COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO
COMUM – RELIGIÃO DE FACHADA – 02.09.2018
Caros Leitores,
Neste 22º domingo comum, o cântico da
comunhão sintetiza a mensagem do evangelho: o mal que sai de nós e
vem do coração impuros, sim, nos faz. A liturgia nos convida a
refletir sobre a qualidade da nossa prática religiosa. Temos
atitudes coerentes com o que afirmamos ou praticamos uma religião de
fachada? A nossa fé está integrada na nossa vida ou praticamos a
vida dupla: na igreja somos orantes, fora dela somos maledicentes? O
espírito farisaico, criticado por Jesus naquele tempo, ronda sempre
os templos e as vidas dos crentes, hoje como no passado.
A primeira leitura litúrgica é
retirada do livro do Deuteronômio (4, 1). Só uma breve informação
histórica sobre esse livro do Deuteronômio. Literalmente, significa
“segunda lei”, mas não é outra lei diferente daquela de Moisés,
apenas uma nova “versão”, a lei com outras palavras. Por isso, o
nome hebraico deste livro é Devarim e significa “palavras”. O
papiro com esse manuscrito foi encontrado casualmente por pedreiros
que faziam uma reforma no altar do templo de Jerusalém. Era um rolo
muito antigo, que estava enterrado sob a pedra do altar. Ao lê-lo,
os escribas verificaram que se tratava de uma espécie de “repetição”
ou adaptação dos discursos de Moisés, contendo muitas orientações
práticas sobre a vida do povo, tendo sido escrito, provavelmente,
quando os israelitas já estavam bem próximo de adentrarem a terra
prometida, ou seja, no final da vida de Moisés. Assim se entende
porque carrega esses dois nomes: deuteronômio (segunda lei,
repetição da lei) e devarim (palavras, costumes da sociedade
hebraica). Sempre devemos ter em mente que, naquela época em que não
havia separação entre estado e religião e que as autoridades
religiosas e estatais eram as mesmas, era perfeitamente comum que as
normas sociais e estatais se confundem com preceitos religiosos. Isto
era assim não apenas entre os hebreus, mas entre todas as sociedades
primitivas. Quem tiver interesse em ler mais aprofundadamente sobre
esse assunto, sugiro o livro “A Cidade Antiga”, da autoria de
Fustel de Coulanges.
Pois bem, passando ao texto, Moisés
fala ao povo sobre as leis e decretos dados por Javeh aos seus
ancestrais, lembrando a eles a exigência da fidelidade a essas
normas, como uma maneira de demonstrar sabedoria diante dos povos
vizinhos, porque nenhum dos deuses dos outros povos tinha este mesmo
cuidado com os seus devotos do que o Deus de Abraão. Diz o vers. 6:
“Vós
os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está
vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo
todas estas leis, digam: 'Na verdade, é sábia e inteligente esta
grande nação! ”
Os fariseus gostavam muito do Deuteronômio, porque havia nele uma
grande diversidade de preceitos, dos quais eles faziam uma espécie
de tabela e com elas ensinavam o povo. Além disso, servia também
para fiscalizar se os demais hebreus os estavam observando.
Segundo os estudiosos, os fariseus
fizeram um resumo de cerca de 600 preceitos, em geral, proibitivos,
fazendo uma exposição didática dessas leis antigas. Eram esses
preceitos que determinavam assuntos básicos de saúde pública,
como, por exemplo, lavar as mãos antes das refeições, tomar banho
quando chegavam da praça pública, jejuar nos dias estabelecidos,
dar esmolas, etc. Para facilitar a memorização, havia uma espécie
de tabela com especificações bem detalhadas. Pois bem, A questão
que Jesus lançou contra eles, desafiando-os, era porque dentro do
excessivo formalismo deles, quem cumprisse aquilo rigorosamente era
um bom crente, quem não os cumpria estava desobedecendo a lei. Desse
modo, se a norma mandava que, no dia de jejum, o máximo que alguém
podia ingerir era, por exemplo, 300g de alimento, então era preciso
pesar na balança as refeições para não passar dessa cota, sob
pena de descumprir o preceito. Ou seja, a sua preocupação era
exageradamente formal em relação aos detalhes exteriores, no
entanto, intimamente eles podiam ser desonestos, maledicentes,
exploradores, caluniadores, injustos, porque essas atitudes
interiores não contavam, mas somente o que eles faziam externamente.
Na verdade, a concepçao religiosa deles era uma religião de
fachada, de exterioridades.
