sábado, 26 de janeiro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM - 27.01.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM – 27.01.2019 – AUTOPROCLAMAÇÃO

Caros Leitores,

A liturgia deste 3º domingo comum traz um dos textos mais significativos para o reconhecimento de Jesus Cristo como Filho de Deus. Em sua costumeira modéstia e sempre falando por metáforas ou parábolas, raras vezes Jesus se referiu diretamente à sua pessoa como sendo aquele que as escrituras anunciaram. Ao concluir a leitura do texto de Isaías (61, 1), ele complementou: hoje se cumpriu isso que acabastes de ouvir. Mas ele estava na sinagoga de Nazaré, sua cidade natal, e ali todos o conheciam, assim como conheciam seus pais e familiares, então ninguém levou a sério o que ele falou e a sua autoproclamação não surtiu efeito, apesar de outras evidências que ele já apresentara.

Mas a primeira leitura, extraída do livro de Neemias (8, 2-10), contém também um texto interessante que relata uma atividade do sacerdote e escriba Esdras lendo e explicando ao povo a Lei (Torah), em linguagem acessível, de modo que todos ficaram atentos desde o amanhecer até o meio dia e alguns até se emocionaram, chegando às lágrimas. Se observarmos o contexto histórico, iremos compreender melhor o motivo de tanta emoção: Neemias foi um governante que trabalhou na reconstrução das muralhas de Jerusalém, após o retorno dos hebreus do exílio da Babilônia. Naquela época, poder ouvir a leitura da Torah em Jerusalém era, para os hebreus recém-retornados do exílio, a realização de um sonho que eles acalentaram durante muito tempo e esperaram muito ansiosamente por ele. Voltar a Jerusalém já era, por si só, uma emoção muito forte e poder celebrar seus cerimoniais na cidade reconstruída era algo ainda mais emocionante. Daí porque tanto o governador Neemias quanto o sacerdote Esdras falavam ao povo: “não fiqueis tristes nem choreis”, porque todo o povo chorava ao ouvir a leitura. E o governador instruiu o povo a banquetear-se naquele dia, porque aquela era uma ocasião abençoada: “'Ide para vossas casas e comei carnes gordas, tomai bebidas doces
e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor
'.” (8, 10) Um detalhe curioso que chama a atenção nesse texto é que, costumeiramente, os hebreus realizavam suas cerimônias religiosas ao entardecer (por do sol), mas neste caso específico, o ato se deu na parte da manhã (do amanhecer até o meio dia), sugerindo que se tratava de uma celebração não rotineira, em horário não habitual, para comemorar a reconstrução do muro. Na sequência desse texto, diz o escritor sagrado que o povo ergueu cabanas na praça, de acordo com a tradição mais antiga dos hebreus, e habitaram nelas por sete dias, dando origem a uma festa ainda hoje celebrada (festa dos tabernáculos), uma das três mais importantes da religião judaica.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (ICor 12, 12-30), o Apóstolo apresenta outra versão da sua doutrina sobre os modos de agir do Espírito Santo, desta vez através da imagem do corpo na sua relação com os membros (o corpo místico). “Vós, todos juntos, sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros desse corpo. ” (12,27) A dialética do corpo e dos membros aponta para a diversidade dos dons com os quais são dotadas as pessoas da comunidade, o que as torna diferentes umas das outras, no entanto, essas diferenças não isolam as pessoas, mas as complementam. E cada uma delas vai agir de acordo com o que o Espírito a inspira: “De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito. ” (12, 13) O texto evidencia o grande problema que Paulo enfrentava naquela ocasião, a conhecida questão dos judaizantes. A isso se juntava a questão econômica, porque havia ricos e pobres entre os convertidos. Então, ele explica que, assim como há diferenças de etnias ou de classes sociais na sociedade civil, também na comunidade cristã nem todos são iguais, pois há diferentes ministérios: “em primeiro lugar, os apóstolos; em segundo lugar, os profetas; em terceiro lugar, os que têm o dom e a missão de ensinar; depois, outras pessoas com dons diversos, a saber: dom de milagres, dom de curas, dom para obras de misericórdia, dom de governo e direção, dom de línguas.” (12, 28) Essas diferenças, porém, não devem causar dissensões dentro da comunidade, porque todas elas são formas variadas de ação do mesmo Espírito. E assim como, no corpo, não há membros mais honrosos ou decentes do que outros, pois todos detém igual importância e honorabilidade, assim também entre os fiéis não deve haver inveja, porque uns têm o dom da profecia, enquanto outros tem o dom para o governo e a direção. Com efeito, não poderiam ser todos apóstolos, todos profetas, todos dirigentes, todos intérpretes, então essa diversidade é que produz a riqueza e a complementaridade recíproca, do mesmo modo como os órgãos corporais formam sistemas e se harmonizam. Podemos ver, nessa visão pedagógica paulina, que ele antecipou em vários séculos a teoria dos sistemas, que só surgiu cientificamente no século XIX. Nessa visão teológica de Paulo, o Espírito é o ponto de referência comum, para o qual todos os “sistemas” particulares convergem.

