COMENTÁRIO LITÚRGICO – 24º DOMINGO
COMUM – CRISTO SOFREDOR – 16.09.2018
Caros Leitores,
Na liturgia deste 24º domingo comum, o
evangelista Marcos destaca uma ríspida resposta de Cristo a Pedro,
que foi falar-lhe coisas inconvenientes: vade retro, satanas
(afasta-te, vai-te embora, satanás), uma das poucas demonstrações
de atitudes de Cristo em que se vislumbra o quanto o seu lado humano,
por vezes, conflitava com a fidelidade à missão que ele viera
realizar. Outra vez, foi no Jardim das Oliveiras, quando ele suou
sangue. Esses episódios representam de forma bem eloquente a
presença em Cristo das naturezas divina e humana e mostram que,
enquanto humano, ele sofria mesmo, não apenas fingia sofrimento,
como afirmaram os seguidores do docetismo, nos primeiros tempos do
cristianismo. Vale também uma explicação sobre o termo “satanás”,
palavra hebraica transliterada para o grego, que significa
literalmente “adversário”, “opositor”.
A primeira leitura, extraída do
profeta (deutero)Isaías (50, 5-9), apresenta os versos clássicos do
servo sofredor, fazendo eco com a narrativa do evangelista Marcos (8,
27-35), quando Jesus falava para os discípulos dos sofrimentos pelos
quais deveria passar, como parte integrante da sua tarefa messiânica,
antecipando os acontecimentos que estavam por vir. Essa parte do
livro de Isaías, chamada de deutero-Isaías, foi escrita durante o
cativeiro da Babilônia, depois da morte do profeta, daí as
referências ao sofrimento do povo, junto com as exortações de
penitência e de confiança em Javeh, que na hora certa virá
libertá-los. O servo
sofredor do exílio babilônico é a prefiguração
do futuro Messias, que irá personificar de forma plena esta figura,
através da sua paixão e morte, para nossa redenção. A profecia de
Isaías impressiona pela riqueza de detalhes com que seu autor
descreve o futuro sofrimento do Messias, através de citações
verdadeiramente inspiradas, que se confirmaram com elevada precisão.
Acerca
desse tema do sofrimento de Cristo, é valioso recordar uma temática
que foi objeto de múltiplas polêmicas, nos primeiros séculos do
cristianismo, acerca da natureza humana e também divina de Cristo.
Enquanto Ario (fundador do arianismo) afirmava que Cristo não era
igual a Deus, pois era filho e, portanto, subordinado a ele e
hierarquicamente inferior, de outro lado havia
os cristãos gnósticos, que afirmavam que Jesus tinha apenas uma
aparência humana, quando
na verdade, ele era Deus e o seu corpo humano
era
só uma ilusão de ótica. Essa doutrina era chamada de docetismo e
afirmava que Cristo de fato não sofreu nada, a paixão foi toda uma
grande encenação de sofrimento, pois sendo Deus, ele não poderia
sofrer. Desnecessário dizer que ambas as doutrinas foram rejeitadas
como heresias, pois a doutrina que se consolidou nas discussões
acerca da pessoa de Jesus foi a de que ele possuía duas naturezas
(divina e humana) sendo assim, verdadeiramente, Deus e homem, ou
seja, ele sofreu de verdade como qualquer ser humano sofreria todas
aquelas torturas, feridas, dores, enfim, tudo o que é tipicamente
humano.
Pois
bem, esse prólogo tem como finalidade esclarecer o diálogo de Pedro
com Jesus, conforme está narrado no evangelho de Marcos (8, 27-35),
sobre os episódios da vida de Cristo que antecedem sua ida a
Jerusalém, onde viria a ser sacrificado. Após três anos de
catequese diária com os discípulos, Jesus vendo aproximarem-se os
seus dias finais, foi fazer uma espécie de pré-teste, como se diz
no vocabulário moderno, um exame simulado, para saber como estava o
entendimento do seu grupo acerca da sua pessoa. Ele começa
perguntando por longe: quem as pessoas dizem que eu sou? Jesus não
queria saber o que o povo pensava dele, mas o que os discípulos
pensavam, porém pedagogicamente começou com uma pergunta bem
genérica. Eles responderam: uns dizem que é João Batista, outros
que é Elias ou algum dos profetas que ressuscitou. Então, Jesus vai
direto ao ponto: e vocês, o que dizem? Antes que alguém
respondesse, Pedro saiu na frente: Tu és o Messias. Eu não gosto
dessa tradução da CNBB, porque na tradução de São Jerônimo, o
texto está coerente com o termo original do grego: tu és o Cristo,
então acho que assim devia ser mantida essa tradução. Embora se
trate de conceitos sinônimos, penso que é mais correto conservar o
original, por uma questão de fidelidade ao texto, já que não
dificulta a compreensão.
Ao
ouvir a confissão de Pedro, diz o evangelista Marcos que “Jesus
proibiu-lhes
severamente de falar a alguém a respeito.”