Esta leitura do Deuteronômio tem,
pois, conexão direta com o evangelho de Marcos, que narra mais uma
das altercações entre Jesus e os fariseus, estes sempre tentando
apanhá-lo em algum deslize. Viram que os discípulos de Jesus não
lavaram as mãos antes de iniciarem a refeição e então eles foram
interpelar Jesus perguntando 'por que os discípulos dele não
cumpriam a lei de Moisés' ? Jesus lançou-lhes em rosto o texto de
Isaías: “Bem
que Isaías falou a respeito de vocês: este
povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim.
De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam
são preceitos humanos'. Vós abandonais o mandamento de Deus para
seguir a tradição dos homens'
” (Mc 7, 6). Os fariseus argumentavam que aquela era uma tradição
dos antigos, fazendo referência não exatamente à lei de Moisés,
mas aos costumes dos ancestrais, por isso Jesus os censurou porque
deixaram de lado a verdadeira Lei divina e ampararam-se nas tradições
humanas. Daí que Jesus disse: vocês não entenderam nada, não é
nada disso, porque se importam muito com o exterior, mas no seu
íntimo os seus pensamentos não são coerentes com as suas atitudes.
Trazendo para os dias atuais, meus amigos, essa atitude hipócrita
dos fariseus ainda pode ser encontrada nos cristãos que se benzem
quando passam diante do templo, mas viram o rosto para não
oferecerem ajuda a um irmão necessitado, que está sentado na porta.
De que adianta apresentar exteriormente um comportamento quando o
interior é vazio? De que adianta andar com o terço na mão, o
escapulário pendurado no pescoço, a Bíblia embaixo do braço e ter
a mente ocupada com frivolidades, o coração cheio de más
intenções? Daí o veredito de Cristo, invocando a lamentação de
Isaías: esse povo me honra só com os lábios, mas o coração deles
tem outro dono. E completou: o que torna impura a pessoa não é o
que entra nela vindo de fora, mas o que sai dela vindo do seu
interior. O alimento ingerido sem lavar as mãos pode até,
eventualmente, causar algum dano à saúde, mas pior do que isso é a
maldade que sai distilada em palavras e atitudes, que causam danos
mais desastrosos à felicidade das outras pessoas. E isso é o que
realmente importa.
Portanto, Cristo está nos ensinando
que a verdadeira religião é a que se pratica ao nível do coração,
do entendimento, da intencionalidade e que se expressa em atos de
caridade. Ter um comportamento contrito e piedoso quando está dentro
do templo não é suficiente, se ao sair de lá essa contrição e
essa piedade não se revelarem no relacionamento com os irmãos. Não
se quer dizer que a oração, a piedade não são boas coisas, de
modo nenhum, são ótimas atitudes. O erro está no descompasso, na
incoerência entre o interior e o exterior. O nosso agir deve ser uma
expressão concreta do nosso pensar, bem como a recíproca atitude.
Por diversas vezes, Jesus brandiu contra os fariseus por causa disso.
Por exemplo: quando jejuardes, não precisa por cinzas na cabeça e
andar com roupa esfarrapada para que os outros vejam, porque o Pai do
céu sabe do que se passa no vosso coração; quando derdes esmolas,
fazei-o de forma reservada e não alardeando publicamente, de modo
que não saiba a tua mão direita o que faz a tua esquerda. A
verdadeira religião, a verdadeira fé é a que começa no
pensamento, no coração e se traduz em atitudes relacionadas.
E agora uma breve mensagem sobre a
segunda leitura, retirada da carta de São Tiago (1, 17), que reforça
essa mensagem com seu conselho aos judeus da diáspora: “sede
praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós
mesmos. Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai,
é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações.
” Quem não pratica a religião que ensina aos outros está se
enganando a si próprio, como se diz na linguagem de hoje, é uma
'empresa fantasma', tem só a aparência, armadilha com o intuito de
ludibriar os incautos. A verdadeira religião é a que se revela nas
obras de caridade, como fruto do amor ao próximo. A referência aos
órfãos e viúvas reflete uma realidade daquele tempo e hoje deve
ser entendida como “os irmãos necessitados”, começando com
aqueles que estão mais próximos de nós. De forma direta ou
indireta, através de entidades e associações que prestam esse tipo
de serviço, a sociedade de hoje, talvez mais do que no tempo do
apóstolo Tiago, necessita desse nosso exemplo de solidariedade. Foi
com esse espírito também que o grupo do Ensese apoiou o compromisso
de ajudar financeiramente o Colégio Seráfico, onde todos nós
recebemos a nossa formação, sendo isso entendido como uma forma de
sermos praticantes da palavra de Deus, e não apenas ouvintes.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário