domingo, 27 de julho de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 17º DOMINGO COMUM - O REINO EM PARÁBOLAS - 27.07.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – O REINO EM PARÁBOLAS – 27.07.2014

Caros Confrades:

Após uma pausa de duas semanas, por motivo de viagens, retomo neste domingo os comentários da liturgia. Por coincidência, no domingo passado, em Parnaíba, até comentei com meus familiares uma frase que estava escrita na camisa de um transeunte, aludindo a que “o reino de Deus está para chegar” e, na ocasião, eu ponderei que o Reino já está entre nós, não é algo do futuro, mas do presente. É o que a teologia chama de “já e ainda não”, para significar que nós iniciamos na vida terrena a construção do Reino, que nos será dado em definitivo na eternidade. Na liturgia deste domingo, temos exemplos de Cristo acerca do Reino através de três metáforas, conforme a conhecida metodologia que ele adotava para explicar sua doutrina àquele grupo de discípulos de poucas letras.

Na primeira leitura, do primeiro livro dos Reis (1Rs 3, 5-12), lemos um episódio relativo ao reino de Israel, protagonizado por Salomão, o mais famoso dos antigos reis. De acordo com a tradição israelita, Salomão foi escolhido rei por ordem de Javeh, pois ele não era o primogênito, mas o profeta Natan obteve a concordância do rei Davi, já bastante idoso na ocasião, e assim ele foi coroado, não sem os protestos de Adonias, o primogênito. Por causa dessa escolha divina é que Salomão teve essa visão em sonho de Javeh perguntando-lhe o que ele queria. Ele pediu e Javeh concedeu-lhe a sabedoria que sempre o distinguiu e, com essa característica, ele reinou durante 40 anos. (Observemos aqui a presença da simbologia do número 40, não significa que o seu período de governo tenha sido matematicamente de 40 anos.) No contexto da liturgia deste domingo, a referência a Salomão é para mostrar que o seu reinado, de muita riqueza e prosperidade para o povo de Israel, era uma prefiguração do reino de Deus, que Cristo viria anunciar futuramente. Se o reino de Salomão, que era puramente terrestre, trouxe tantos bens e glórias para os israelitas, muito mais bênçãos e riquezas trará o novo Reino.

Particularmente, eu não gosto muito dessa terminologia de “reino”, porque é uma realidade que transmite uma idéia de poder político, de ostentação e triunfalismo, não compatível com a imagem que a Igreja de Cristo deve demonstrar. É óbvio que essa terminologia se encontra no evangelho porque essa era a realidade social do tempo de Cristo, mas Ele próprio explicou diversas vezes que o reino d'Ele “não é deste mundo”, detalhe que ficou durante muito tempo esquecido pelas autoridades eclesiásticas e algumas delas, ainda hoje, mantêm essa visão triunfalista. Por essa razão, é sempre necessário referir-se ao “reino” de Deus entre aspas, a fim de caracterizar a autêntica figura que a Igreja deve apresentar. O Papa Francisco foi visto, nesta semana, almoçando em bandejão num restaurante universitário, da mesma forma como os estudantes também o faziam, dando dessa forma o melhor exemplo de que o “reino” de Deus é de todas as pessoas, das pessoas comuns, retirando aquela barreira e aquele distanciamento que sempre houve entre as autoridades eclesiásticas e os demais cristãos.

Na segunda leitura, de Paulo aos Romanos (8, 28-30), o Apóstolo se refere ao “reino” com outro conceito: o projeto de Deus: “Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados para a salvação, de acordo com o projeto de Deus. ” (Rm 8, 28) Este “projeto” não deve ser outro senão o plano de salvação, a redenção da humanidade trazida por Cristo, do qual a Igreja é agente continuador. É nesse sentido que a Igreja configura o “reino” de Deus em preparação, o “reino” no meio de nós que já está presente, mas ainda não está na sua forma definitiva, isto é, a teoria do “já e ainda não” a que me referi acima. Através da atitude de pertença à comunidade eclesial, nós membros da Igreja fomos predestinados, somos chamados e justificados para, depois, sermos glorificados. O “projeto” de Deus, o plano de salvação são sinônimos do “reino”, daí porque insisto em que devemos entender o reinado de Cristo como um serviço aos irmãos, como Ele por diversas vezes ensinou aos seus discípulos. Lamentavelmente, ao longo do tempo, esse conceito de reino foi tomado no sentido literal e humano, levando ao extremo de se atribuir ao Papa a tiara papal composta pela tríplice coroa, que simbolizava o tríplice poder (pastor universal, poder eclesiástico e poder temporal), simbolizando a figura de Cristo como Sacerdote, Profeta e Rei. Paulo VI foi o último Papa a usá-la, mas depois a abandonou, no que foi seguido pelos papas posteriores. Essa criação medieval representou o auge da incompatibilidade entre o projeto de Deus e a Igreja que o comandava, havendo ainda muitos católicos saudosistas desses rituais.

