domingo, 30 de setembro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 26º DOMINGO COMUM - 30.09.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 26º DOMINGO COMUM – TODOS PROFETAS – 30.09.2018

Caros Leitores,

A liturgia deste 26º domingo coloca em pauta um assunto que o Papa Francisco, por diversas vezes, já citou publicamente e causou controvérsias na Cúria Romana: Deus está não apenas na Igreja Católica, mas no meio de todos os que o procuram de coração sincero, independentemente da crença religiosa. Esse é o grande tema teológico que embasa o ecumenismo, sobretudo no esforço de aproximação das grandes religiões monoteístas, que tem sido um dos pontos recorrentes nos discursos do Papa: cristianismo, judaísmo e islamismo. Ninguém possui o monopólio da fé. Essa exclusividade era uma doutrina teológica do passado, dos tempos apologéticos, porém o próprio Cristo reprova isso, conforme vemos na leitura do evangelho de Marcos.

A primeira leitura, retirada do livro dos Números (11, 25-29), narra um episódio ocorrido durante a caminhada pelo deserto, quando os israelitas chegaram ao monte Sinai. Depois de vários meses comendo perdizes, maná e frutos do deserto, o povo estava descontente, com saudade da comida que tinham no Egito, onde comiam carne fresca e legumes e começaram a murmurar contra Moisés. Então, Javeh desceu da nuvem e mandou Moisés separar 70 homens dentre os mais idosos do povo para formarem uma espécie de 'conselho' de anciãos. Moisés fez isso e, diz o livro dos Números, que Javeh “Retirou um pouco do espírito que Moisés possuía e o deu aos setenta anciãos. Assim que repousou sobre eles o espírito, puseram-se a profetizar, mas não continuaram.” (11, 25). Porém, o trecho mais curioso vem logo a seguir: dois anciãos, que não participavam daquele grupo, também receberam o espírito e passaram a profetizar no acampamento (Eldad e Medad). Os invejosos foram logo enredar a Moisés, como se eles estivessem fazendo algo proibido, e Moisés deu-lhes um puxão de orelhas: que é isso? Estão com inveja porque também não profetizam? Josué chegou a pedir a Moisés que ordenasse que eles dois parassem de profetizar, ao que este respondeu: 'Tens ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor lhe concedesse o seu espírito!' (11,29). Josué era o “lugar tenente” de Moisés e talvez tenha se sentido diminuído porque ele próprio não recebera o dom de profetizar. Essa ciumeira do serviço divino, como se percebe, já existia nos tempos bíblicos remotos. Moisés, inspirado, rejeitou isso: quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta! Nós também podemos exercitar a profecia, bastando estarmos atentos às manifestações do Espírito.

Nesse mesmo sentido, segue a narrativa do evangelho de Marcos (9, 38-43), quando João veio dizer a Jesus: “'Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue'. Jesus disse: 'Não o proíbais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor.” Os discípulos demonstraram aí um certo ciúme do Mestre e talvez achassem que somente a eles, do grupo de seguidores próximos de Jesus, era dado o poder de expulsar demônios. Mas Jesus fá-los ver que o Espírito sopra onde quer e ninguém pode inibir a ação do Espírito em sua liberdade total, ninguém manda no Espírito, ninguém tem o monopólio da profecia. É lamentável que alguns grupos radicais dentro da própria Igreja não consigam perceber esse ensinamento de Cristo. Um fato é notório: toda vez que o Papa recebe a imprensa para uma entrevista coletiva, a Cúria Romana fica em polvorosa, com receio do que “ele vai dizer”, ou seja, não acreditam no dom da profecia que ele tem, não acreditam na manifestação do Espírito através dele.

Ora, meus amigos, quando Jesus repreendeu os discípulos que haviam 'proibido' aquele homem que não era do grupo, para que não expulsasse demônios, era como se Jesus estivesse antevendo os diversos movimentos religiosos futuros, as distorções que iriam fazer da sua doutrina, os diversos 'missionários' que se apresentariam em nome dele, prometendo curas e arrebanhando grupos mais ou menos numerosos de seguidores. Em outras palavras, o que Jesus propunha era uma religião enquanto modo de vida, Ele não mandou que fosse fundada uma 'organização' estruturada com cargos e hierarquias, ou seja, Ele não mandou que se constituíssem 'igrejas'. Estas foram surgindo de forma espontânea, com a reunião de fiéis em torno de um líder. De início, esse líder era um dos apóstolos, depois passou a ser uma pessoa a quem eles delegavam este poder, através da 'imposição das mãos' (ordenação), e assim foram sendo criados os vários 'cargos' internos: diáconos, sacerdotes, bispos, estruturando-se aos poucos uma hierarquia. Obviamente, essa organização é necessária e, ao longo do tempo, a Igreja tem dado demonstração da eficiência do seu modelo administrativo, apesar das inevitáveis vicissitudes, que decorrem da própria historicidade e da limitação dos seres humanos. Observando somente sob o aspecto puramente estrutural e formalista, não se pode negar a importância dessa organização, que vem atravessando séculos. Porém, não é essa a finalidade da Igreja. Isso é o meio, o suporte material, sem dúvida necessário, mas o seu objetivo último é a pregação do evangelho. E não se deve confundir os meios com os fins.