O texto litúrgico escolhido para a leitura do evangelho é da autoria de Lucas e contém duas notas bastante significativas para a nossa informação. Primeiro, no prólogo, ele afirma que “muitas pessoas” já escreveram sobre os acontecimentos que se realizaram entre nós, relatados por aqueles que foram testemunhas oculares, por isso também ele, Lucas, após meditar bastante, decidiu escrever a sua versão. Esse comentário traz, nas entrelinhas, a informação de que havia numerosos escritos acerca de Jesus, de seus ensinamentos, de seus feitos miraculosos, os quais teriam sido resumidos ou compilados nos evangelhos oficiais que hoje temos. Não foram apenas os evangelistas a escrever. Lucas diz que resolveu escrever “de modo ordenado”, deixando-nos entender que os outros textos eram dispersos, ou talvez eram textos diversos contendo as mais diferentes histórias e testemunhos. Daí dizer-se que os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas são “sinóticos”, ou seja, reuniões de textos diversos reescritos e adaptados por eles. Cada evangelista utilizou esses textos e acrescentou suas próprias notas ou comentários. No caso de Lucas, sabe-se que ele incluiu muitas informações colhidas de sua convivência com Maria, que não haviam sido escritas por ninguém, mas ele as tinha em primeira mão.

Em seguida, o texto da leitura dá um salto para o capítulo 4, relatando a ida de Jesus à sinagoga de sua cidade natal, Nazaré, num dia de sábado, para o culto regular. A essas alturas, Jesus já era famoso, o milagre das bodas de Caná havia sido bastante comentado e Jesus já havia pregado nas sinagoras de outras cidades da Galileia, causando admiração. Mas ali estava ele em Nazaré, sua terra natal, onde as pessoas conheciam a sua origem, seus pais e familiares, todos sabiam que ele não era um escriba ou um levita, muito menos um mestre da Lei. Mas a sua fama já era conhecida e ele se apresentou para fazer a leitura, provavelmente, ele pediu o livro de Isaías, pois sabemos, através de outras passagens, que esse era o Profeta preferido dele. Jesus escolheu deliberadamente o cap. 61, onde diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Nova aos pobres.” Jesus conhecia o texto, ele não abriu casualmente nessa passagem, ele fez de propósito, ele queria dizer aos presentes quem ele realmente era. Diz o escritor sagrado que, após ter lido, ele se sentou e todos ficaram olhando para ele. Então, ele se declarou abertamente: o Profeta estava falando sobre mim.

O texto litúrgico pára por aqui, mas o discurso de Jesus não se encerrou com isso. Aquelas pessoas tinham ouvido falar dos milagres que ele havia feito em outras cidades e, certamente, esperavam que ele fizesse ali uma “demonstração”, um milagresinho, quem sabe, até pediram isso, porque as palavras posteriores de Jesus foram muito ríspidas com os presentes, a ponto de eles o expulsarem da cidade e o levarem até uma montanha, de onde iriam precipitá-lo, de tão irritados que ficaram. Foi nessa ocasião que Jesus disse: nenhum profeta é bem recebido na sua terra. Aqueles conterrâneos de Jesus, certamente, o provocaram, talvez prevalecendo-se do fato de serem “velhos conhecidos”, tentando receber dele um tratamento privilegiado. Porém, ele quis demonstrar que a sua missão se dirigia a todos sem distinção e, sobretudo, aos mais necessitados, tal como predissera o Profeta. Se trouxermos esse fato para os dias de hoje, podemos observar que algumas pessoas tentam se utilizar da religião para lograr proveito pessoal, promoção social, ações interesseiras. Jesus está ensinando que a fé não se presta para isso, está acima de tudo isso. Não é pelo número de missas assistidas ou pela quantidade de terços rezados que alguém deverá se considerar mais merecedor do que outrem que não frequenta a missa nem reza o terço. Deus valida o que vai no íntimo de cada um, não aquilo que transparece externamente, muitas vezes sem a necessária convicção.

Que o Divino Mestre nos afaste de praticar uma religião de fachada e nos inspire a prática da fé verdadeira e coerente.


sábado, 19 de janeiro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM - 20.01.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM – 20.01.2019 – A DIVERSIDADE DOS DONS

Caros Leitores,

A liturgia deste 2º domingo comum destaca dois temas de grande significado: o consórcio entre Javeh e Jerusalém, que se restabelece após o cativeiro da Babilônia, fazendo a prefiguração veterotestamentária do enlace amoroso entre Cristo e a Igreja, que se consolidou no Novo Testamento. No evangelho, o episódio das Bodas de Caná retoma a imagem do casamento como a grande festa da família e da sociedade, prestigiada pela primeira demonstração pública do poder miraculoso de Jesus . O apóstolo Paulo, de forma didática e eloquente, ensina as diferentes formas de atuação do Espírito Santo entre os crentes, ilustrando a diversidade dos dons que ele inspira nos fiéis.

Na primeira leitura (Is 62, 1-5 [deutero Isaías]), Javeh fala pela boca do Profeta, enaltecendo a glória de Jerusalém, por quem ele declara a sua predileção: “teu nome será Minha Predileta e tua terra será a Bem-Casada, pois o Senhor agradou-se de ti e tua terra será desposada. Assim como o jovem desposa a donzela, assim teus filhos te desposam; e como a noiva é a alegria do noivo, assim também tu és a alegria de teu Deus.” Ao retornarem da Babilônia, os hebreus se dedicam à reconstrução de Jerusalém, adornando-a para o Senhor, assim como a noiva se enfeita para encontrar-se com o noivo. Javeh não descansará enquanto não surgir nela a Justiça, enquanto não se acender nela a tocha da salvação. Importa destacar que, durante o tempo em que os hebreus ficaram cativos na Babilônia, a região da Galiléia foi ocupada por povos de diversas etnias, que tentavam escapar do império assírio. Posteriormente, com a vitória de Ciro, tendo sido o império assírio dominado pelos persas, os hebreus foram libertados e retornaram para Canaã. Ali encontraram aqueles povos não retornaram para os seus locais de origem e formavam um conglomerado altamente disperso, um amontoado de línguas, costumes, religiões, culturas, uma população pobre e marginalizada. Então, além do trabalho material de reconstrução da cidade destruída, os hebreus retornados do cativeiro tiveram de enfrentar também essa situação social do encontro com povos diversos, que não conheciam a importância de Jerusalém para o judaísmo. A imagem do casamento tinha, portanto, também essa finalidade de transmitir para os estrangeiros um pouco da história do povo hebreu e sua relação com Javeh.

