domingo, 14 de julho de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 7º DOMINGO COMUM - 24.02.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 7º DOMINGO COMUM – O AMOR COMO DESAFIO – 24.02.2019

Caros Leitores,

Neste 7º domingo comum, as leituras litúrgicas dão sequência ao tema do domingo anterior, acerca das bem-aventuranças, o famoso “sermão da montanha”, que resume em grandes linhas todo o ensinamento de Jesus Cristo. No domingo de hoje, é como se ele concluísse: vocês ouviram o que eu disse? Eu ouçam mais: é preciso amar o próximo e também os inimigos. Amar os amigos e fazer o bem a quem lhe faz bem, isso não é grande coisa, os pagãos também fazem assim. Para fazer diferente, o cristão deve amar os inimigos e fazer o bem aos que lhe fazem o mal. É este o grande desafio do amor cristão.

Na primeira leitura, do livro do Samuel (1Sam 26, 2-22), é narrada a atitude respeitosa e temente a Deus de Davi, que poupou a vida de Saul, na ocasião inimigo dele, quando poderia tê-lo executado. Para entendermos a situação, vejamos a história. Saul era rei de Israel mas, por sua soberba e arrogância, desrespeito a lei de Moisés e, por isso, Javeh o rejeitou, determinando ao sacerdote Samuel que ungisse a Davi como novo rei. De início, Saul tinha um comportamento amistoso com Davi, apesar de não haver gostado nada de ter sido rejeitado, chegou até a entregar a filha como esposa de Davi. Porém, os sucessos de Davi nos combates contra os inimigos de Israel causaram inveja em Saul, que passou a perseguir Davi, procurando matá-lo. Por causa disso, Davi precisou refugiar-se no deserto com seus soldados, enquanto Saul o perseguia. Certa noite (aqui entra o trecho da leitura de hoje), Davi surpreendeu Saul dormindo no seu acampamento e poderia tê-lo atravessado com a própria lança real. O guerreiro companheiro de Davi (vers. 8) chegou a dizer: vou dar só um golpe, nem será preciso repetir. Mas Davi o deteve, dizendo: “ninguém pode lançar a mão contra o ungido do Senhor”. E foram embora sem molestá-lo. Ora, numa situação inversa, com certeza Saul teria liquidado Davi. Mas este respeitou o inimigo, vendo nele o “ungido”. Mil anos antes de Cristo, época de Davi, ele já estava realizando aquilo que Jesus futuramente iria ensinar.

Na sequência também da primeira carta aos Coríntios, lida no domingo passado (1Cor 15, 45-49), o apóstolo Paulo continua o paralelo entre Adão e Jesus, dizendo que Adão era um homem material, ou seja, proveniente do limo da terra, enquanto Jesus é um homem espiritual, ou seja, proveniente diretamente do céu. Assim ele diz no versículo 48: “Como foi o homem terrestre, assim também são as pessoas terrestres; e como é o homem celeste, assim também vão ser as pessoas celestes.” A figura de Adão representa o homem velho, aquele que ainda não conheceu a mensagem cristã. Paulo lembra aos cristãos de Corinto que, antes da adesão ao cristianismo, eles também estavam prefigurados na pessoa de Adão, com todas as imperfeições e ambiguidades dos “homens terrestres”, seduzidos pelos bens materiais, pela riqueza, pelos prazeres da carne. Mas, depois de convertidos e depois da adesão à mensagem cristã, esse homem terrestre deve ser transmudado no “homem celeste”, cujo protótipo é a figura de Jesus Cristo. E o que vai se tornar a marca característica desse novo homem, fiel ao ensinamento de Cristo, é a colocação na prática das bem-aventuranças, de acordo com o catálogo de ações de beatitudes ensinadas no sermão da montanha. Essa mesma advertência Paulo faz também na carta aos Efésios (5, 8), nos seguintes termos: “Pois, no passado éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Assim, andai como filhos da luz.”

A leitura do evangelho é também uma continuação da temática do domingo passado, em que Lucas resumiu o sermão das bem-aventuranças (Lc 6, 27-38). Depois de dizer “ai de vós, que agora estás rindo, porque ireis chorar”, Jesus arremata: e a vocês que ouviram o que eu disse, vou dizer mais: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam.” Eu fico imaginando a expressão nos rostos daqueles ouvintes, depois que Jesus fez esse arremate, como se dissessem: tu estás achando pouco, ainda vais exigir mais? E Jesus, percebendo a cara de espanto deles, complementa: é isso mesmo, se alguém te der um tapa num lado do rosto, oferece também o outro lado; e se alguém te tomar o chapéu, dá também o teu sapato. Se fazes o bem somente a quem também te faz o bem, que novidade há nisso? Os pecadores também fazem assim. Os cristãos devem fazer o bem a quem não lhes faz e dar um objeto sem esperar nada em troca, aqui está a diferença, aqui está o que eu denominei no início de “amor como desafio”.

Esse tipo de atitude parece, para as pessoas do mundo, como algo incoerente, ingênuo, contraditório. Alguém pode pensar: como é que Jesus exige isso dos seus seguidores? Aqui podemos inserir a lição de Paulo aos Coríntios, mencionada acima, com o paralelo entre o homem terrestre e o homem celeste. Se não somos capazes de entender esse pedido de Cristo, é porque ainda estamos impregnados com o pensamento do homem terrestre, a graça de Deus ainda não operou em nós o suficiente para superarmos essa atitude mundana de sempre esperar a retribuição por aquilo que fazemos. Para fazer isso, será necessário antes entender o conteúdo metafísico do ensinamento de Jesus, isto é, a questão não se refere a fazer-se de otário diante dos outros, tornar-se motivo de chacota e padecer humilhações. Jesus seria extremamente malvado se esperasse mesmo essa atitude, por isso, é preciso apreender a sua simbologia. E aqui, para exemplificar, podemos lembrar das atitudes de Mahatma Gandhi, que não era cristão, no entanto, cumpria esse ensinamento de Cristo. Enquanto todos protestavam com armas, ele protestava com uma conduta não-violenta, pregando a cultura da paz. Podemos lembrar também uma famosa frase do britânico John Lennon, conhecido guitarrista da banda Beatles, que escreveu, certa vez: “Não importam os motivos para a guerra, pois a paz será sempre superior a todos eles”. E ele não era cristão. Lamentavelmente, ele morreu assassinado por um fanático (assim como, sem querer comparar, também Gandhi e também Jesus morreram assassinados, porque o bem incomoda demais a maldade), mas os ensinamentos deles continuam a ecoar nos nossos ouvidos. Esses dois exemplos de “pessoas celestes” (usando a terminologia de Paulo), mesmo sem serem cristãos, devem nos incentivar a por em prática o ensinamento de Jesus, até porque, no nosso caso, ainda temos a vantagem de ter conosco a graça de Deus, que nos apóia e fortalece.

Em resumo, portanto, o ensinamento de Jesus sobre o amor como desafio não pode ser entendido como uma ideia de fraqueza, de acovardamento, como se o cristão devesse ter medo dos maus, não reagir aos maus, não enfrentar o malvado. Penso que, quando Cristo aconselhou “oferecer a outra face” para quem te bate no rosto, ele quis dizer: os maus agem de forma agressiva, vocês, porém, não devem tomar esse comportamento como exemplo, façam diferente deles, não por medo, mas por convicção, isto é, não se equiparem aos maus, não repitam suas ações, não se comportem como eles. Esse deve ser, segundo penso, o significado metafórico da recomendação de Cristo sobre “oferecer a outra face”. Se você revidar a um bofete, você estará repetindo o mau exemplo dado por quem lhe ofendeu. Então, não retribua a violência com violência, mas com o amor, isto é amar sem medida, esse é o amor como desafio: amar os amigos e os inimigos, fazer o bem a quem faz o mal. O escritor James C. Hunter, no conhecido livro “O monge e o executivo”, faz uma interpretação interessante desse ensinamento de Cristo. Diz ele que na frase “amar os inimigos”, o significado do verbo “amar” é diferente da frase “amar os amigos”. Explicando melhor, seria assim: em relação aos amigos, amar tem o sentido de sentimento, afeto; em relação aos inimigos, amar tem um sentido puramente comportamental, ético. Então, a frase “amar os inimigos” quer dizer comportar-se de um modo ético mesmo com aquelas pessoas que fizeram algum mal a você, isto é, não exercitar a vingança, não ficar esperando uma ocasião futura para ir à desforra. Amar os inimigos significaria, dessarte, ser ético com todos, tratar as pessoas más da mesma forma como se deve tratar qualquer pessoa, com ética e dignidade, mesmo que intimamente a sua vontade seja de esganar o adversário.

Se passarmos para uma análise do texto grego de Lucas, veremos que o J. Hunter tem certa razão. No texto grego, o verbo que está traduzido por “amai” é “agapate”, verbo com o mesmo radical da palavra “ágape”. Quando eu estudei antropologia teológica, aprendi que os gregos conheciam três significados para o verbo “amar”: 1 – amor erótico (eros); 2 – amor amizade (filia); 3 – amor fraternidade (agape). Esse terceiro sentido se refere à convivência humana, ao modo respeitoso como as pessoas devem tratar umas às outras, independente de quem seja. Então, seguindo o raciocínio de J. Hunter, podemos concluir que a ordem de amar os amigos tem o sentido 2 (amizade), enquanto amar os inimigos tem o sentido 3 (fraternidade, caridade). Eu continuo pensando que a doutrina de Cristo não faz essa distinção, no entanto, pode ser uma forma de atenuar o rigor do desafio que Cristo nos deixou e, assim fazendo, quem sabe, aos poucos chegaremos a encarar o desafio de forma completa. Que o divino Mestre nos socorra com engenho e arte, para conseguirmos colocar em prática os seus ensinamentos.

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