sábado, 26 de janeiro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM - 27.01.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM – 27.01.2019 – AUTOPROCLAMAÇÃO

Caros Leitores,

A liturgia deste 3º domingo comum traz um dos textos mais significativos para o reconhecimento de Jesus Cristo como Filho de Deus. Em sua costumeira modéstia e sempre falando por metáforas ou parábolas, raras vezes Jesus se referiu diretamente à sua pessoa como sendo aquele que as escrituras anunciaram. Ao concluir a leitura do texto de Isaías (61, 1), ele complementou: hoje se cumpriu isso que acabastes de ouvir. Mas ele estava na sinagoga de Nazaré, sua cidade natal, e ali todos o conheciam, assim como conheciam seus pais e familiares, então ninguém levou a sério o que ele falou e a sua autoproclamação não surtiu efeito, apesar de outras evidências que ele já apresentara.

Mas a primeira leitura, extraída do livro de Neemias (8, 2-10), contém também um texto interessante que relata uma atividade do sacerdote e escriba Esdras lendo e explicando ao povo a Lei (Torah), em linguagem acessível, de modo que todos ficaram atentos desde o amanhecer até o meio dia e alguns até se emocionaram, chegando às lágrimas. Se observarmos o contexto histórico, iremos compreender melhor o motivo de tanta emoção: Neemias foi um governante que trabalhou na reconstrução das muralhas de Jerusalém, após o retorno dos hebreus do exílio da Babilônia. Naquela época, poder ouvir a leitura da Torah em Jerusalém era, para os hebreus recém-retornados do exílio, a realização de um sonho que eles acalentaram durante muito tempo e esperaram muito ansiosamente por ele. Voltar a Jerusalém já era, por si só, uma emoção muito forte e poder celebrar seus cerimoniais na cidade reconstruída era algo ainda mais emocionante. Daí porque tanto o governador Neemias quanto o sacerdote Esdras falavam ao povo: “não fiqueis tristes nem choreis”, porque todo o povo chorava ao ouvir a leitura. E o governador instruiu o povo a banquetear-se naquele dia, porque aquela era uma ocasião abençoada: “'Ide para vossas casas e comei carnes gordas, tomai bebidas doces
e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor
'.” (8, 10) Um detalhe curioso que chama a atenção nesse texto é que, costumeiramente, os hebreus realizavam suas cerimônias religiosas ao entardecer (por do sol), mas neste caso específico, o ato se deu na parte da manhã (do amanhecer até o meio dia), sugerindo que se tratava de uma celebração não rotineira, em horário não habitual, para comemorar a reconstrução do muro. Na sequência desse texto, diz o escritor sagrado que o povo ergueu cabanas na praça, de acordo com a tradição mais antiga dos hebreus, e habitaram nelas por sete dias, dando origem a uma festa ainda hoje celebrada (festa dos tabernáculos), uma das três mais importantes da religião judaica.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (ICor 12, 12-30), o Apóstolo apresenta outra versão da sua doutrina sobre os modos de agir do Espírito Santo, desta vez através da imagem do corpo na sua relação com os membros (o corpo místico). “Vós, todos juntos, sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros desse corpo. ” (12,27) A dialética do corpo e dos membros aponta para a diversidade dos dons com os quais são dotadas as pessoas da comunidade, o que as torna diferentes umas das outras, no entanto, essas diferenças não isolam as pessoas, mas as complementam. E cada uma delas vai agir de acordo com o que o Espírito a inspira: “De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito. ” (12, 13) O texto evidencia o grande problema que Paulo enfrentava naquela ocasião, a conhecida questão dos judaizantes. A isso se juntava a questão econômica, porque havia ricos e pobres entre os convertidos. Então, ele explica que, assim como há diferenças de etnias ou de classes sociais na sociedade civil, também na comunidade cristã nem todos são iguais, pois há diferentes ministérios: “em primeiro lugar, os apóstolos; em segundo lugar, os profetas; em terceiro lugar, os que têm o dom e a missão de ensinar; depois, outras pessoas com dons diversos, a saber: dom de milagres, dom de curas, dom para obras de misericórdia, dom de governo e direção, dom de línguas.” (12, 28) Essas diferenças, porém, não devem causar dissensões dentro da comunidade, porque todas elas são formas variadas de ação do mesmo Espírito. E assim como, no corpo, não há membros mais honrosos ou decentes do que outros, pois todos detém igual importância e honorabilidade, assim também entre os fiéis não deve haver inveja, porque uns têm o dom da profecia, enquanto outros tem o dom para o governo e a direção. Com efeito, não poderiam ser todos apóstolos, todos profetas, todos dirigentes, todos intérpretes, então essa diversidade é que produz a riqueza e a complementaridade recíproca, do mesmo modo como os órgãos corporais formam sistemas e se harmonizam. Podemos ver, nessa visão pedagógica paulina, que ele antecipou em vários séculos a teoria dos sistemas, que só surgiu cientificamente no século XIX. Nessa visão teológica de Paulo, o Espírito é o ponto de referência comum, para o qual todos os “sistemas” particulares convergem.

O texto litúrgico escolhido para a leitura do evangelho é da autoria de Lucas e contém duas notas bastante significativas para a nossa informação. Primeiro, no prólogo, ele afirma que “muitas pessoas” já escreveram sobre os acontecimentos que se realizaram entre nós, relatados por aqueles que foram testemunhas oculares, por isso também ele, Lucas, após meditar bastante, decidiu escrever a sua versão. Esse comentário traz, nas entrelinhas, a informação de que havia numerosos escritos acerca de Jesus, de seus ensinamentos, de seus feitos miraculosos, os quais teriam sido resumidos ou compilados nos evangelhos oficiais que hoje temos. Não foram apenas os evangelistas a escrever. Lucas diz que resolveu escrever “de modo ordenado”, deixando-nos entender que os outros textos eram dispersos, ou talvez eram textos diversos contendo as mais diferentes histórias e testemunhos. Daí dizer-se que os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas são “sinóticos”, ou seja, reuniões de textos diversos reescritos e adaptados por eles. Cada evangelista utilizou esses textos e acrescentou suas próprias notas ou comentários. No caso de Lucas, sabe-se que ele incluiu muitas informações colhidas de sua convivência com Maria, que não haviam sido escritas por ninguém, mas ele as tinha em primeira mão.

Em seguida, o texto da leitura dá um salto para o capítulo 4, relatando a ida de Jesus à sinagoga de sua cidade natal, Nazaré, num dia de sábado, para o culto regular. A essas alturas, Jesus já era famoso, o milagre das bodas de Caná havia sido bastante comentado e Jesus já havia pregado nas sinagoras de outras cidades da Galileia, causando admiração. Mas ali estava ele em Nazaré, sua terra natal, onde as pessoas conheciam a sua origem, seus pais e familiares, todos sabiam que ele não era um escriba ou um levita, muito menos um mestre da Lei. Mas a sua fama já era conhecida e ele se apresentou para fazer a leitura, provavelmente, ele pediu o livro de Isaías, pois sabemos, através de outras passagens, que esse era o Profeta preferido dele. Jesus escolheu deliberadamente o cap. 61, onde diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Nova aos pobres.” Jesus conhecia o texto, ele não abriu casualmente nessa passagem, ele fez de propósito, ele queria dizer aos presentes quem ele realmente era. Diz o escritor sagrado que, após ter lido, ele se sentou e todos ficaram olhando para ele. Então, ele se declarou abertamente: o Profeta estava falando sobre mim.

O texto litúrgico pára por aqui, mas o discurso de Jesus não se encerrou com isso. Aquelas pessoas tinham ouvido falar dos milagres que ele havia feito em outras cidades e, certamente, esperavam que ele fizesse ali uma “demonstração”, um milagresinho, quem sabe, até pediram isso, porque as palavras posteriores de Jesus foram muito ríspidas com os presentes, a ponto de eles o expulsarem da cidade e o levarem até uma montanha, de onde iriam precipitá-lo, de tão irritados que ficaram. Foi nessa ocasião que Jesus disse: nenhum profeta é bem recebido na sua terra. Aqueles conterrâneos de Jesus, certamente, o provocaram, talvez prevalecendo-se do fato de serem “velhos conhecidos”, tentando receber dele um tratamento privilegiado. Porém, ele quis demonstrar que a sua missão se dirigia a todos sem distinção e, sobretudo, aos mais necessitados, tal como predissera o Profeta. Se trouxermos esse fato para os dias de hoje, podemos observar que algumas pessoas tentam se utilizar da religião para lograr proveito pessoal, promoção social, ações interesseiras. Jesus está ensinando que a fé não se presta para isso, está acima de tudo isso. Não é pelo número de missas assistidas ou pela quantidade de terços rezados que alguém deverá se considerar mais merecedor do que outrem que não frequenta a missa nem reza o terço. Deus valida o que vai no íntimo de cada um, não aquilo que transparece externamente, muitas vezes sem a necessária convicção.

Que o Divino Mestre nos afaste de praticar uma religião de fachada e nos inspire a prática da fé verdadeira e coerente.


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