COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO
COMUM – 27.01.2019 – AUTOPROCLAMAÇÃO
Caros Leitores,
A liturgia deste 3º domingo comum traz
um dos textos mais significativos para o reconhecimento de Jesus
Cristo como Filho de Deus. Em sua costumeira modéstia e sempre
falando por metáforas ou parábolas, raras vezes Jesus se referiu
diretamente à sua pessoa como sendo aquele que as escrituras
anunciaram. Ao concluir a leitura do texto de Isaías (61, 1), ele
complementou: hoje se cumpriu isso que acabastes de ouvir. Mas ele
estava na sinagoga de Nazaré, sua cidade natal, e ali todos o
conheciam, assim como conheciam seus pais e familiares, então
ninguém levou a sério o que ele falou e a sua autoproclamação não
surtiu efeito, apesar de outras evidências que ele já apresentara.
Mas a primeira leitura, extraída do
livro de Neemias (8, 2-10), contém também um texto interessante que
relata uma atividade do sacerdote e escriba Esdras lendo e explicando
ao povo a Lei (Torah), em linguagem acessível, de modo que todos
ficaram atentos desde o amanhecer até o meio dia e alguns até se
emocionaram, chegando às lágrimas. Se observarmos o contexto
histórico, iremos compreender melhor o motivo de tanta emoção:
Neemias foi um governante que trabalhou na reconstrução das
muralhas de Jerusalém, após o retorno dos hebreus do exílio da
Babilônia. Naquela época, poder ouvir a leitura da Torah em
Jerusalém era, para os hebreus recém-retornados do exílio, a
realização de um sonho que eles acalentaram durante muito tempo e
esperaram muito ansiosamente por ele. Voltar a Jerusalém já era,
por si só, uma emoção muito forte e poder celebrar seus
cerimoniais na cidade reconstruída era algo ainda mais emocionante.
Daí porque tanto o governador Neemias quanto o sacerdote Esdras
falavam ao povo: “não fiqueis tristes nem choreis”, porque todo
o povo chorava ao ouvir a leitura. E o governador instruiu o povo a
banquetear-se naquele dia, porque aquela era uma ocasião abençoada:
“'Ide
para vossas casas e comei carnes gordas, tomai bebidas doces
e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor'.” (8, 10) Um detalhe curioso que chama a atenção nesse texto é que, costumeiramente, os hebreus realizavam suas cerimônias religiosas ao entardecer (por do sol), mas neste caso específico, o ato se deu na parte da manhã (do amanhecer até o meio dia), sugerindo que se tratava de uma celebração não rotineira, em horário não habitual, para comemorar a reconstrução do muro. Na sequência desse texto, diz o escritor sagrado que o povo ergueu cabanas na praça, de acordo com a tradição mais antiga dos hebreus, e habitaram nelas por sete dias, dando origem a uma festa ainda hoje celebrada (festa dos tabernáculos), uma das três mais importantes da religião judaica.
e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor'.” (8, 10) Um detalhe curioso que chama a atenção nesse texto é que, costumeiramente, os hebreus realizavam suas cerimônias religiosas ao entardecer (por do sol), mas neste caso específico, o ato se deu na parte da manhã (do amanhecer até o meio dia), sugerindo que se tratava de uma celebração não rotineira, em horário não habitual, para comemorar a reconstrução do muro. Na sequência desse texto, diz o escritor sagrado que o povo ergueu cabanas na praça, de acordo com a tradição mais antiga dos hebreus, e habitaram nelas por sete dias, dando origem a uma festa ainda hoje celebrada (festa dos tabernáculos), uma das três mais importantes da religião judaica.
Na segunda leitura, da carta de Paulo
aos Coríntios (ICor 12, 12-30), o Apóstolo apresenta outra versão
da sua doutrina sobre os modos de agir do Espírito Santo, desta vez
através da imagem do corpo na sua relação com os membros (o corpo
místico). “Vós,
todos juntos, sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros
desse corpo. ”
(12,27) A dialética do corpo e dos membros aponta para a diversidade
dos dons com os quais são dotadas as pessoas da comunidade, o que as
torna diferentes umas das outras, no entanto, essas diferenças não
isolam as pessoas, mas as complementam. E cada uma delas vai agir de
acordo com o que o Espírito a inspira: “De
fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos
batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e
todos nós bebemos de um único Espírito.
” (12, 13) O texto evidencia o grande problema que Paulo enfrentava
naquela ocasião, a conhecida questão dos judaizantes. A isso se
juntava a questão econômica, porque havia ricos e pobres entre os
convertidos. Então, ele explica que, assim como há diferenças de
etnias ou de classes sociais na sociedade civil, também na
comunidade cristã nem todos são iguais, pois há diferentes
ministérios: “em
primeiro lugar, os apóstolos; em segundo lugar, os profetas; em
terceiro lugar, os que têm o dom e a missão de ensinar; depois,
outras pessoas com dons diversos, a saber: dom de milagres, dom de
curas, dom para obras de misericórdia, dom de governo e direção,
dom de línguas.”