A liturgia prossegue com o tema do casamento no evangelho de João (Jo 2, 1-11), abordando o conhecido episódio das Bodas de Caná. O evangelista não teve a preocupação de mencionar os nomes dos nubentes, porém deviam ser pessoas próximas da família de José, talvez parentes, visto que Maria também estava presente, assim como os discípulos de Jesus. Aquela foi a oportunidade para que Jesus iniciasse a sua missão pública, fazendo a primeira demonstração do seu poder divino. Esse episódio é relatado apenas pelo evangelista João, o qual certamente estava ali presente e testemunhou o fato. Há uma tradição que afirma ser o evangelista Marcos um dos servos que encheu as vasilhas de água, que depois foi transformada em vinho, porém eu presumo que se tal tivesse ocorrido, Marcos certamente teria inserido esse fato no seu texto. Segundo a interpretação generalizada dos biblistas, o fato de ter Jesus escolhido iniciar sua atividade pública numa cerimônia de casamento, significa uma tácita aprovação do matrimônio como instituição amada por Deus. Com toda certeza, isso não foi mera casualidade, porque em toda a sua atividade de pregador, Jesus utilizou-se dos caminhos culturais do povo hebreu para, através destes, ensinar a sua doutrina. Desse modo, a sua presença naquele evento, a sua forma de agir e o impacto causado pela ocorrência entre os presentes tiveram uma consequência bastante significativa. Nas festas de casamento daquele tempo, havia sempre muitos convidados, inclusive pessoas de outras localidades, como sói acontecer também nos dias de hoje. Então, aquele fato extraordinário foi espalhado por muitos lugares, pelo testemunho dos inúmeros presentes.

Um detalhe intrigante no texto de João, certamente não casual, é o linguajar de Jesus, ao responder à sua mãe, quando ela foi dizer a ele que o vinho havia acabado. A tradução da CNBB até disfarça um pouco a forma rude da fala de Jesus (Mulher, por que dizes isto a mim?) Mas o texto grego, traduzido por São Jerônimo, é mais direto: Mulher, o que eu e tu temos com isso? (Quid mihi et tibi est, mulier?) E o dado mais curioso: Jesus não chama Maria de “mãe” e sim de “mulher”. Há dois momentos no evangelho em que Jesus se refere a Maria com a expressão “mulher”: nesse caso de Caná e na cruz, quando a confia aos cuidados de João. Exatamente no início e no final de sua vida de pregador. O simbolismo desse detalhe referido por João deve ser, provavelmente, para indicar que, nesse momento, Jesus estava falando como Filho de Deus, destacando a sua natureza divina, e não propriamente com o seu ser humano. E tanto Maria entendeu isso que não se intimidou com a forma aparentemente grosseira com a qual Jesus a ela se dirigiu e simplesmente disse aos empregados: façam tudo o que ele disser. Maria tinha consciência do seu papel e, sobretudo, tinha uma fé acima de qualquer adversidade. E também, nesse momento, ela deve ter sido instruída pelo Espírito Santo, para saber o momento de agir e a forma dessa ação. Não foi, com toda certeza, uma expressão casual e despropositada do evangelista João. Poder-se-ia até supor que seria uma questão de tradução, mas não foi isso, pois João escreveu o seu texto em grego e a palavra escrita é “gýnai”, que significa literalmente “mulher”.

E aqui podemos passar para a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 12, 4-11), na qual ele se reporta às diversas formas de atuação do Espírito. Há uma diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. Paulo captou e formulou, de forma profunda e acertada, a doutrina sobre os variados modos de agir do Espírito na comunidade cristã, todas elas em vista do bem comum. Uns têm o dom da sabedoria, outros têm o dom da ciência, outros têm o dom da fé; a uns, é dado o poder de fazer milagres, a outros, o poder de fazer curas; outros são capazes de falar línguas diversas, interpretar palavras, profetizar... tudo isso no mesmo Espírito. Esse texto de Paulo é largamente citado pelos grupos do moderno pentecostalismo, para fundamentar diversas tendências (carismas) religiosos. Há os que se permitem "falar" palavras incompreensíveis, caricaturando o "dom das línguas", como se fosse esse o sentido de falar "línguas estranhas". De fato, o termo "estranho" nesse contexto nada tem a ver com expressões desconexas e vazias de significado, mas tem o sentido de "línguas diversas" (em grego, géni glósson; em latim, genera linguarum). No meu entendimento, Paulo estava se referindo a um fenômeno similar ao ocorrido logo após Pentecostes, quando Pedro fez uma pregação em aramaico e os ouvintes, oriundos de regiões e falantes de linguagens diversas, ouviram o seu discurso, cada qual, como se Pedro estivesse falando em sua própria língua.