Em
seguida, passou a dizer-lhes que “devia
sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e
doutores da Lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três
dias.”
Pedro, que era sempre muito falastrão, se meteu de novo na conversa,
chamou Jesus um pouco ao lado e foi pedir-lhe para não falar essas
coisas, porque nada disso iria lhe acontecer. Parece que Pedro tinha
receio que as pessoas, ouvindo aquilo, começassem a se desiludir de
segui-lo, porque muitos dos que o ouviam tinham a esperança de que
Jesus fosse liderar uma rebelião contra os romanos, para expulsá-los
do território da Judeia.
Inclusive dentro do grupo dos apóstolos, a missão de Cristo não
era bem entendida, aliás foi percebendo isso mesmo que Jesus começou
esse diálogo incômodo e desgastante, mas necessário. Imaginemos
que, para Jesus, era também muito constrangedor ficar falando nessas
coisas, porque ele sabia da extensão dos acontecimentos, sabia das
agruras pelas quais ia passar e a sua natureza humana entrava em
conflito com a sua vontade divina, não devia ser nada confortável
para Jesus ficar tocando nesse assunto tão delicado. Daí porque ele
não gostou nada quando Pedro foi insinuar que ele não devia falar
aquilo. Ora, ele já falava com grande esforço e superando enormes
dificuldades, e ainda tendo de escutar alguém tentando desvanecê-lo
daquela ideia,
aquilo passou dos limites. A reação de Jesus foi bastante ríspida,
até mesmo com certa violência verbal: ýpage opíso mou, satana,
diz o texto grego, que São Jerônimo traduziu por vade retro me,
satanas. Essa expressão equivale a uma daquelas que nós dizemos
quando estamos com raiva de alguém: vai pro raio que o parta... ou
algo assemelhado. E Jesus
ainda chamou Pedro de 'satanás', por isso convém explicar também
isso. Essa palavra satanás, no nosso idioma, adquiriu o sentido de
demônio, porém, o seu sentido original é bem mais brando. Na
verdade, trata-se de uma palavra original do hebraico (satan),
transliterada em grego, isto é, não é uma palavra da língua
grega, e o seu significado próprio é adversário, inimigo,
opositor.
Então, é como se Jesus estivesse chamando Pedro de inimigo dele,
porque estava dificultando
o cumprimento da sua missão, não
chamou
de
demônio.
A irritação de Jesus também pode ser entendida se imaginarmos que
ele sabia que um dos componentes do grupo estava ali com outros
objetivos, então aquele puxão de orelhas que Pedro levou tinha
também o objetivo de atingir, mesmo que indiretamente, Judas
Iscariotes. Ademais
disso, conforme já referi antes, essa atitude encolerizada de Jesus
ressalta o seu lado humano, o lado emotivo, o sangue que esquenta
diante de uma situação desagradável, enfim, a natureza humana de
Jesus.
Podemos
fazer aqui um link com a segunda leitura, do apóstolo Tiago (2,
14-18), onde ele fala que a fé autêntica não é válida sozinha,
mas deve estar sempre acompanhada pelas obras: “a
fé, se não se traduz em obras, por si só está morta.”
Encontramos atitude similar nos ensinamentos e nos exemplos que Jesus
deixou. Nas várias parábolas que utilizou, ele sempre ressaltou a
importância da ação, como fato exterior que acompanha o ato
interior do cumprimento dos mandamentos. É
isso que confirma o apóstolo João na sua carta: “Se
alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é
mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, não
pode amar a Deus, a quem não viu.”
(1Jo
4, 20) Em relação aos sofrimentos associados à sua missão
redentora, ele poderia muito bem ter operado um grande milagre, não
se submeter a tantos padecimentos. Se observarmos bem, esse era o
tema das “tentações” que Jesus sofreu quando se preparava para
começar a sua vida de pregador e foi fazer um retiro no deserto.
“Pra que isso?”, dizia-lhe o tentador? Por que não chamas teus
anjos para te levarem nos braços... por que não ordenas a essas
pedras que se transformem em pão para saciar a tua fome... por
que... era o conflito interno que se passava na mente dele. Era muito
mais simples e rápido obrar um milagre, como um passe de mágica, e
tudo estaria resolvido. Mas assim ele não estaria sendo fiel ao
mandato do Pai. Aquilo tudo era doloroso ao extremo, mas precisava
ser enfrentado. Por isso, aquela insinuação de Pedro ecoou tão
forte e perfurou tão fundo, como um grande espinho de mandacaru.
“Sai pra lá”, foi mais uma tentação que ele precisou superar,
para o correto exercício da sua messianidade.
Meus
amigos, às vezes, precisamos dizer também “vade retro” para
diversas pessoas e situações, a fim de nos mantermos fiéis à
nossa missão Que o divino Mestre nos ilumine nas nossas tarefas de
cada dia, para sabermos sempre discernir e seguir fielmente a missão
que Deus nos deu.
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