sábado, 26 de dezembro de 2020

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA - 27.12.2020

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 27.12.2020


Caros amigos,


No domingo do que medeia entre o Natal e o Ano Novo, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré, apresentando-a para as famílias cristãs como o modelo e o exemplo da família, encerrando o ano civil com um incentivo à reflexão sobre a situação das nossas famílias, local onde a humanidade se perpetua, não apenas no aspecto biológico, mas e principalmente, no aspecto cultural, social, valorativo, religioso, ético, atingindo a personalidade inteira das pessoas. Não é por outro motivo que vivemos em num mundo repleto de desajustes em todos os sentidos, ou seja, a falta de estrutura e segurança no ambiente familiar produz adultos insatisfeitos, imaturos, violentos, egoístas e despreparados para a vida, contribuindo para a desigualdade e para a insegurança da sociedade.


Desde o final do século XX, a organização familiar passa por um período de turbulência conceitual nunca antes verificado. Com efeito, o modelo familiar tradicional, constituído por um homem, uma mulher e seus filhos, está agora competindo com outras modalidades familiares que não existiam no passado, quais sejam, as famílias resultantes de uniões homoafetivas, com filhos adotados, e ainda as famílias monoparentais: pai e filhos de diferentes mães, mãe e filhos de diferentes pais. A religião católica tem bravamente resistido a essas mudanças, que são consequências diretas da maior assimilação dos comportamentos sexuais alternativos na nossa sociedade, os quais se tornam cada vez mais frequentes e gozam de reconhecimento jurídico pelo Estado. Não pretendo fazer aqui um juízo de valor sobre o tema, deixo isso para a consideração de cada um. A análise que faço é apenas para destacar que a instituição social mais antiga que se conhece, que é a família tradicional, vem passando por uma transformação substancial, com reflexos dentro e fora da religião, como consequência de adaptações legislativas realizadas pelos órgãos governamentais.


Voltando ao tema inicial, a liturgia deste domingo coloca a família de Nazaré como o modelo a ser seguido da família perfeita, até mesmo com as eventuais vicissitudes que ocorrem em todos os grupos familiares: por exemplo, o 'pito' que Maria deu no menino Jesus, depois da estressante procura por Ele, na ocasião do retorno de Jerusalém, depois da Páscoa. Um puxão de orelhas educativo (agora proibido pela lei dos castigos corporais) nunca fez mal a ninguém, desde os tempos bíblicos.


Na primeira leitura, temos um trecho do livro do Eclesiástico (Eclo, 3, 3-17), livro este também conhecido como Ben Sirac ou Sirácide, em alusão ao seu escritor. Este era um judeu chamado Jesus Ben Sirac, que escreveu uma meditação sobre a felicidade, partindo da sabedoria tradicional do povo hebreu, numa época em que a cultura grega se espalhava entre os judeus. O autor quis reforçar os valores hebraicos tradicionais, que não devem ser substituídos pela cultura alienígena, detalhando-os para ensinamento dos mais jovens. Este livro não fazia parte da antiga bíblia judaica, sendo por isso considerado deuterocanônico. Ele foi incluído no cânon da Bíblia Católica após muitas discussões sobre a pertinência disso, porque nem todos os Padres da Igreja antiga assim o consideravam. Foi um dos motivos do protesto de Lutero, que não concordava com a sua inclusão na Bíblia, por isso, esse livro não consta na bíblia protestante..


Dentro do tema geral do livro, que trata da felicidade, a leitura escolhida pela liturgia traz conselhos aos filhos sobre o respeito aos pais, que tem a aprovação e a bênção de Javé. O cuidado dos filhos com os pais idosos, mesmo quando já estão sem lucidez, além de ser uma obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação, para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé. O conteúdo do texto se aplica perfeitamente na nossa sociedade, como aliás se aplicou em todas as épocas, porque a relação pais e filhos foi sempre um dos pontos fundamentais de sustentação da sociedade e as admoestações da sabedoria antiga são, podemos dizer, perenes e supra culturais.