Outra expressão desse texto que é também objeto de compreensão imprópria é quando Paulo fala que o Espírito confere o poder da cura e de fazer milagres, o que poderia ser até uma redundância, porque curar (nesse sentido) já seria fazer um milagre. Contudo, examinando o texto original, verificamos que não é bem assim. As expressões são: karísmata iamáton (São Jerônimo traduziu por "gratia sanitatum", ou seja, o carisma medicinal) e energýmata dynámeon (traduzido por "operatio virtutum", ou seja, realização de maravilhas). Podemos dizer que as nossas rezadeiras do interior e os que administram medicamentos tirados de vegetais têm o carisma medicinal, porque não estudaram a técnica médica, no entanto, possuem a intuição da medicina. De modo semelhante, a ação humana organizada e bem intencionada também produz maravilhas. Há uma tendência comum de mistificar os dons do Espírito, porém penso que devemos procurá-los no nosso dia a dia, nas nossas atitudes rotineiras, nos nossos empreendimentos solidários, na força que é capaz de unir as pessoas em torno de uma causa comum. E mais: que ninguém se sinta desmerecido, porque não percebe em si esses dons extraordinários do Espírito, pois eles acontecem muitas vezes sem que os percebamos. E eu me arrisco a dizer que aqueles que se autoproclamam detentores desses carismas não passam de embusteiros. Desses, temos inúmeros exemplos.

O ensinamento de Paulo deve ser compreendido no sentido da onipresença do Espírito em tudo aquilo que realizamos com fé, com reta intenção, com o coração desapegado. Ninguém precisa sair do seu cotidiano para ser contemplado com essa assistência contínua e extraordinária do Espírito, porque ele faz morada dentro de nós, desde que recebemos os sacramentos da iniciação cristã. Podemos até não perceber a sua atuação, mas em tudo o Espírito se faz presente.

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domingo, 13 de janeiro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - BATISMO DO SENHOR - 13.01.2019

COMENTARIO LITURGICO – SOLENIDADE DO BATISMO DO SENHOR – 13.01.2019

Caros amigos,

O calendário litúrgico celebra hoje a festa do Batismo do Senhor. Esta cerimônia, realizada no rio Jordão, representa o início da vida missionária de Jesus. Igual a todos os bons judeus, Jesus sempre cumpriu os rituais próprios do judaísmo: comparecimento regular à sinagoga no sábado, jejuns, festa da páscoa, festa dos tabernáculos, a observância da lei mosaica. O batismo não fazia parte, propriamente, da Lei, mas passou a ser um ritual de transição entre a antiga lei e a lei nova, através da pregação de João, o último profeta do Antigo Testamento. João conclamava todos os judeus à metanóia (mudança de pensamento – conversão) e ao arrependimento, de modo que o símbolo da adesão a este movimento era o fato de alguém apresentar-se para receber o batismo. Sabemos que, na verdade, Jesus não precisava ser batizado, pois o batismo se destina ao perdão dos pecados, mas Ele quis cumprir todo o protocolo e foi nessa ocasião que, pela primeira vez, ocorreu a manifestação da Trindade divina.

O tema do batismo sempre despertou severas polêmicas entre a Igreja Católica e as demais igrejas cristãs, por diversas razões históricas, que todos conhecemos. Penso que as querelas mais significativas se concentram em dois pontos: 1. o batismo de crianças recém-nascidas, fato que não ocorria no início do cristianismo, tendo sido introduzida como prática muito tempo depois; 2. o ritual do batismo por mera aspersão (derramamento de pouca água na cabeça do batizando) e não por imersão (mergulho na água).

É fato que o batismo operado por João Batista era feito por imersão no rio Jordão. Porém a questão a ser debatida é saber se essa é a única forma de realizar o batismo. Para melhor esclarecimento do tema, iniciemos com uma análise gramatical do vocábulo “batizar”, derivado do verbo grego BAPTIZÔ, que significa mergulhar, submergir, mas também lavar. Por exemplo, na antiguidade, batizar era uma espécie de suplício, que consistia em mergulhar um condenado até ele morrer sem fôlego. Tinha, portanto, o sentido de imersão. Mas em Lucas (11, 38), no episódio em que os fariseus se admiraram porque os discípulos de Jesus não lavavam as mãos antes de comer, a frase latina é “quare non baptizatus esset” e a frase grega é “ou proton ebaptiste”, uso gramatical que indica o sentido do verbo “baptizô” como “lavar”. Para lavar as mãos, às vezes, as mergulhamos na água, mas muitas vezes apenas derramamos água sobre elas e assim o verbo “baptizô” não tem como significado único o de imergir. E podemos ainda levar em consideração o aspecto da praticidade. Como batizar por imersão uma pessoa que esteja enferma, sem correr o risco de piorar sua condição de saúde? E mesmo no caso de pessoas sadias, o ritual seria extremamente incômodo pela necessidade de ter de realizar o batismo nos rios, lagoas, açudes, etc., ou em tanques de água preparados dentro dos templos, o que (ao meu ver) desvirtua o sentido da imersão de acordo com o batismo de Jesus, que ocorreu numa fonte de água natural. Se é para seguir o ritual, então, que se o siga por completo.

Em relação ao aspecto doutrinário, o batismo por imersão era a prática dominante no Antigo Testamento e o próprio Jesus se submeteu a ela. Contudo, no Novo Testamento, há diversos relatos sobre o batismo que sugerem uma forma diferente da imersão, como por exemplo, em Atos 16, 33, quando Paulo batizou pessoas na prisão. Certamente ali não havia um local com água para imersão. O próprio batismo de Paulo por Ananias (Atos 9, 18), realizado na casa de Judas, não deve ter sido por imersão. Do mesmo modo, o episódio ocorrido após Pentecostes (Atos 2, 37-41), quando cerca de 3.000 pessoas foram batizadas após a pregação de Pedro, não deve ter sido por imersão. De qualquer modo, as duas formas (imersão e aspersão) eram conhecidas desde os tempos cristãos primitivos e ambas eram utilizadas circunstancialmente. Mas a oficialização do batismo infantil e por aspersão ocorreu após as disputas com Lutero (que não o aceitava), no século XVI. A Igreja adotou a forma de aspersão e as razões teológicas para justificar isso são duas fundamentais: 1. o fato de que a pessoa deve ser purificada do pecado (no caso da criança, o pecado original) o quanto antes possível, ou seja, logo após nascer, sem esperar a idade adulta; 2. embora a criança de pouca idade não saiba o que está ocorrendo, a Igreja age como mãe amorosa e faz isso por ser o melhor para o pequeno fiel, assim como toda mãe só quer o bem dos filhos, ficando com os pais e padrinhos a responsabilidade de ensinar a criança e conscientizá-la, quando tiver entendimento.

