sábado, 26 de dezembro de 2020

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA - 27.12.2020

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 27.12.2020


Caros amigos,


No domingo do que medeia entre o Natal e o Ano Novo, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré, apresentando-a para as famílias cristãs como o modelo e o exemplo da família, encerrando o ano civil com um incentivo à reflexão sobre a situação das nossas famílias, local onde a humanidade se perpetua, não apenas no aspecto biológico, mas e principalmente, no aspecto cultural, social, valorativo, religioso, ético, atingindo a personalidade inteira das pessoas. Não é por outro motivo que vivemos em num mundo repleto de desajustes em todos os sentidos, ou seja, a falta de estrutura e segurança no ambiente familiar produz adultos insatisfeitos, imaturos, violentos, egoístas e despreparados para a vida, contribuindo para a desigualdade e para a insegurança da sociedade.


Desde o final do século XX, a organização familiar passa por um período de turbulência conceitual nunca antes verificado. Com efeito, o modelo familiar tradicional, constituído por um homem, uma mulher e seus filhos, está agora competindo com outras modalidades familiares que não existiam no passado, quais sejam, as famílias resultantes de uniões homoafetivas, com filhos adotados, e ainda as famílias monoparentais: pai e filhos de diferentes mães, mãe e filhos de diferentes pais. A religião católica tem bravamente resistido a essas mudanças, que são consequências diretas da maior assimilação dos comportamentos sexuais alternativos na nossa sociedade, os quais se tornam cada vez mais frequentes e gozam de reconhecimento jurídico pelo Estado. Não pretendo fazer aqui um juízo de valor sobre o tema, deixo isso para a consideração de cada um. A análise que faço é apenas para destacar que a instituição social mais antiga que se conhece, que é a família tradicional, vem passando por uma transformação substancial, com reflexos dentro e fora da religião, como consequência de adaptações legislativas realizadas pelos órgãos governamentais.


Voltando ao tema inicial, a liturgia deste domingo coloca a família de Nazaré como o modelo a ser seguido da família perfeita, até mesmo com as eventuais vicissitudes que ocorrem em todos os grupos familiares: por exemplo, o 'pito' que Maria deu no menino Jesus, depois da estressante procura por Ele, na ocasião do retorno de Jerusalém, depois da Páscoa. Um puxão de orelhas educativo (agora proibido pela lei dos castigos corporais) nunca fez mal a ninguém, desde os tempos bíblicos.


Na primeira leitura, temos um trecho do livro do Eclesiástico (Eclo, 3, 3-17), livro este também conhecido como Ben Sirac ou Sirácide, em alusão ao seu escritor. Este era um judeu chamado Jesus Ben Sirac, que escreveu uma meditação sobre a felicidade, partindo da sabedoria tradicional do povo hebreu, numa época em que a cultura grega se espalhava entre os judeus. O autor quis reforçar os valores hebraicos tradicionais, que não devem ser substituídos pela cultura alienígena, detalhando-os para ensinamento dos mais jovens. Este livro não fazia parte da antiga bíblia judaica, sendo por isso considerado deuterocanônico. Ele foi incluído no cânon da Bíblia Católica após muitas discussões sobre a pertinência disso, porque nem todos os Padres da Igreja antiga assim o consideravam. Foi um dos motivos do protesto de Lutero, que não concordava com a sua inclusão na Bíblia, por isso, esse livro não consta na bíblia protestante..


Dentro do tema geral do livro, que trata da felicidade, a leitura escolhida pela liturgia traz conselhos aos filhos sobre o respeito aos pais, que tem a aprovação e a bênção de Javé. O cuidado dos filhos com os pais idosos, mesmo quando já estão sem lucidez, além de ser uma obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação, para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé. O conteúdo do texto se aplica perfeitamente na nossa sociedade, como aliás se aplicou em todas as épocas, porque a relação pais e filhos foi sempre um dos pontos fundamentais de sustentação da sociedade e as admoestações da sabedoria antiga são, podemos dizer, perenes e supra culturais.