No evangelho de Mateus (Mt 13, 44-52), Jesus nos dá três exemplos bem simples e compreensíveis do que seja o “reino de Deus”, que Ele veio revelar para nós. Na primeira metáfora, Ele diz: “O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo.” A pessoa que o encontra, vende tudo o que possui para comprar aquele campo e ser possuidor daquele tesouro. Na segunda metáfora, diz: “O Reino dos Céus é também como um comprador que procura pérolas preciosas.” Ao encontrar uma pérola de grande valor, o comprador vende tudo para investir naquela encontrada. Terceira metáfora: “O Reino dos Céus é ainda como uma rede lançada ao mar e que apanha peixes de todo tipo. ” Levada a rede para a terra, os pescadores recolhem os peixes bons para os cestos e jogam fora os peixes corrompidos. Vejamos os termos de comparação do “reino” com um tesouro, uma pérola, uma rede cheia de peixes, todas as imagens são familiares ao público ouvinte. Agora observemos que as duas primeiras metáforas se referem a um bem precioso, enquanto a terceira inclui coisas boas e más, isto é, os peixes próprios para alimentação e os impróprios. Dizia o Padre Uchoa, meu professor de Bíblia, que essas parábolas não foram pronunciadas por Cristo na mesma ocasião, assim em sequência conforme está escrito no evangelho de Mateus, mas foram metáforas usadas por Cristo em ocasiões diversas e que foram depois colecionadas num mesmo escrito. Isso explica o motivo pelo qual os três objetos de comparação não são similares. As três imagens colocadas como estão no texto trazem uma certa confusão na nossa mente ao tentarmos apreender o seu significado, por isso, devemos entendê-las separadamente.

O tesouro e a pérola fizeram com que o descobridor vendesse tudo, ou seja, abandonasse tudo o que possuía a fim de apoderar-se daquela preciosidade. Quem descobre o “reino” de Deus logo percebe que tudo o mais é irrelevante, aderindo completamente àquele. Diante da grandeza do “reino”, todos os bens materiais ficam sem valor e não se comparam a ele. Mas como toda comparação é imperfeita, o encontrador do tesouro e o comprador da pérola manifestam uma imagem egoísta assim como se o “reino” pudesse ser possuído totalmente por uma pessoa só, o que de fato não corresponde à sua verdadeira essência, pois o “reino” é de todos. Porém o objetivo da parábola é demonstrar a sua incomparável grandeza frente a todas as realidades materiais. A imagem da rede cheia de peixes tem uma conotação diferente, por referir-se a uma situação de seletividade, dando a entender que nem todos estão aptos a pertencerem ao “reino”. Estes seriam aqueles que pretendem obter o tesouro ou a pérola sem, contudo, se desfazerem dos seus bens terrenos, por isso ficam corrompidos e divididos e precisam ser excluídos do grupo dos eleitos.

A parte mais interessante vem agora, quando Jesus pergunta se todos entenderam. Eles respondem que sim, então Jesus completa: “todo o mestre da Lei, que se torna discípulo do Reino dos Céus, é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas.” O evangelista não explica essa conclusão, que parece estar dissociada das parábolas apresentadas. Primeiro, porque os ouvintes de Jesus não eram mestres da Lei. Segundo, o que significa esse tesouro que tem coisas novas e velhas? Tudo indica que, na elaboração desse texto, o evangelista tomou vários manuscritos e os integrou sem preocupar-se com a harmonização dos conteúdos. No meu entendimento, essa conclusão não é propriamente um fecho das três parábolas, mas uma referência aos fariseus, que eram mestres da Lei e que, ao se converterem para o novo “reino”, deveriam ser capazes de conciliar os ensinamentos da Torah antiga com a Boa Nova trazida por Cristo. Através de outras passagens dos evangelhos, sabe-se que nem todos os fariseus se opuseram a Jesus, mas alguns se converteram e se tornaram seus discípulos, ainda que secretamente, por receio da represália dos outros. Estes foram os que souberam retirar do seu tesouro familiar as coisas novas e velhas.

Que o divino Mestre nos conceda a sabedoria salomônica para não ficarmos apegados ao passado e sempre sabermos transformar velhas doutrinas em novas idéias, acompanhando a evolução da sociedade.

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sábado, 5 de julho de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 14º DOMINGO COMUM - A VIDA SEGUNDO O ESPÍRITO - 06.07.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A VIDA PELO ESPÍRITO – 07.07.2014

Caros Confrades:

Na liturgia deste 14º domingo do tempo comum, tomei como motivação para esta reflexão o tema da carta de Paulo aos Romanos: a contraposição entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. Diz o Apóstolo que viver segundo a carne conduz à morte, enquanto viver segundo o espírito produz a vida eterna. É importante lembrar o contexto histórico da sociedade romana da época de Paulo, quando o apogeu do domínio político dos romanos havia construído uma vida social próspera e luxuosa, levando as pessoas a valorizarem o consumo, os banquetes, a ostentação, os prazeres carnais. Paulo divulgava o cristianismo entre a alta sociedade romana, não entre os plebeus e os operários, por isso ele recomenda a eles a vivência sóbria, a austeridade, a renúncia aos bens materiais. No evangelho de Mateus, Jesus explica isso que Paulo chama de viver segundo o espírito, recomendando aprender com Ele a mansidão e a humildade, que Ele garante ser um peso leve e suave, que não onera quem as pratica.

Na primeira leitura, colhida do profeta Zacarias (Zc 9, 9-10), o Profeta faz uma referência ao futuro Messias como o rei da humildade. Este profeta viveu na época pós-exílica, quando os judeus haviam retornado da Babilônia e estavam reconstruindo Jerusalém e o seu templo. Por isso, ele adverte o povo dizendo: “Exulta, cidade de Sião! Rejubila, cidade de Jerusalém! Eis que vem teu rei ao teu encontro; ele é justo, ele salva; é humilde e vem montado num jumento, um potro, cria da jumenta.” É impressionante como o Profeta tendo vivido mais de 500 anos antes de Cristo conseguiu traçar uma figura do Messias com características tão realistas. A entrada de Cristo em Jerusalém, que é comemorada no Domingo de Ramos, é a expressão concreta dessa profecia de Zacarias. E a outra descrição realista do Messias que ele faz diz respeito à sua humildade. Em contraposição com os reis daquele tempo, que viviam na pompa e na ostentação e andavam em montarias vistosas, Zacarias afirma que o verdadeiro rei de Jerusalém praticará a humildade e andará em um jumento, que era a montaria das pessoas pobres. Um outro vate profético muito realista de Zacarias está no versículo 10, quando ele diz “Seu domínio se estenderá de um mar a outro mar, e desde o rio até os confins da terra”, uma clara referência à universalidade do reino de Deus, que seria pregado por Cristo vários séculos depois. Observa-se neste pequeno trecho do profeta o mesmo tema do evangelho, onde Cristo vai anunciar a mansidão e a humildade como sendo as características do comportamento d'Ele e a sua proposta de vida para todos os cristãos.

Na segunda leitura, de Paulo aos Romanos, o Apóstolo não fala diretamente no tema da humildade, mas faz a contraposição das duas formas de viver: segundo a carne e segundo o espírito. Destas duas, a opção de viver segundo o espírito é o seguimento do evangelho de Cristo, que é o tema da catequese paulina para as novas comunidades de convertidos. Convém lembrar que Paulo tinha estudos da cultura grega e entre os gregos naquela época histórica estavam em grande voga as filosofias do autocontrole, da renúncia às coisas materiais, seguindo a doutrina dos discípulos de Sócrates, em especial a doutrina do estoicismo, que pregava a moderação e a ataraxia. Essas doutrinas tinham muita aceitação entre os romanos e, de certo modo, ajudaram na catequese de Paulo porque havia muitas semelhanças entre a doutrina estóica e a doutrina cristã. A diferença entre ambas é que o objetivo do estoicismo era apenas a felicidade terrena, enquanto o cristianismo ensinava a felicidade espiritual, aquela que continua depois da morte. Apenas para explicar melhor o termo “ataraxia”, isso significava a supressão do desejo. Segundo os seguidores de Sócrates, o desejo é sempre fonte de sofrimento e angústia, porque as pessoas alimentam desejos de coisas muito além daquilo que de verdade podem conseguir, então isso traz angústia e sofrimento. Desse modo, se a pessoa conseguir controlar os seus desejos, limitando-os com moderação às suas possibilidades reais, então grande parte dos sofrimentos poderão ser evitados. Daí o ensinamento de Paulo para não viver segundo a carne, nem no que diz respeito à ostentação, ao luxo e aos prazeres materiais como muitos romanos faziam, nem tampouco a prática da moderação apenas por razões filosóficas ou sensoriais, mas em lugar disso, os romanos devem viver segundo o espírito, ou seja, segundo o evangelho de Cristo. Paulo foi beneficiado por essa vantagem, quando pregou o evangelho para a classe culta romana, porque a doutrina estóica era bastante conhecida e aceita entre os intelectuais. A sua tarefa consistiu em ensinar aos Romanos a prática da humildade segundo o modelo proposto por Cristo, não o modelo socrático. Nesse sentido, o ensinamento de Paulo “se viverdes segundo a carne, morrereis”, isto é, se praticardes a humildade e a moderação apenas buscando a felicidade material, isso não vos livrará da morte; contudo, se viverdes segundo o espírito, isto é, se fizerdes isso pelo espírito de Deus que habita em vós, então ganhareis a vida eterna. Esse dualismo corpo-espírito foi muito importante na cultura grega e influenciou de modo muito forte também a cultura romana, nos inícios da era cristã.

Na leitura do evangelho de Mateus (Mt 11, 25-30), temos diversas referências de Cristo à humildade e em contraposição ao orgulho e à soberba. “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos.” Diferentemente da pregação de Paulo, que se dirigia à classe culta romana, a pregação de Cristo era dirigida aos pobres, ao povo das periferias. Os “sábios e entendidos” referidos por Cristo são exatamente os fariseus, os judeus cultos, que não quiseram ouvir a Sua palavra e, por isso, não conheceram a Sua verdade. Ao contrário, os pequeninos que lhe davam atenção foram os grandes beneficiados, diante do orgulho dos sábios daquela sociedade, os que tiveram acesso à revelação das verdades divinas. Jesus está mostrando aí a superioridade da humildade sobre a soberba. Aos humildes, a verdade se apresenta; aos soberbos, aos que se consideram donos da verdade, ela se oculta. É interessante observarmos como esse ensinamento de Cristo é sempre atual, não se aplicava somente aos fariseus do seu tempo. Em todas as épocas, os entendidos sempre tiveram dificuldade de compreender e aceitar as verdades cristãs. Mais do que isso, muitas vezes os intelectuais tentaram manipular os ensinamentos de Cristo ajustando-os aos seus interesses. Isso aconteceu, inclusive, dentro do ambiente eclesiástico, onde surgiram diversas doutrinas divergentes, que foram consideradas heréticas. E hoje esse fenômeno está presente quando as pessoas se aproveitam da ignorância e da boa fé do povo mais simples e os conquistam para suas “igrejas” particulares, que são, na verdade, instrumentos de dominação das pessoas através da fé. O que estes pregam não é a verdade de Cristo, mas a verdades deles mesmos.

A última parte da leitura contém uma referência bem direta aos fariseus daquele tempo, quando Jesus diz “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos”. Sabemos que os fariseus e os sacerdotes interpretavam a lei de Moisés de um modo extraordinariamente rígido e a transformavam numa série de preceitos, que continham mais de 600 proibições. Diversas ações eram catalogadas como contrárias à lei e deixavam impuro que as praticasse. Então, para os fariseus, o cumprimento da lei era algo pesado, tedioso, difícil. Por isso, Jesus vem dizer que não é preciso fazer assim, os fariseus não conhecem a verdade, somente Ele está autorizado a revelar os verdadeiros preceitos da lei, porque “somente o Filho conhece o Pai e aquele a quem o Filho quiser revelar”, e Ele revela aos simples e aos pequeninos. Daí ele dizer aos seus ouvintes para que não se impressionassem com aqueles exageros dos fariseus e viessem segui-lo, porque “o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” E Jesus se coloca como exemplo a ser seguido: “aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração”, isto é, o cristão deve ser manso e humilde. Este é o ponto em que a leitura do evangelho cruza com a carta de Paulo aos Romanos, quando ele exorta aquele povo a “viver pelo espírito de Cristo que habita em vós”. Viver segundo o espírito de Cristo é viver com mansidão e com humildade.

Então, meus amigos, Jesus nos ensina que a lei de Deus é uma coisa simples, nós é que a complicamos com certas interpretações tendenciosas. Isso se refere especialmente aos teólogos, que perdem a noção da humildade e retiram da palavra de Deus interpretações desviadas. Isso se refere também aos leitores da Bíblia sem o devido preparo, sem o necessário estudo. Podem ter certeza de uma coisa: quanto mais complicada for uma pregação, mais está afastada do verdadeiro sentido do evangelho, porque este é dirigido aos pobres e aos humildes e a sua compreensão deve sempre está próxima da simplicidade.

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domingo, 29 de junho de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO - 29.06.2014

Caros Confrades,
Encaminho, a seguir, um texto que escrevi no ano passado, na festa litúrgica de Pedro e Paulo, cujas leituras são as mesmas deste ano. Fiz uma leitura e achei oportuno acrescentar somente as seguintes observações.
O Papa Francisco está seriamente empenhado (desde Bento XVI as conversas começaram) na tarefa de congregar as igrejas católicas do oriente com a igreja romana, encerrando um cisma de 960 anos (desde 1054). O grande empecilho para isso é a teoria do "primado" de Pedro, que os orientais não aceitam do modo como a Igreja romana entende, ou seja, as Igrejas católicas orientais têm seus patriarcas e nenhum é subordinado ao outro, assim como são os bispos ocidentais são subordinados ao Papa. Eles tb não querem ser subordinados ao Bispo de Roma, pois eles se consideram no mesmo nível hierárquico.
Se observarmos a história do cristianismo, veremos que a razão está com eles. De fato, o "primado" de Pedro foi uma delegação de Cristo, disso não se duvida. Mas se o próprio Cristo não se considerava "chefe" ou "senhor", a sua autoridade era exercida pelo serviço, por que razão o seu delegado iria ser um chefe? O "primado" deve ser entendido como liderança, não como chefia, essa é a grande diferença e esse é o grande óbice que o Papa Francisco vai ter de retirar da cabeça dos curialistas romanos, que são (ao meu ver) os que mais emperram esse processo.
Desde Paulo VI (1964) que a aproximação começou. Paulo VI fez a primeira visita papal ao oriente, depois de mais de 900 anos de separação. Mas a Cúria Romana nunca permitiu maiores avanços. Ultimamente, o Papa Bento fez várias tentativas, mas passou por maus bocados com a burocracia. Agora, o Papa Francisco, que é mais ousado, está enfrentando outra vez o questão. Fez a peregrinação à Terra Santa, em maio passado, e sempre mandou representantes para as solenidades de posse dos novos patriarcas, os quais visitaram o Papa no Vaticano, ou seja, podemos dizer que grandes passos foram dados, mas ainda resta um caminho bem longo.
Penso que seja, talvez, a grande missão do Papa Francisco, no seu novo projeto de ecumenismo, a aproximação real entre as comunidades católicas oriental e ocidental, se os "corvos" não abreviarem os seus dias, eu tenho muita fé que ele conseguirá.
Oremos a Pedro e Paulo, pela união dos católicos e de todos os cristãos.
Cordial abraço.
Antonio Carlos

COMENTÁRIO LITÚRGICO – SÃO PEDRO E SÃO PAULO – O BOM COMBATE – 30.06.2013

A liturgia dominical desta data celebra a festa dos santos Pedro e Paulo, baluartes dos inícios do cristianismo e da igreja primitiva, cada um de acordo com o seu carisma. Pedro liderou a igreja em Roma, que além de ser a capital do império romano, era uma espécie de capital do mundo daquela época. Paulo desenvolveu intensa e fecunda catequese nas comunidades gregas, contribuindo de forma decisiva para a divulgação do cristianismo e para a sua consolidação doutrinária.

À parte as polêmicas sobre o primado de Pedro, que não é aceito pelas igrejas católicas orientais, Pedro e Paulo tiveram uma atuação muito importante nos primeiros tempos do cristianismo, desde aquele célebre discurso de Pedro no dia de Pentecostes, ouvido por centenas de pessoas que estavam em Jerusalém e o ouviram nas suas próprias línguas, apesar de Pedro ter falado em aramaico, que era o seu idioma pátrio, até o miraculoso episódio da sua liberação de dentro da prisão do rei Herodes, pela mão do anjo do Senhor. Paulo teve o seu Pentecostes particular a caminho de Damasco e dedicou todas as suas forças à pregação da mensagem cristã, de modo que, encontrando-se preso e sendo levado para Roma, onde sabia que aconteceria o final de sua tarefa, resumiu a sua missão na conhecida frase: combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé. (2Tim 4, 7)

A libertação de Pedro de dentro da prisão do rei Herodes é um episódio minuciosamente narrado por Lucas, nos Atos dos Apóstolos, com o intuito de demonstrar o tamanho da fé da comunidade romana no seu lider. O rei Herodes sabia da importância hierárquica de Pedro e o mantinha na prisão com um esquema especial de segurança: quatro grupos de quatro soldados cada um, além dos guardas que ficavam na porta da prisão. E ainda por cima, Pedro ainda estava amarrado com duas correntes, mas nada disso adiantou naquela ocasião em que Deus mandou o anjo para libertá-lo. O escritor sagrado destaca, neste episódio, a importância da oração da comunidade pelo seu pastor, fato que deve servir de exemplo para todos nós também nos dias de hoje. É muito comum as pessoas falarem mal dos padres e bispos quando, em certas ocasiões, se comportam de um modo não esperado ou até não condizente com o seu estado clerical. A narração de Lucas procura mostrar a integração entre a comunidade e Pedro, destacando que a oração dos fiéis foi decisiva para que Deus mandasse o seu anjo para libertar Pedro da prisão. Ao invés de criticarmos os nossos pastores, devemos rezar por eles, para que Deus os ilumine e liberte, como fez com Pedro.

Sobre esta figura do anjo, é interessante fazer uma observação. É frequente encontrarem-se nos textos bíblicos referências ao “anjo do Senhor” como uma expressão metafórica para indicar algum fato extraordinário que indica uma intervenção divina no mundo humano. Por causa dessas referências e também por causa da agilidade de sua atuação, os artistas medievais criaram aquela figura de um ser com forma humana e dotada de asas, que é a imagem clássica do anjo. Também com fundamento nessas descrições bíblicas, os teólogos medievais criaram o conceito do anjo como um ser inteligente, tal como o ser humano, porém com uma inteligência privilegiada pelo fato de não ter a limitação da matéria corporal. Os anjos teriam, desse modo, um intelecto potencializado, que lhes permitiria compreender melhor os fatos e também contemplar a face divina, podendo agir seguindo diretamente as ordens do Pai. É desse conceito de anjo que deriva também o conceito do demônio, enquanto anjo desobediente, que tenta seduzir os seres humanos para fazerem o mal.

No caso da narração da libertação de Pedro, Lucas nos diz (At 12, 9) que Pedro estava sem saber se aquilo acontecia na realidade ou se ele estava apenas tendo uma visão. Imaginemos a cena: Pedro dormia e despertou com uma luz, que no entanto, não despertou os soldados que dormiam ao lado dele; as correntes que o prendiam se soltaram e o barulho delas não despertou os soldados nem chamou a atenção dos demais guardas; os portões abriram-se sozinhos diante dele e os guardas nada perceberam. Pedro via tudo aquilo acontecendo, mas não sabia se era apenas um sonho ou realidade. Somente quando se viu do lado de fora e livre foi que tomou consciência da sua libertação  miraculosa. Diz o texto que isso aconteceu quando “o anjo o deixou”. Não é necessário grande esforço mental para compreender que, a rigor, não havia a necessidade de que um ser incorpóreo estivesse com ele para que a força divina se operasse. Podemos muito bem substituir a expressão “anjo do Senhor” por “mão do Senhor” e deixar todo o restante do texto sem alteração, para que o mesmo sentido se mantivesse. Não estou, com isso, querendo afirmar que os anjos não existem. A teologia ensina até uma hierarquia entre eles (arcanjos, querubins, serafins, tronos, dominações, potestades), uma descrição que imita, na esfera celeste, uma certa ordem que havia nas cortes reais desde os tempos antigos. Por outras palavras, são formas metafóricas de simbolizar umas espécies de “soldados” divinos que obedecem as ordens do Criador, assim como os soldados humanos executam as ordens dos soberanos terrestres. Ao meu ver, a teologia católica faria bem se deixasse de representar os seres celestes com categorias conceituais ligadas a reino, trono, majestade, conceitos esses típicos da sociedade medieval, que já não encontram eco nos modelos da organização das sociedades contemporâneas.

A leitura do evangelho de Mateus (Mt 16, 13-19) traz aquele célebre diálogo de Jesus com Pedro, no qual ele lhe dá as “chaves do reino do céu”, apelidando-o ainda de “pedra” sobre a qual se construirá a igreja, texto que serve de fundamento para a controversa doutrina do primado de Pedro. Com efeito, os outros evangelistas trazem esse diálogo de Jesus com Pedro, porém sem todos esses detalhes. Nem mesmo Lucas, que era um escritor muito minucioso, faz referência tão detalhada, limitando-se a dizer que Ele é o Cristo de Deus. (Lc 9, 18). E Mateus completa o discurso de Cristo dizendo que “o poder do inferno nunca poderá vencer” a Igreja. O texto latino é um pouco diferente, ao dizer “portae inferi non praevalebunt adversus eam”, ou seja, as portas infernais não prevalecerão contra ela. Essa frase me faz lembrar uma historinha que contam, envolvendo Napoleão Bonaparte. Quando ele foi coroado imperador da França, após a Revolução Francesa, ele promoveu um movimento de desmoralização da Igreja francesa, que passava por um período de grande dificuldade, quando muitos dos seus membros haviam se envolvido com a Revolução e os bens eclesiásticos haviam sido confiscados, parecia que a Igreja iria sucumbir. Napoleão teria dito, então, ao Bispo de Paris, que um dos objetivos dele (Napoleão) seria acabar com a Igreja. Ao que o Bispo teria respondido: Majestade, há séculos alguns padres e bispos vêm tentando isso e não conseguiram... De fato, o que se vê, ao estudar o desenvolvimento histórico do cristianismo, é que a instituição eclesial já experimentou inúmeras crises, algumas gravíssimas, mas sempre conseguiu superar a todas. Inclusive, na nossa época, mais uma dessas graves crises está ameaçando a Igreja, mas quando menos se pensa, o Espírito manda um Papa do tipo de Francisco, para dar andamento a um processo de restauração, como este Papa vem fazendo, sem alardes mas com muita segurança e firmeza. Que Deus o ajude a cumprir o seu propósito.