Devemos ainda considerar a hipótese da carência da água em quantidade suficiente para a imersão, como ocorre, por exemplo, em certas localidades nordestinas e em outros locais do mundo, onde a água é um bem escasso. Além disso, se as duas formas de realizar o ritual foram sempre aceitas na antiguidade (imersão ou aspersão), o simples fato de que o batismo de Jesus foi por imersão não deve ser adotado como padrão, de modo que a outra forma deva ser considerada inválida. Além do mais, eu diria que o modo de realizar o batismo, se por imersão ou por aspersão, não é isso que realmente importa, e sim a fé que deve motivar o fiel a receber o batismo. No caso de crianças pequenas, a fé é dos adultos que as levam a batizar e que se comprometem a catequizar o batizado na mesma fé que professam.

Atendo-nos agora às leituras litúrgicas de hoje, o evangelho de Mateus (3, 13-17) relata o batismo de Jesus por João, no rio Jordão. Evidentemente, Jesus não precisava ser batizado e o próprio João se recusou, conforme relata Mateus (13, 14): 'Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?' Porém, Jesus o persuadiu a fazer igual como fazia aos outros, e assim ele fez. Na verdade, Jesus pediu para ser batizado por João, diante da relutância deste. Com este ato, Jesus estava ensinando o valor do batismo e consagrando a sua importância para o cristão. Podemos concluir que Jesus batizou-se não para converter-se e purificar-se, porque já era totalmente puro, mas para purificar as águas do Jordão, e nestas, simbolicamente, abençoar todas as águas da terra, para conferir a elas o poder de nos purificar pelo batismo na fé da sua doutrina.

Além disso, o batismo de Jesus foi o primeiro momento em que se manifestou publicamente a Trindade divina, quando “o céu se abriu e Jesus viu o Espírito de Deus, descendo como pomba e vindo pousar sobre ele. E do céu veio uma voz... ” (Mt 13, 16), isto é, o início da missão pública de Jesus foi oficialmente homologado pelas três pessoas divinas. Obviamente, naquele momento, as pessoas que presenciaram o fato não compreenderam o que havia acontecido, mas posteriormente, após a ressurreição de Jesus, quando as comunidades dos primeiros fiéis fizeram a rememoração dos acontecimentos da Sua vida, de onde provêm os textos primitivos que deram origem aos evangelhos, puderam compreender o alcance dessa sublime manifestação trinitária.

Uma curiosidade que releva tratar aqui é que, do ponto de vista da fé, a data do batismo do cristão deveria ser comemorada assim como se comemoram as datas natalícias, porque essa data representa o nascimento para a comunidade eclesial. Com certeza, todos se recordam de que, desde quando recebíamos a batina no seminário, nós não comemorávamos mais o dia do aniversário, mas o dia do onomástico, isto é, o dia do santo padroeiro do seu nome, numa clara referência a um novo nascimento, que ocorria com a vestição religiosa. Essa mesma ideia bem que poderia ser adotada em relação à data do batismo. Porém, o que mais comumente ocorre é que a maioria dos cristãos não sabe ou não se recorda o dia do seu batismo, como se não atribuísse importância a essa data. As Paróquias mesmo não estimulam os fiéis a essa lembrança, no que fariam muito bem se assim procedessem.

Para finalizar, gostaria de ponderar que o batismo não deve ser um fato longínquo e esquecido na nossa caminhada existencial, mas um fato a ser testemunhado diuturnamente, na nossa vivência de cristãos, seja na família, seja no trabalho, nas relações familiares, nas amizades, na vida social em geral, através do nosso comportamento de pessoas engajadas e comprometidas com a fé assumida no batismo. Que o divino Espírito nos assista constantemente no exercício dessa missão.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - EPIFANIA DO SENHOR - 06.01.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – EPIFANIA DO SENHOR – 06.01.2019

Caros Leitores:

Neste domingo, celebra-se a festa litúrgica da Epifania do Senhor, palavra grega que significa “manifestação” e que comemora a visita que a família de Nazaré recebeu pelos Magos vindos do Oriente. A epifania designa também a universalidade da salvação trazida por Cristo, representada na presença das autoridades vindas de terras distantes, portanto, de fora do território judaico. O texto bíblico não informa a cidade de onde eles vieram, mas apenas que vieram de terras longínquas no oriente, guiados pela estrela. Também não afirma que eram reis, sendo essa designação creditada a tradições muito antigas. Alguns estudos associam a figura da estrela com o cometa de Halley ou talvez um outro astro errante no espaço sideral, contudo não há conclusões definitivas. Este fato é relatado apenas pelo evangelista Mateus, por isso há quem afirme que não é um acontecimento real, mas trata-se de uma história composta pelo evangelista, com o objetivo de enfatizar a profecia de Miquéias e demonstrar a origem familiar de Cristo no clã do rei Davi. Todas, porém, são opiniões sem as necessárias evidências.