A segunda leitura, de Paulo aps Colossenses (Cl 3, 12-21), exorta os membros daquela comunidade ao exercício da caridade, da tolerância e do amor fraterno, como regra básica para a harmonia que deve marcar a vivência dos cristãos. Paulo escreveu esta carta quando estava na prisão em Roma e soube de algumas desavenças que ocorriam entre os cristãos de Colossos. Conclama as esposas a serem solícitas com os maridos e estes a amarem as esposas e não ser grosseiros com elas. Depois, admoesta os filhos para obedecerem aos pais, até parece que Paulo procura complementar ou atualizar a leitura do Sirácide, texto que ele devia muito bem conhecer.


No evangelho de Lucas (Lc 2, 22-40), temos mais um daqueles detalhes da vida de Jesus que somente este evangelista veio a saber, por conta da sua convivência cotidiana com Maria. Inicia Lucas dando amostras da fidelidade da família de Nazaré ao cumprimento da Lei de Moisés, afirmando que após o período do puerpério, José e Maria foram até Jerusalém, a fim de consagrar o seu filho primogênito a Javé, conforme prescrevia a lei. Ofereceram um casal de pombos, conforme o ritual previsto para as famílias pobres, tudo de acordo com as normas judaicas. O inesperado para José e Maria foi o encontro com Simeão, profeta, e Ana, profetiza, que vieram até eles e fizeram revelações surpreendentes acerca do futuro do Menino e de sua família. Simeão havia recebido de Javé a promessa de que não morreria antes de ver o Messias e, naquele momento, ali estava ele com o Messias nos braços. Talvez, para Maria as revelações não foram assim tão surpreendentes, porque ela já tinha ouvido algo similar da parte do anjo Gabriel, na anunciação. Mas, provavelmente, José teria sido o mais impactado com aquelas profecias, pois não se sabe se Maria havia revelado a ele as palavras do anjo, então era a primeira vez que ele ouvia tais comentários. Pela forma como narra o Evangelista, o casal ouviu aquelas palavras amargas com tranquilidade e fé, conscientes de sua missão.


Convém destacar, nesse contexto, um detalhe que pode passar despercebido ao leitor. José e Maria moravam em Nazaré e viajaram até Jerusalém, a fim de apresentar o Menino no templo. Maria havia terminado o “resguardo” e o Menino estava com cerca de quarenta dias de nascido. A distância entre Nazaré e Jerusalém é de aproximadamente 150 km e essa viagem era feita a pé. Certamente, Maria foi no lombo de um jumento, conforme é comum se ver nas gravuras que representam os eventos bíblicos. Mas José, com certeza, fez o percurso todo a pé. Uma viagem nessas condições deveria demorar talvez um cinco dias, considerando as condições físicas de Maria e as necessidades biológicas de um recém-nascido. Outras vezes, José e Maria foram a Jerusalém para a festa da Páscoa, inclusive naquele ano específico em que o Menino Jesus desgarrou-se do grupo e ficou sozinho na cidade, episódio bastante conhecido por todos. Mas era sempre uma viagem cansativa e demorada, realizada sob o impulso da fé e da obediência à lei mosaica.


Eu fico aqui imaginando também a cena de Maria contando essas histórias para Lucas. Com certeza, foi um grande exercício de paciência deste, porque penso que somente a muito custo Maria concordava em revelar certos detalhes. O próprio Lucas escreveu que Maria “guardava todas essas coisas no silêncio do seu coração”. Pode-se supor que ele ia completando conversas esparsas e incompletas com o conhecimento que ele tinha da personalidade de Maria, para compor o seu texto tão precioso em detalhes sobre a infância de Jesus.


Este e outros episódios da infância de Jesus, narrada pelo evangelista Lucas, são apreciados pelos estudiosos dos textos bíblicos, porque revelam a intimidade da Família de Nazaré e demonstram que a rotina de José, Maria e Jesus era similar à de todas as famílias, com as vicissitudes próprias da vida cotidiana, porque Jesus quis ter uma família igual a todos nós, sem se prevalecer de sua condição e natureza divinas. Esse exemplo de fidelidade ao projeto de Deus e de harmonia familiar é o grande legado que devemos aprender da Sagrada Família de Nazaré, o qual deve ser assimilado também pelos modelos familiares alternativos, para que sempre se orientem no sentido dos verdadeiros ensinamentos cristãos.


Cordial abraço a todos. Efusivos votos de Feliz Ano Novo.

Antonio Carlos

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

ENCARNAÇÃO DE JESUS - FESTA DO NATAL DO SENHOR - 25.12.2020

 

ENCARNAÇÃO


O evangelho de João lido nesse dia de Natal inicia assim (Jo 1, 1): “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.” Esta é a tradução oficial em português. No texto latino, temos: no princípio era o Verbo... no texto grego, temos: no princípio era o Lógos. Com o intuito de tornar o texto bíblico mais popular, sem perda do caráter teológico, a tradução oficial é a Palavra.


Nesta pequena frase, João faz afirmações marcantes da doutrina teológica, que já se desenvolvera naquela época. De trás para frente, temos: a Palavra (o Verbo) é Deus, isto é, Cristo não é apenas um profeta, é mais do que um profeta, é o próprio Deus. A Palavra (o Verbo) estava com Deus, isto é, antes de se humanizar, a Palavra estava unida a Deus, a Palavra se fundia com Deus. Isso aconteceu desde o princípio, pois no princípio de tudo, a Palavra (o Verbo) já existia, isto é, a Palavra (o Verbo) não começou a existir apenas agora que se humanizou, mas já existia desde sempre. E no versículo 14, logo adiante, está a tradicional e conhecidíssima verdade: E a Palavra (o Verbo) se fez carne e habitou entre nós. E no versículo 11: a Palavra (o Verbo) veio para o que era seu, mas os seus não a reconheceram. Aqui é que entra a ligação direta do evangelho de João com a carta aos Hebreus: Jesus é a Palavra do Pai, não reconhecida pelos judeus.


Todo esse hino sobre a Palavra tem seu ponto central na frase: “o Verbo se fez carne” (encarnação). A Palavra de Deus veio habitar no mundo e se tornou um de nós. É interessante compreendermos a expressão grega, na qual o evangelho de João foi originalmente escrito. Diz assim: kai ó Lógos sarx egéneto. Só uma explicação vocabular rápida: Kai=preposição “e”; ó Lógos = o Verbo, a Palavra; Egéneto = forma passiva do verbo “gennaw” (gerar, produzir); Sarx é aqui o vocábulo chave. Traduz-se literalmente por “carne”, vindo daí o substantivo “encarnação”. Mas “carne” significa no grego bem mais do que este vocábulo da língua portuguesa. Em grego, existe a palavra “soma”, que significa “corpo”, porém, João preferiu usar a palavra “sarx” e isso tem um sentido teológico especial. Corpo é um nome mais genérico, que se aplica a inúmeros objetos, sendo sinônimo de matéria em geral. Todo ente material é corpóreo. Porém quando nos referimos a corpo vivo, colocamos carne em oposição aos ossos, portanto, num sentido bem limitado.


Na língua grega, “sarx” significa o corpo inteiro feito de carne e osso, o corpo dos seres vivos, o corpo humano quando se refere às pessoas. Num sentido figurado, “sarx” significa “natureza humana”. Portanto, dizer que o Verbo tornou-se “sarx” quer dizer que a Palavra tornou-se gente, transformou-se em ser humano, encarnou-se, humanizou-se. Desse modo, quando a Bíblia se refere a “toda a carne” isso quer dizer todas as pessoas, as pessoas inteiras, não apenas os músculos, que constituem a parte carnal literalmente falando. O Credo fala na “ressurreição da carne”, não é na ressurreição dos corpos. Pode parecer uma distinção insignificante ou meramente retórica, mas não é. A ressurreição da carne significa a ressurreição da pessoa inteira, porém, não da sua materialidade.


Daí porque a teologia católica não aceita a doutrina da “reencarnação”, porque ela confunde os conceitos de “soma” (corpo) e “sarx” (carne). Por isso, reencarnar não é sinônimo de ressuscitar, porque reencarnação equivale a reunir-se novamente o corpo com o espírito e não é esse o sentido do mistério da encarnação. A expressão “o Verbo se fez carne” deve ser entendida como a Palavra assumiu a natureza humana, virou gente e não como se um espírito tivesse adquirido um corpo. Atentem para a profundidade dessa distinção. Jesus Cristo não foi um espírito que adquiriu um corpo e depois livrou-se dele, com a morte. A Palavra encarnou-se, ou seja, adquiriu a natureza humana e nunca mais a deixou. Jesus Cristo continua encarnado, mesmo não tendo mais materialidade corpórea. Ao adquirir a natureza humana associada à natureza divina, Jesus passou a ter dupla natureza de forma permanente e é por isso que Ele é nosso modelo perene de perfeição, aquele perfil que, um dia, nós alcançaremos, pela salvação que Ele nos conquistou. Esse é o verdadeiro sentido teológico do Natal de Jesus.

sábado, 19 de dezembro de 2020

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - 20.12.2020

 

O “SIM” DE MARIA


Neste domingo (20.12.2020), a liturgia católica mostra a ascendência genealógica de Jesus como filho de Davi, destacando que José e Maria são descendentes de Davi. Ou seja, Jesus é filho de Davi seja pelo lado paterno (adotivo) de José, seja pelo lado materno biológico de Maria.


O evangelista Lucas (Lc 1, 26-38) é enfático em afirmar que José era descendente de Davi. Não podendo afirmar que José gerou Jesus, o evangelista refere que José era da família de Davi e era esposo de Maria, a mãe de Jesus. Foi assim que o anjo Gabriel a instruiu: “Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim' ” (Lc 1, 31). Observemos que José era pai adotivo de Jesus, porém mesmo sem ser filho biológico, Jesus era herdeiro legal de José, portanto, herdeiro da tradição de Davi.


A escritura não menciona que Maria era descendente de Davi, somente a tradição afirma isso. Existe um testemunho de Santo Irineu, que viveu nos primeiros séculos do cristianismo, de que Maria também era da linhagem de Davi, testemunho considerado válido, embora não conste nos relatos dos evangelistas. Talvez fosse até mais fácil de fundamentar a descendência de Jesus em relação a Davi através da análise de genealogia de Maria. Contudo, naquela época em que prevalecia a linhagem masculina, para evitar quaisquer dúvidas acerca da validade da profecia, se por acaso ficasse demonstrada apenas a descendência pelo lado feminino, os evangelistas destacam sempre a descendência pelo lado de José, deixando de considerar a genealogia de Jesus pelo lado familiar de Maria. Daí porque tal referência só está presente na tradição.


Interessante nesse contexto é observar a forma como a revelação divina foi dada a Maria, diferente do modo tradicional em que isso acontecia. De acordo com a tradição judaica, as mensagens proféticas de Javeh aos seus escolhidos eram dadas através de sonhos, portanto, quando eles não estavam despertos. Porém, no caso de Maria, ela não apenas estava desperta, mas chegou a dialogar com o anjo e expor suas dúvidas, fez perguntas que o anjo respondeu e a tranquilizou.


Por sua vez, o caso do sonho de José acerca da gravidez de Maria é um desses exemplos de revelação recebida em sonho. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. Com base nessa análise, pode-se afirmar que a revelação a Maria teve uma característica totalmente peculiar, fora do padrão em que isso costumava acontecer. Certamente, porque o evento que esta revelação abordava não era apenas uma intervenção de Javeh na história dos homens, mas a autêntica redenção prometida, a intervenção última e definitiva.


Com bastante probabilidade, o diálogo de Maria com o anjo foi bem mais demorado e detalhado do que aquele apresentado na narração bíblica. Maria era muito jovem e estava no início de sua vida adulta, ainda não começara sua coabitação com José. Muito provavelmente, o anjo também explicou logo a ela que aquele filho lhe traria muitas alegrias e também muitos sofrimentos, talvez o anjo tenha mesmo antecipado a sua morte cruel, como parte do plano da salvação. Era necessário que ela ficasse bastante informada e segura do que estava por acontecer, para que ela finalmente concordasse ou não. E obviamente a gestação não teria iniciado, caso ela tivesse recusado. Daí a importância do “sim” de Maria, porque naquele momento, ela mesmo sabendo antecipadamente dos atrozes sofrimentos que teria de suportar futuramente, ainda assim colocou-se submissa à vontade de Deus: ciente, de acordo, faça-se conforme a tua palavra. E o anjo retirou-se.


sábado, 12 de dezembro de 2020

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DO ADVENTO - 13.12.2020

 

O ÚLTIMO PROFETA


Na liturgia deste domingo (13.12.2020), o tema predominante é o refrão “Alegrai-vos, Ele está bem perto”, sendo por isso denominado o domingo “laetare” (alegrar-se). No evangelho, os fariseus questionam sobre a identidade de João Batista, porque multidões a ele acorriam: “quem és tu, afinal?”, perguntavam-lhe. E ele, humildemente, negava ser o Messias ou um profeta, definindo a si próprio como “a voz que clama no deserto”. Poorém, Jesus irá dizer dele, em outra ocasião (Mt 11,11) que João Batista é muito mais do que um profeta e, dentre os nascidos da raça humana, ninguém é maior do que ele. Com efeito, João Batista foi o último profeta, aquele que anunciou que o Messias já está no meio de nós. Com o Batista, encerrou-se o ciclo do Antigo Testamento, pois o Novo já estava chegando.


O evangelista João (Jo 1, 6-28), narra um episódio em que os fariseus vão até João Batista a fim de indagarem sobre a sua identidade. A fama de João Batista se espalhara na região e os líderes judeus queriam certificar-se de quem era ele e, para isso, mandarem mensageiros a indagar-lhe. Quem és, afinal, para que possamos informar os que nos enviaram? João Batista, então, serviu-se das palavras do profeta Isaías para falar de si próprio: eu sou a voz que clama no deserto – aplainai os caminhos do Senhor. E ao afirmar que ele não era o Messias, acrescentou que “no meio de vós, está aquele que virá depois de mim”, isto é, eu não sou o Messias, mas Ele já está no meio de vós. João tinha consciência plena da sua missão preparatória, conforme ele mesmo proclamou em outra ocasião: é preciso que Ele cresça e eu desapareça. (Jo 3, 30) Ou como ele diz no evangelho de hoje: eu não sou digno nem de desamarrar as correias das Suas sandálias. (Jo 1, 27)


Os fariseus estranharam: porque João batizava sem ser um profeta. Aqui, podemos considerar dois aspectos. Primeiro, Jesus mesmo disse que João era mais do que um profeta. Etimologicamente, a palavra “profeta” deriva do grego “pro+fainô”, isto é, falar por alguém, falar em nome de alguém. A palavra correspondente, em hebraico, é NAVI (ou NABI), que significa “aquele que tem uma antevisão dos fatos”, o que ocorria geralmente com as manifestações de Javeh em sonhos para certas pessoas. Então, João Batista era mais do que isso, porque ele não falava em nome de alguém, mas em nome próprio, porque ele foi a primeira testemunha da chegada do Messias; e ainda porque ele não recebera nenhuma antevisão através de sonhos, como acontecera com os profetas anteriores. Os teólogos consideram João Batista o último profeta do Antigo Testamento, e de fato, ele foi um profeta especial, um profeta-testemunha, enquanto os outros eram apenas porta-vozes. A maior profecia de João Batista, na verdade, a sua maior revelação, foi a de dizer para aqueles que iam ouvi-lo na margem do Jordão, onde ele batizava: o Messias já está no meio de vocês.


Um outro fato a merecer destaque era o batismo trazido por João, donde lhe advém o cognome de Batista. Os outros profetas não batizavam. Na sua tradição religiosa, os judeus praticavam um ritual de purificação com água, chamado “tevilah”, que era adotado sobretudo pelas mulheres, após o ciclo menstrual ou após o parto, para se purificarem e voltarem à sinagoga. As mulheres não podiam ir à sinagoga durante a menstruação nem durante o puerpério (resguardo). João utilizou esse ritual, dando a ele um significado novo, a “tevilah” de arrependimento, a mudança de vida, preparando o caminho para a chegada do Messias. João também modificou o formato desse ritual, fazendo-o através da imersão do corpo todo no rio, significando que ao emergir, o fiel estaria renascendo, abandonando a sua vida de pecados para reviver purificado. O próprio Jesus se submeteu a esse ritual, embora não necessitasse de arrependimento. Mas o fato de Jesus ter-se associado a esse ritual é uma amostra de que Ele estava aprovando aquilo e reconhecendo o valor daquele rito simbólico. Com a tradução para o grego, a palavra hebraica “tevilah” passou para “baptizô” (ou baptismô), que significa também lavar, derramar, aspergir, tendo essa palavra grega assumido todos os significados da “tevilah” hebraica, inclusive as abluções que os judeus faziam (lavagem das mãos) antes das refeições. João deu um significado mais amplo e profundo para a “tevilah” (ou baptismô), que deixou de ser um ritual simples e repetitivo para tornar-se uma atitude única de mudança de comportamento, de assunção de um novo modo de vida. Aqui está mais uma razão para ele ser considerado o último profeta e “mais do que um profeta”, porque depois dele, não haveria mais nenhum outro, e sim a manifestação do próprio Deus, em Jesus Cristo.

 

sábado, 5 de dezembro de 2020

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - 06.12.2020

 

NOVOS CÉUS E NOVA TERRA

Neste domingo (06.12.2020), o segundo do advento, a liturgia católica, destaca a importância do papel de João Batista, o Precursor, conclamando o povo para o batismo da conversão, em preparação da chegada daquele que haveria de vir. O profeta Isaías (Is 40, 1-11) nos convida a vivenciar o tempo do advento na alegria da espera da nossa libertação: “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas.”

Mas é na leitura da segunda carta de Pedro que encontramos um conceito merecedor de nossa atenção: “novos céus e nova terra” (2Pd 3, 8-14). Todos sabemos, Pedro não era nenhum intelectual, ao contrário, era homem de poucas letras, pois fora criado à margem do Lago de Genesaré, onde se dedicava ao ofício da pesca profissional, quando recebeu o chamado de Jesus. Estima-se que as cartas de Pedro foram escritas por Marcos, que era discípulo dele e o acompanhava. Diferentemente de Paulo, que escrevia aos gentios, isto é, aos povos pagãos, que não conheciam a tradição judaica, Pedro escrevia para uma comunidade de Judeus, daí porque ele não precisava explicar muitas coisas, pois os seus leitores já conheciam. No trecho dessa leitura, Pedro destaca a promessa divina de que, no futuro, surgirão novos céus e nova terra, onde habitará a justiça. A terra atual será destruída no final dos tempos.

É preciso compreender que essa imagem da destruição total não pode ser tomada no sentido físico, geocósmico, mas no sentido da destruição do pecado e da injustiça, para cederem lugar à justiça que vem de Deus. É interessante observarmos o uso do termo no plural: “novos céus” (no original grego, kainoús dé ouranoús), enquanto “terra” está no singular. Isso deve significar que Pedro acreditava na tradição judaica acerca da existência de sete céus (o primeiro deles, chamado Vilon, seria o local onde originalmente moravam Adão e Eva, de onde eles “caíram” para a terra; a este primeiro céu, seguiam-se outros até chegar ao sétimo céu, que seria propriamente a morada de Deus). Dessa concepção judaica antiga, parte a ideia de que os céus “cairão” sobre a terra, porque essa era a noção geográfica daquela época. Visto que Pedro escrevia aos judeus, ele não precisava explicar com detalhes o que seriam esses céus, que seriam renovados.

Referindo-se à terra (no original grego, gen kainen), aparece outra vez o adjetivo “kainos”, que significa algo inédito, extraordinário, nunca visto antes. Ou seja, a tradução de ‘kainos’ por “novo” em português não indica toda a força que a palavra grega possui. Assim, os novos céus e a nova terra representam a ideia de um processo de depuração, de purificação, não sendo simplesmente uma coisa que vem substituir outra, assim como nós passamos a usar um novo sapato e jogamos o outro no lixo. O “novo” tem aqui o sentido da renovação plena, de tomar algo que está velho e fazê-lo tornar-se novo outra vez. E acerca dos “sete” céus, esse conceito continua vigente no talmud judaico e significa uma espécie de local físico, embora muito elevado, porém não é compatível com o conceito de céu uno presente na doutrina teológica cristã.

Portanto, deixando de lado essa noção arcaica dos sete céus, entendida quase no sentido cosmológico, a mensagem da carta de Pedro nos incentiva a vivermos na esperança da renovação prometida, cuja realização depende também do esforço de cada um de nós: “vivendo nessa esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre numa vida pura e sem mancha e em paz.” Tal como Paulo fez em suas cartas, Pedro também adverte os cristãos mais apressados para que tenham paciência para esperar a vinda do Senhor, pois “para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que demora.” Passados hoje mais de dois milênios e considerando a evolução dos conhecimentos científicos acerca do universo, devemos compreender esses “novos céus e nova terra” no sentido metafórico teológico e espiritual, de modo que vivendo nessa “velha” terra o “reino de Deus”, estamos antecipando pela fé a vida na Jerusalém celeste, servindo como nosso guia nessa caminhada o evangelho de Cristo.