...” Vemos aqui o Pentecostes descrito por João, bem
diferente das narrações dos outros textos, que falam em vendaval e
línguas de fogo, conferindo uma dimensão bem mais dramática ao
episódio. Na narração joanina, ao contrário, isso foi muito
tranquilo. Cristo soprou e conferiu o Espírito aos apóstolos nesta
sua primeira 'visita', ao anoitecer daquele dia, o primeiro da
semana. Sem desmerecer as outras narrativas, mas devemos nos lembrar
que João estava lá, enquanto os outros escritores não estavam.
Além disso, João escreveu o seu texto depois dos outros narradores,
o que nos possibilita deduzir que João conhecia o que os outros
haviam escrito, mesmo assim, ele fez uma descrição diferente
daquele importante evento. Na verdade, João está querendo destacar
fatos importantes que ocorreram “no primeiro dia da semana”,
enfatizando um costume que já se iniciara de mudar o dia do Senhor
para o domingo, e não ser mais para o sábado, como era na tradição
judaica.
Outro detalhe interessante: Tomé não
se encontrava com os doze e disse que só acreditaria vendo. Oito
dias depois, isto é, no domingo seguinte, outra ênfase para o
domingo, Jesus apareceu-lhes novamente e mostrou as cicatrizes para o
incrédulo Tomé. O destaque que João faz desse episódio tem uma
razão especial: o intuito de catequizar as novas comunidades acerca
da importância de ter fé em Cristo mesmo sem tê-lo visto, pois na
época em que João escreveu, já fazia bastante tempo da morte de
Cristo. Então, o exemplo de Tomé fazia uma pedagogia de reforço,
para animar os novos cristãos, que não chegaram a conhecer
pessoalmente a Cristo, quando este disse que: “bem aventurados os
que creram sem ter visto.” E como João sabia que este escrito ia
ser distribuído para muitas comunidades na Ásia Menor, ele
complementa dizendo que Jesus havia realizado muitas outras
maravilhas, que não foram escritas naquele livro, as que estão
escritas são apenas uma amostra de tudo o que Ele havia feito.
Ainda nesse evangelho de João do
domingo de hoje temos um trecho que suscita grande polêmica, que
está no vers. 23: “a quem perdoardes os pecados, eles lhes serão
perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos”. A teologia
considera este versículo como o fundamento teológico do sacramento
da penitência. Muitas vezes, se ouve as pessoas dizendo 'sacramento
da confissão', mas não é bem assim, é o sacramento da penitência
e da reconciliação, decorrente do arrependimento. Conforme se
verifica no texto joanino, Cristo fala em perdoar os pecados
(subentende-se dos pecadores arrependidos) e reter, isto é, não
perdoar, dos que não se arrependem. Cristo não disse que o pecador
devia ir até os apóstolos e 'narrar seus pecados' (confessar os
pecados) para poder ser perdoado, a ordem de Cristo se concentra no
perdão ligado ao arrependimento. Por que, então, a Igreja Católica
coloca como obrigatória a 'confissão' individual dos pecados? Essa
prática não existia nas primeiras comunidades, mas foi um costume
introduzido pelos monges, na Idade Média, e que acabou tornando-se
regra canônica para os católicos.
Nos primeiros anos após o Concílio
Vaticano II, foi autorizada uma experiência litúrgica chamada de
'confissão comunitária', que foi uma sugestão de alguns grupos de
teólogos conciliares para o retorno da prática original da
penitência, como era nos primeiros tempos da era cristã. Todavia,
as forças conservadoras da teologia, das quais o Papa Bento XVI foi
um notável representante, após algum tempo retiraram essa prática
como não recomendada, podendo ser realizada apenas em ocasiões
especialíssimas e em caráter excepcional. No entanto, sabe-se que
aquele rito inicial da missa, com o ato penitencial, tinha exatamente
essa finalidade de possibilitar o arrependimento dos fiéis, que
então recebiam a benção do perdão. Esse ponto, o Concílio
Vaticano II não teve força suficiente para reformar.
Caros amigos, nós somos herdeiros
daquelas comunidades que não conheceram pessoalmente a Cristo, no
entanto, creram nele. Nós somos os bem-aventurados, conforme Cristo
proclamou, mais do que Tomé e dos outros Apóstolos, que precisaram
ver para crer. A nossa fé se fundamenta na leitura e no testemunho,
por isso, para os outros irmãos, nós devemos dar esse testemunho de
uma fé amadurecida e atuante.
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