O evangelho de Mateus fala em 'magos do Oriente', mas também não se deve entender esta palavra no sentido que ela tem hoje. Conforme registros históricos atribuídos a Heródoto, os magos seriam sacerdotes eruditos de uma religião que teria existido na região da Mesopotâmia, região terrestre que hoje corresponde ao Irã ou Iraque. Essa religião era, na verdade, uma forma arcaica da ciência astronômica e esses sacerdotes eram pessoas que estudavam os livros sagrados e costumavam observar os astros no céu, ou seja, eram uma espécie de antigos astrônomos. Com isso se explica o fato de que notaram uma “estrela” diferente e tentaram interpretá-la, com o conhecimento que eles tinham de antigas escrituras. Eles eram provavelmente sacerdotes do zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo e originária dessa mesma região. Bem, o modo como este fato aconteceu, assim como as motivações envolvidas, fazem parte do universo das controvérsias históricas, sendo mais amparado por antigas tradições do que por documentos escritos.

Sob o aspecto litúrgico, a festa da Epifania do Senhor, nas Igrejas católicas gregas, é também a celebração do Natal, pois eles não comemoram o natal em 25 de dezembro, como na Igreja católica romana. Aliás, este foi um dos motivos que levou ao cisma, em 1054, porque não houve acordo acerca desse e de outros pontos de discussão. Os orientais acusaram os europeus de terem-se rendido ao poder do imperador romano, que estabeleceu a data e a forçou autoritariamente os bispos ocidentais a aceitá-la. Com isso, nós concluímos que a festa da Epifania é mais antiga do que a celebração do Natal, como nós temos na Igreja romana; também concluímos que as Igrejas católicas orientais celebram em conjunto as duas festas: o Natal e a Epifania, porque na verdade, elas são uma festa só.

Com efeito, o termo grego “epiphania” é o substantivo derivado do verbo “epiphainow”, que significa aparecer, mostrar-se, apresentar-se. A epifania é a festa da manifestação do Salvador, e isso se deu efetivamente no Natal. Ao separar as datas, e portanto, a comemoração em duas festas, a Igreja romana celebra dois Natais: um em 25 de dezembro, o Natal – nascimento de Cristo e outro, nesta data, o Natal – manifestação de Cristo às nações do mundo, representados na pessoa dos “magos” orientais. O dirigente romano em Jerusalém, Herodes, também tinha no palácio um conselho de sacerdotes, adivinhos, magos, que além de chefes religiosos, eram também os cientistas daquele tempo, os que sabiam ler e estudavam os poucos documentos conhecidos. Foi a estes que Herodes recorreu para tentar entender aquela notícia que os magos orientais traziam, acerca do nascimento do rei dos Judeus.

A liturgia da Epifania procura integrar os textos do antigo e do novo testamentos, no caso, o livro de Isaías com o evangelho de Mateus. No livro de Isaías (na verdade, o deutero-Isaías), cap. 60, 1, o autor conclama Jerusalém a se alegrar, porque “sobre ti apareceu o Senhor e a sua glória se manifestou”. E diz mais adiante (60, 6): “será uma inundação de camelos e dromedários de Madiã e Efa a te cobrir; virão todos os de Sabá, trazendo ouro e incenso e proclamando a glória do Senhor. ” Por certo, a viagem dos “magos” era acompanhada de uma caravana de camelos e dromedários, pois pela liderança que eles deviam ter e por tratar-se de uma viagem de longa distância, deviam trazer grande séquito. Com grande certeza, eles não viajavam sozinhos, apenas os três conhecidos.

No evangelho de Mateus (2, 2), se concretiza o que foi dito pelo profeta Isaías: “eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.' ” Até o Salmista (71, 10), faz coro com essa proclamação, ao cantar: “Os reis de Társis e das ilhas hão de vir e oferecer-lhes seus presentes e seus dons; e também os reis de Seba e de Sabá hão de trazer-lhe oferendas e tributos. ” A escritura está permeada de passagens assemelhadas, nas quais essas referências se reproduzem. O evangelista, que conhecia, como bom judeu, a Lei e os Profetas, trata de integrar as profecias no seu texto, como forma de comprovar que Jesus é o Messias prometido, numa época em que muitos judeus teimavam e duvidavam em admitir isso. Embora os textos escritos e demais documentos históricos sejam escassos, verificamos que esta é a fé que se construiu desde os primeiros tempos do cristianismo, de modo que a sua credibilidade está no fato de ser uma tradição muitíssimo antiga.

A aliança original de Javé foi com os judeus, mas estes não reconheceram em Jesus o Salvador que veio confirmar a promessa, então diante da descrença deles, o evangelho foi pregado aos gentios, ou seja, àqueles que não descendem dos antigos patriarcas. A figura dos “magos” colocada nesse contexto do nascimento de Jesus faz parte do propósito do evangelho de mostrá-Lo como o Salvador de todas as nações, e não apenas do povo de Israel. Foi isso que Jesus ensinou aos discípulos, em diversas ocasiões, ao observar a indiferença e mesmo a hostilidade daqueles que deveriam recebê-lo como Salvador e por isso mandou que eles divulgassem a sua mensagem aos outros povos, porque a aliança proposta por Javé não se limitava a um punhado de israelitas. Mateus quer mostrar que, desde o seu nascimento, Jesus atraiu para si também os povos pagãos, representados pelos magos.