A segunda leitura, de Paulo aps Colossenses (Cl 3, 12-21), exorta os membros daquela comunidade ao exercício da caridade, da tolerância e do amor fraterno, como regra básica para a harmonia que deve marcar a vivência dos cristãos. Paulo escreveu esta carta quando estava na prisão em Roma e soube de algumas desavenças que ocorriam entre os cristãos de Colossos. Conclama as esposas a serem solícitas com os maridos e estes a amarem as esposas e não ser grosseiros com elas. Depois, admoesta os filhos para obedecerem aos pais, até parece que Paulo procura complementar ou atualizar a leitura do Sirácide, texto que ele devia muito bem conhecer.


No evangelho de Lucas (Lc 2, 22-40), temos mais um daqueles detalhes da vida de Jesus que somente este evangelista veio a saber, por conta da sua convivência cotidiana com Maria. Inicia Lucas dando amostras da fidelidade da família de Nazaré ao cumprimento da Lei de Moisés, afirmando que após o período do puerpério, José e Maria foram até Jerusalém, a fim de consagrar o seu filho primogênito a Javé, conforme prescrevia a lei. Ofereceram um casal de pombos, conforme o ritual previsto para as famílias pobres, tudo de acordo com as normas judaicas. O inesperado para José e Maria foi o encontro com Simeão, profeta, e Ana, profetiza, que vieram até eles e fizeram revelações surpreendentes acerca do futuro do Menino e de sua família. Simeão havia recebido de Javé a promessa de que não morreria antes de ver o Messias e, naquele momento, ali estava ele com o Messias nos braços. Talvez, para Maria as revelações não foram assim tão surpreendentes, porque ela já tinha ouvido algo similar da parte do anjo Gabriel, na anunciação. Mas, provavelmente, José teria sido o mais impactado com aquelas profecias, pois não se sabe se Maria havia revelado a ele as palavras do anjo, então era a primeira vez que ele ouvia tais comentários. Pela forma como narra o Evangelista, o casal ouviu aquelas palavras amargas com tranquilidade e fé, conscientes de sua missão.


Convém destacar, nesse contexto, um detalhe que pode passar despercebido ao leitor. José e Maria moravam em Nazaré e viajaram até Jerusalém, a fim de apresentar o Menino no templo. Maria havia terminado o “resguardo” e o Menino estava com cerca de quarenta dias de nascido. A distância entre Nazaré e Jerusalém é de aproximadamente 150 km e essa viagem era feita a pé. Certamente, Maria foi no lombo de um jumento, conforme é comum se ver nas gravuras que representam os eventos bíblicos. Mas José, com certeza, fez o percurso todo a pé. Uma viagem nessas condições deveria demorar talvez um cinco dias, considerando as condições físicas de Maria e as necessidades biológicas de um recém-nascido. Outras vezes, José e Maria foram a Jerusalém para a festa da Páscoa, inclusive naquele ano específico em que o Menino Jesus desgarrou-se do grupo e ficou sozinho na cidade, episódio bastante conhecido por todos. Mas era sempre uma viagem cansativa e demorada, realizada sob o impulso da fé e da obediência à lei mosaica.


Eu fico aqui imaginando também a cena de Maria contando essas histórias para Lucas. Com certeza, foi um grande exercício de paciência deste, porque penso que somente a muito custo Maria concordava em revelar certos detalhes. O próprio Lucas escreveu que Maria “guardava todas essas coisas no silêncio do seu coração”. Pode-se supor que ele ia completando conversas esparsas e incompletas com o conhecimento que ele tinha da personalidade de Maria, para compor o seu texto tão precioso em detalhes sobre a infância de Jesus.


Este e outros episódios da infância de Jesus, narrada pelo evangelista Lucas, são apreciados pelos estudiosos dos textos bíblicos, porque revelam a intimidade da Família de Nazaré e demonstram que a rotina de José, Maria e Jesus era similar à de todas as famílias, com as vicissitudes próprias da vida cotidiana, porque Jesus quis ter uma família igual a todos nós, sem se prevalecer de sua condição e natureza divinas. Esse exemplo de fidelidade ao projeto de Deus e de harmonia familiar é o grande legado que devemos aprender da Sagrada Família de Nazaré, o qual deve ser assimilado também pelos modelos familiares alternativos, para que sempre se orientem no sentido dos verdadeiros ensinamentos cristãos.


Cordial abraço a todos. Efusivos votos de Feliz Ano Novo.

Antonio Carlos

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