Bem, voltando ao tema, podemos concluir que Pedro e Paulo são exemplos para nós de combatentes do bom combate, cada um na sua especificidade. Os estudiosos comentam sobre divergências doutrinárias entre Pedro e Paulo, que eram pessoas de culturas bem diferentes e também de formação diversa, no entanto, dentro dessa diversidade de abordagens o cristianismo, desde o início, tem se desenvolvido e se afirmado. Este é mais um ponto para nossa reflexão, quando  nos deparamos com a existência de tendências e grupos até rivais dentro do catolicismo, cada qual querendo se destacar como o mais autêntico. Acima da rivalidade dos grupos e ao lado de qualquer divergência de compreensão está o evangelho de Cristo com a sua mensagem divina e verdadeira, aberta à compreensão de cada um de nós, dentro das peculiaridades de cada época. Independente deste ou daquele grupo, o que nos deve guiar sempre deverá ser a fiel e esclarecida compreensão da mensagem de Cristo, que tem a característica divina de uma perene atualidade. Que o Espírito nos ajude a encontrar sempre o melhor caminho para seguir a Cristo com fidelidade.

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domingo, 22 de junho de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 12º DOMINGO COMUM - O NOVO ADÃO - 22.06.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O NOVO ADÃO – 22.06.2014

Caros Confrades,

Após as festas temáticas, retornamos ao tempo litúrgico comum. Neste 12º domingo comum, o tema da liturgia abre espaço para uma abordagem da relação entre religião e política, através da exortação de Cristo: não tenhais medo daqueles que matam o corpo e nada mais podem fazer. De fato, num tempo de grande avanço do secularismo, as pessoas sentem cada vez mais dificuldades para expressarem a sua fé, temendo as censuras sob todos os aspectos, levando muitos cristãos a terem atitudes omissas, quando poderiam dar testemunho. Contudo, eu evitarei esse viés político e vou preferir uma abordagem mais teológica, concentrada na carta de Paulo aos Romanos, na qual ele compara Cristo ao primeiro homem, dando origem a uma nova criação.

A primeira leitura traz um texto do profeta Jeremias. A vida deste profeta é um verdadeiro desafio à existência humana. Ele era um intelectual, estudioso, pesquisador, escreveu vários livros. Ele assistiu à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, porém não foi levado cativo, como muitos hebreus foram, continuou residindo no território de Judá, após esses fatos. Porém, logo depois, foi obrigado a debandar para o Egito, por causa de perseguições de grupos radicais. O fato de Jeremias não ter sido levado como cativo, tendo sido poupado por Nabucodonosor, deixou para alguns a idéia de que ele teria sido simpático aos babilônicos e por isso ele era perseguido, até por pessoas de sua própria família. Também, ele foi chamado a profetizar quando ainda era muito jovem e isso o colocou em algumas dificuldades perante as autoridades. Jeremias era uma pessoa marcada, naquele tempo, ele já sofria de bullying em Israel. Visto isso, consegue-se compreender melhor a razão pela qual os textos de Jeremias são sempre queixosos, amargurados. Basta lembrar que ele é também o autor do Livro das Lamentações.

No texto da leitura de hoje (Jr 20, 10), ele faz o seguinte desabafo: “Todos os amigos observam minhas falhas: ‘Talvez ele cometa um engano e nós poderemos apanhá-lo e desforrar-nos dele’.” Quem tem amigos assim, fica-se a imaginar como serão os inimigos. Isso mostra o quanto Jeremias era discriminado e sabia que muitos tramavam contra ele. Por isso, ele foi arrastado, contra a sua vontade, para morar no Egito. Mas lá, a sua situação não melhorou. Lá, ele via o povo de Deus abandonando as tradições hebraicas e se filiando às idolatrias egípcias e não conseguia ficar calado, bradando sempre contra tudo isso e conclamando o povo a retornar à sua fé. Não via muito resultado na sua pregação, mas não desanimava. Diz ele no versículo 11: “Mas o Senhor está ao meu lado, como forte guerreiro; por isso, os que me perseguem cairão vencidos. Por não terem tido êxito, eles se cobrirão de vergonha. Eterna infâmia, que nunca se apaga!” O fim da vida de Jeremias não poderia ser outro, senão este: foi apedrejado pelos próprios hebreus da localidade egípcia onde moravam, porque estes não suportaram mais ouvi-lo o tempo todo a bradar contra a idolatria deles e a chamá-los de volta à verdadeira fé de Javeh.