Esta universalidade da salvação trazida por Cristo é o tema da carta de Paulo aos Efésios (3, 2-6), onde ele retoma a ideia da recusa dos judeus e o anúncio do evangelho aos gentios: “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.” Sabemos, pelos estudos históricos, que foi nas colônias gregas do império romano onde o cristianismo começou a ganhar corpo como religião, foi lá onde se fundaram as primeiras comunidades e se ergueram as primeiras igrejas formalmente organizadas, aquelas que hoje nós chamamos de “Igrejas orientais”. Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Filipos, Éfeso, Galácia, Colossos, Esmirna, Tessalônica, Constantinopla, só bastante tempo depois, o cristianismo finalmente chegou a Roma e de lá espalhou-se pela Europa, vindo depois para a América, onde atualmente estão localizados os católicos em maior profusão no mundo todo. Sem deixar de mencionar o grande número de fiéis das diversas igrejas não católicas e ainda daqueles homens e mulheres de boa vontade que, mesmo sem professarem abertamente a fé cristã, no entanto, realizam em suas vidas o ensinamento de Cristo contido nos evangelhos. O Papa Francisco já proclamou, em diversas ocasiões, que também os ateus que seguem retamente a sua consciência estão no caminho da salvação, porque ao praticarem o autêntico humanismo, estão em sintonia com o pensamento cristão.

Curioso notar que nem Lucas nem Marcos se referem ao episódio da visita dos “magos”, deixando-nos a cogitar se eles não tinham conhecimento desses fatos ou se não consideraram suficientemente importantes para incluí-los nos seus textos. O mais provável, conforme explicam os exegetas, é que esta fonte era conhecida por Mateus e provavelmente não chegou ao conhecimento dos outros dois evangelistas. Uma prova disso seria que os evangelhos de Lucas e Marcos foram escritos na língua grega, portanto, na região das colônias gregas do império romano, enquanto o evangelho de Mateus foi escrito originalmente em aramaico, a mesma língua falada por Jesus, e só depois traduzido para o grego. Isso justificaria o fato de que, no local onde Marcos e Lucas moravam, essa tradição dos magos não era conhecida e, por isso, não foi mencionada por eles.

Mas independentemente dessas polêmicas históricas e literárias, o que nos interessa é destacar na epifania o símbolo da universalidade da mensagem cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou. A nossa fé é o maior testemunho dessa universalidade, pois é graças a isso que chegou até nós a mensagem da salvação.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - 23.12.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – PRIMEIRA TESTEMUNHA – 23.12.2015

Caros Leitores,

Aproxima-se o Natal e a liturgia deste quarto domingo do Advento nos lembra quem foi a primeira testemunha da próxima chegada do Salvador: foi Isabel, esposa de Zacarias, quem recebeu a primeira notícia da chegada do Messias, através da reação de menino João, eu seu ventre. A liturgia comemora a visita de Maria à sua prima Isabel, que morava nas montanhas, aonde ela foi apressadamente a fim de dar-lhe assistência nas primeiras semanas após o nascimento de João. A gravidez de Maria, então incipiente, era segredo apenas do casal, mas “o menino exultou de alegria” nas entranhas de Isabel e ela foi inspirada pelo Espírito Santo para reconhecer e interpretar aquele fato.

Antes de dar prosseguir no tema da visita de Maria, eu gostaria de ressaltar aqui a espetacular previsão do profeta Miqueias, com um grau de acerto de cem por cento, sobre o local onde nasceria o Messias: Belém de Judá. Miqueias era natural também do reino de Judá, morador na cidade de Mirasti, próxima de Belém e era contemporâneo do profeta Isaías, tendo vivido por volta de 700 anos antes de Cristo. Ele é um dos chamados 'profetas menores', porque o seu livro tem apenas sete capítulos, contudo, foi Miqueias o único dos profetas a afirmar que Belém seria o berço terreno do Messias. Observemos como se pode perceber o dedo de Javé conduzindo as ações humanas na história, para a realização de suas promessas a Abraão. Quando Miqueias profetizou a chegada do Messias em Belém, foi cerca de 700 anos antes de José e Maria se casarem. E eles não moravam em Belém, e sim em Nazaré. São Tomás de Aquino afirmava que Deus age por “causas segundas”, isto é, não de modo direto, mas servindo-se dos acontecimentos. No caso, o agente da vontade de Javé foi o governador da Síria, Quirino (Lc 2,2), que era pagão, determinando um recenseamento. Quando o rei Arquelau, da Síria, foi vencido pelos romanos, Quirino era o magistrado (governador) romano supremo na região do Oriente Médio, tendo ordenado o recenseamento dos habitantes do seu território, o qual, conforme estudos históricos, se deu entre os anos 8 e 6 a. C. Na Galileia, o governador era Herodes, mas o evangelista Lucas, se refere a Quirino porque Herodes era só o governador local, subordinado a Quirino, que era a autoridade romana máxima da região.

Por que essa referência a Herodes, que nem foi citado na leitura do evangelho? Porque este fato está associado com a visita dos magos do oriente, que chegaram ao palácio do rei Herodes perguntando onde estava o rei dos Judeus recém-nascido... para Herodes aquilo foi um choque, pois o rei era ele e não havia nascido nenhum filho dele. De todo modo, Herodes chamou os sacerdotes e adivinhos para saber do que se tratava, porque aquilo podia ser um sinal de alguma insurreição popular contra os romanos, talvez algum descendente real de uma tribo daquele povo. Logo, logo os sacerdotes lembraram da profecia de Miqueias: Belém, pequenina entre os mil povoados de Judá, de ti há de sair aquele que dominará em Israel, e então os magos foram orientados para irem até Belém. E depois Herodes mandou matar todos os recém-nascidos da região, por via de dúvidas, embora ele não acreditasse naquelas balelas de profecias. A narrativa do evangelista Lucas, que é como sempre recheada de detalhes históricos, nos ajuda a contextualizar os fatos e a fundamentar historicamente a época do nascimento de Cristo.