(12, 28) Essas diferenças, porém, não devem causar dissensões
dentro da comunidade, porque todas elas são formas variadas de ação
do mesmo Espírito. E assim como, no corpo, não há membros mais
honrosos ou decentes do que outros, pois todos detém igual
importância e honorabilidade, assim também entre os fiéis não
deve haver inveja, porque uns têm o dom da profecia, enquanto outros
tem o dom para o governo e a direção. Com efeito, não poderiam ser
todos apóstolos, todos profetas, todos dirigentes, todos
intérpretes, então essa diversidade é que produz a riqueza e a
complementaridade recíproca, do mesmo modo como os órgãos
corporais formam sistemas e se harmonizam. Podemos ver, nessa visão
pedagógica paulina, que ele antecipou em vários séculos a teoria
dos sistemas, que só surgiu cientificamente no século XIX. Nessa
visão teológica de Paulo, o Espírito é o ponto de referência
comum, para o qual todos os “sistemas” particulares convergem.
O texto litúrgico escolhido para a
leitura do evangelho é da autoria de Lucas e contém duas notas
bastante significativas para a nossa informação. Primeiro, no
prólogo, ele afirma que “muitas pessoas” já escreveram sobre os
acontecimentos que se realizaram entre nós, relatados por aqueles
que foram testemunhas oculares, por isso também ele, Lucas, após
meditar bastante, decidiu escrever a sua versão. Esse comentário
traz, nas entrelinhas, a informação de que havia numerosos escritos
acerca de Jesus, de seus ensinamentos, de seus feitos miraculosos, os
quais teriam sido resumidos ou compilados nos evangelhos oficiais que
hoje temos. Não foram apenas os evangelistas a escrever. Lucas diz
que resolveu escrever “de modo ordenado”, deixando-nos entender
que os outros textos eram dispersos, ou talvez eram textos diversos
contendo as mais diferentes histórias e testemunhos. Daí dizer-se
que os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas são “sinóticos”, ou
seja, reuniões de textos diversos reescritos e adaptados por eles.
Cada evangelista utilizou esses textos e acrescentou suas próprias
notas ou comentários. No caso de Lucas, sabe-se que ele incluiu
muitas informações colhidas de sua convivência com Maria, que não
haviam sido escritas por ninguém, mas ele as tinha em primeira mão.
Em seguida, o texto da leitura dá um
salto para o capítulo 4, relatando a ida de Jesus à sinagoga de sua
cidade natal, Nazaré, num dia de sábado, para o culto regular. A
essas alturas, Jesus já era famoso, o milagre das bodas de Caná
havia sido bastante comentado e Jesus já havia pregado nas sinagoras
de outras cidades da Galileia, causando admiração. Mas ali estava
ele em Nazaré, sua terra natal, onde as pessoas conheciam a sua
origem, seus pais e familiares, todos sabiam que ele não era um
escriba ou um levita, muito menos um mestre da Lei. Mas a sua fama já
era conhecida e ele se apresentou para fazer a leitura,
provavelmente, ele pediu o livro de Isaías, pois sabemos, através
de outras passagens, que esse era o Profeta preferido dele. Jesus
escolheu deliberadamente o cap. 61, onde diz: “O
Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a
unção para anunciar a Boa Nova aos pobres.”
Jesus conhecia o texto, ele não abriu casualmente nessa passagem,
ele fez de propósito, ele queria dizer aos presentes quem ele
realmente era. Diz o escritor sagrado que, após ter lido, ele se
sentou e todos ficaram olhando para ele. Então, ele se declarou
abertamente: o Profeta estava falando sobre mim.
O texto litúrgico pára por aqui, mas
o discurso de Jesus não se encerrou com isso. Aquelas pessoas tinham
ouvido falar dos milagres que ele havia feito em outras cidades e,
certamente, esperavam que ele fizesse ali uma “demonstração”,
um milagresinho, quem sabe, até pediram isso, porque as palavras
posteriores de Jesus foram muito ríspidas com os presentes, a ponto
de eles o expulsarem da cidade e o levarem até uma montanha, de onde
iriam precipitá-lo, de tão irritados que ficaram. Foi nessa ocasião
que Jesus disse: nenhum profeta é bem recebido na sua terra. Aqueles
conterrâneos de Jesus, certamente, o provocaram, talvez
prevalecendo-se do fato de serem “velhos conhecidos”, tentando
receber dele um tratamento privilegiado. Porém, ele quis demonstrar
que a sua missão se dirigia a todos sem distinção e, sobretudo,
aos mais necessitados, tal como predissera o Profeta. Se trouxermos
esse fato para os dias de hoje, podemos observar que algumas pessoas
tentam se utilizar da religião para lograr proveito pessoal,
promoção social, ações interesseiras. Jesus está ensinando que a
fé não se presta para isso, está acima de tudo isso. Não é pelo
número de missas assistidas ou pela quantidade de terços rezados
que alguém deverá se considerar mais merecedor do que outrem que
não frequenta a missa nem reza o terço. Deus valida o que vai no
íntimo de cada um, não aquilo que transparece externamente, muitas
vezes sem a necessária convicção.
Que o Divino Mestre nos afaste de
praticar uma religião de fachada e nos inspire a prática da fé
verdadeira e coerente.