Quando se faz a reflexão sobre a propagação da fé, a questão básica a ser enfrentada é esta: qualquer 'igreja' reproduz o ideal religioso proposto por Cristo? Ou somente uma delas, no caso a Igreja Católica Romana? E as outras religiões não cristãs, mas igualmente monoteístas, tais como o judaísmo e o islamismo, em que posição se enquadram? (Só uma observação necessária: falar em islamismo não deve ser confundido com o radicalismo do autodenominado Estado Islâmico, que pratica atrocidades em nome da religião, isso não representa todo o Islã). E as religiões orientais milenares, tais como o budismo, o bramanismo, taoísmo? O que dizer do espiritismo, do umbandismo, das vivências espiritualistas em geral, não ligadas a uma determinada religião? Pois é, Jesus disse claramente: quem não está contra nós, está a nosso favor. Há muito preconceito de parte a parte, reforçado ao longo dos séculos por lamentáveis acontecimentos, que dificultam as tentativas de reaproximação de todas essas formas de expressão religiosa, no entanto, a profecia de Cristo é que, um dia, haverá um só rebanho e um só pastor. Boa parte do sucesso desse empreendimento depende da forma como cada um de nós vive e pratica a sua fé.

Vemos na segunda leitura, retirada da carta do apóstolo Tiago (o irmão do Senhor) ensinamentos que parecem ser dirigidos para os donos do capital do mundo de hoje (Tg 5, 1-6): “o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, que vós deixastes de pagar, está gritando, e o clamor dos trabalhadores chegou aos ouvidos do Senhor todo-poderoso.” Quantas pessoas ficam ricas e vivem luxuosamente como consequência de exploração do serviço dos irmãos, do aproveitamento inescrupuloso do poder social, da sonegação e dos desvios dos bens públicos em benefício próprio, a campanha política em andamento demonstra isso de modo bem claro. Contra esses, o Apóstolo é bastante ríspido: “E agora, ricos, chorai e gemei, por causa das desgraças que estão para cair sobre vós. Vossa riqueza está apodrecendo, e vossas roupas estão carcomidas pelas traças. Vosso ouro e vossa prata estão enferrujados, e a ferrugem deles vai servir de testemunho contra vós.” Nesse mesmo sentido, expressou-se o papa Paulo VI , na encíclica Populorum Progressio (1967), quando disse: a terra foi dada a todos, ricos e pobres, não apenas aos ricos. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo o que é supérfluo, enquanto para outros falta até o necessário. O Papa critica tanto o liberalismo sem freio, que conduziu ao imperialismo internacional do dinheiro, isto é, o capitalismo, como também a coletivização integral e a planificação arbitrária, que priva os homens da liberdade e dos direitos fundamentais da pessoa humana, isto é, o comunismo. Ambos são paradoxalmente equivalentes.

Meus amigos, o desafio que a liturgia nos coloca é o de viver autenticamente a mensagem de Cristo, de forma honesta e objetiva, sem tentar adequá-la ao que é do nosso maior interesse. Se nos deixarmos levar pelos preconceitos, que ao longo do tempo fomos assimilando, corremos o risco de recair sobre nós aquela mesma repreensão que Cristo fez aos discípulos: não lhos proibais, porque quem não está contra nós, está conosco. Isso não quer dizer que agora cada um pode escolher a religião que lhe aprouver, como se todas são iguais, porque nós professamos uma fé e acreditamos nela. Significa, outrossim, que não podemos fazer discriminações de pessoas por motivos religiosos. Mais importante do que as denominações religiosas é a pureza do coração e a retidão da consciência, pois o monopólio da fé não foi dado a ninguém.

Que o Divino Mestre nos ajude a sermos autenticamente fiéis, para que a vivência da nossa religião não seja movida apenas pela tradição ou pelo costume.

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