Na segunda leitura, da carta aos Hebreus, o autor sagrado desconhecido faz referência ao nascimento de Cristo, dizendo que Javé não se satisfazia com os holocaustos e oferendas de animais, sacrifícios imperfeitos que não expiavam os pecados da humanidade, por isso mandou seu próprio Filho para tornar-se a oferenda definitiva. Cristo, sacrificando-se de uma vez por todas, suprime e substitui todos os demais holocaustos e redime a humanidade. Ele veio para cumprir a promessa: “Eis que eu venho. No livro está escrito a meu respeito: Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade.' ” (Heb 10, 7) O “livro” onde isso está escrito não é outro senão “a Bíblia (biblos)”, ou simplesmente, “o livro” escrito pelos profetas. São vários os profetas, mas o livro é um só, porque todos os seus escritores colocaram ali um conteúdo que se integra e se correlaciona, daí que não interessam os nomes dos autores materiais, já que um só é o seu autor intelectual: Javé. (Apenas para esclarecer aos colegas, esta carta era antigamente atribuída a Paulo e se dizia “carta de São Paulo aos Hebreus”, mas estudos posteriores dos biblistas levaram à conclusão de que não foi Paulo o seu autor, e visto que não se sabe quem foi, diz-se apenas “carta aos Hebreus”.)

No evangelho de Lucas (Lc 1, 39-45), lemos o relato muito conhecido da visita de Maria a Isabel, que se tornou a primeira testemunha da gravidez divina de Maria, por inspiração do Espírito Santo. A narração de Lucas é bastante rica em detalhes e, ao longo da história, estimulou a imaginação dos artistas dos mais variados modos, motivando a produção de inúmeras obras de arte retratando o tema. E Lucas foi aquele agente escolhido, pela sua convivência com Maria após a morte de Cristo, tendo sido escolhido por Deus para recolher d'Ela os segredos mais reveladores da vinda de Cristo, que não teriam sido conhecidos pela humanidade se não fosse essa situação privilegiada de ser ele uma pessoa letrada e da total confiança de Maria. Por conta disso, o seu evangelho tem uma característica singular, no que diz respeito ao conhecimento da infância de Jesus e à vida pessoal de Maria.

Pois bem. Diz Lucas que Maria foi apressadamente à região das montanhas, para visitar sua prima Isabel, que estava nos dias próximos do parto. Maria também estava grávida, embora de pouco tempo, gravidez ainda não perceptível, portanto, a própria Isabel não tinha conhecimento disso. E como era costume (e ainda é em grande parte da região interiorana do Nordeste), as parentas próximas (mãe, irmãs, primas) vão prestar assistência à parturiente, no período pós-parto, denominado de “resguardo”. Tem aquela tradição que diz que Isabel mandou acender uma grande fogueira em frente da sua casa lá no alto, para que Maria e os parentes, que moravam no vale fossem avisados da proximidade do seu parto. Evidentemente não há embasamento bíblico para esse justificar tal procedimento, mas de qualquer modo, essa seria a origem das fogueiras juninas, que ainda hoje anunciam São João.

Ao se encontrarem, Isabel fez aquele célebre discurso teológico, que se tornou o tema da oração mais tipicamente mariana: ave, cheia de graça, bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Com certeza, Lucas relata esses detalhes para destacar o reconhecimento da divindade de Cristo, mesmo antes do seu nascimento. Isabel, como as mulheres judias daquele tempo, não era uma pessoa letrada, mas devia frequentar a sinagoga, como todos os judeus, e certamente sabia das promessas de Deus através dos profetas, pela explicação dos rabinos, acerca da vinda do Salvador. Muito provavelmente, o discurso teológico de Isabel foi recomposto por Lucas, a partir de sucintas narrações feitas por Maria, que na sua humildade e tendo sido ela e Isabel as únicas pessoas a testemunharem o evento, não iria fazer para si mesma um cântico de exaltação. Diz Lucas que Isabel ficou cheia do Espírito Santo quando Maria chegou e sentiu o bebê mover-se de modo diferente no seu ventre, o que a levou a proferir essas palavras inspiradas sobre a gravidez da prima. Na tradição teológica, diz-se que a primeira manifestação do Espírito Santo ocorreu no batismo de Cristo, quando ele já era adulto, juntamente com a “voz” do Pai, ou seja, a primeira manifestação da trindade divina. Mas podemos dizer que foi, de fato, Isabel a primeira pessoa que sentiu a inspiração do Espírito Santo com a presença de Maria, ao mesmo tempo em que isso indica a missão especial que deveria ter o filho dela, Isabel, na preparação do povo judeu para o reconhecimento do Cristo Messias.

Por fim, é importante destacar que a celebração da festa do Natal em 25 de dezembro não corresponde aos fatos históricos narrados por Lucas. Provavelmente, o nascimento de Jesus ocorreu no mês de março, isso também não ficou registrado. No entanto, foi uma imposição de Constantino a data de 25 de dezembro para a celebração do Natal, sacralizando a festa pagã do deus saturno (saturnalia), que acontecia tradicionalmente em Roma nesta época da passagem do solstício de inverno, entre os dias 17 e 23 de dezembro, festas acompanhadas de lautos banquetes e distribuição de presentes. Independentemente disso, porém, para nós cristãos, o que interessa é o nascimento de Cristo, que aconteceu uma vez na história, mas que se repete constantemente em nossos corações, quando renovamos nosso compromisso de viver segundo o evangelho.

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