Na segunda leitura, temos um trecho bastante conhecido e polêmico da carta de Paulo aos Romanos (5, 12-15), no qual o apóstolo faz uma comparação entre Adão e Cristo: Adão foi o primeiro homem da aliança antiga, Cristo foi o primeiro homem da nova aliança. Teria ficado ótimo se Paulo tivesse parado a comparação por aí. Mas ele, com a sua mentalidade de judeu convertido, quis enfatizar o seu conhecimento da doutrina judaica, para demonstrar que Cristo é o ponto de partida de uma nova revelação e, para ilustrar isso, proclamou: O pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a morte. … A graça de Deus, ou seja, o dom gratuito concedido através de um só homem, Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos. (versículos 12 e 15) No meu ponto de vista, Paulo está ensinando sobre o pecado original. Tanto assim que, no versículo 14, ele diz: a morte reinou, desde Adão até Moisés, mesmo sobre os que não pecaram como Adão, o qual era a figura provisória daquele que devia vir. Por outras palavras, o pecado de Adão, que não tem nada a ver com a degustação da maçã, respingou sobre todos os seres humanos, recaindo até sobre os que não agiram como ele, e mesmo num tempo em que não havia lei, ou seja, antes de Moisés, essas pessoas inocentes não poderiam ser imputadas de culpa, no entanto, mesmo assim, foram atingidas pelas consequências do pecado. Somente com a chegada “daquele que devia vir”, isto é, com a vinda de Cristo, a graça de Deus lavou a mancha do pecado e, com isso, aqueles que morreram no pecado inocentemente também foram alcançados pela graça purificadora de Cristo e assim ganharam a salvação. Esse é o sentido da expressão “desceu aos infernos” (atualmente, a tradução substituiu a palavra “infernos” por “mansão dos mortos”), isto é, a salvação trazida com a morte de Cristo se estendeu amplamente para todos os homens, do passado, do presente e do futuro. Assim, em poucas palavras, é a doutrina teológica sobre o pecado original.

Talvez, alguém esteja se perguntando: mas, afinal, qual foi mesmo o pecado de Adão, para ter essas consequências tão devastadoras? Há uma tradição muito arraigada na mentalidade popular, e que é atribuída a uma interpretação de Santo Agostinho, de que o pecado original estaria relacionado com o sexo. Talvez porque a tradição judaica, incorporada pelo cristianismo, tenha sempre tratado o sexo como um grande tabu, como algo “nec nominetur in vobis” (o Frei Higino gostava dessa expressão), que somente seria permitido estritamente para fins de procriação e mesmo assim dentro do matrimônio regular. Essa é uma polêmica sem tamanho, na qual não quero adentrar nessas poucas linhas, mas o pecado de Adão, que pesou de forma estrutural sobre todos os seres humanos, foi o do orgulho e da desobediência. A serpente, representando a própria natureza imperfeita do homem, o induziu a comer do fruto proibido (que nem era o sexo nem era a maçã) com a ilusão de que esse fruto o tornaria um imortal igual a Deus, e ele acreditou. E ainda pôs a mulher no meio do caminho, como uma alusão metafórica à influência que a mulher tradicionalmente exerce sobre o homem. E assim os primeiros pais cometeram dois pecados em uma só atitude: o orgulho de quererem ser iguais a Deus e a desobediência da ordem divina. O resultado, todos conhecemos: eles nem ficaram tão sabidos quando o Criador e ainda ficaram se escondendo, porque descobriram a nudez da sua fragilidade e da sua ignorância. Assim se decodifica, em rápidos traços, a metáfora bíblica do paraíso terrestre, lugar considerado meramente simbólico e fisicamente inexistente pela grande maioria dos teólogos contemporâneos. E o mais interessante de tudo é que, estudando as culturas de outros povos orientais daquele tempo, percebeu-se que em outras regiões também havia histórias semelhantes a essa do paraíso, sem nenhuma relação com a tradição hebraica. Quem tiver interesse sobre esse tema, sugiro que faça pesquisa na internet sobre Gilgamesh.

Voltando ao assunto da carta de Paulo aos Romanos, há uma outra polêmica doutrinária que divide os teólogos e está associada a esse texto, na parte em que Paulo diz que “por um homem entrou o pecado no mundo e por um homem entrou a graça”. A expressão “um homem” é interpretada no sentido estritamente literal por alguns para afirmarem que a teoria evolucionista é contrária à Bíblia e ao cristianismo. De acordo com a teoria evolucionista, não havia apenas “um casal” que deu início à raça humana, mas havia grupos de seres vivos que foram se destacando por sua inteligência superior aos demais e isso ocorreu em algumas regiões do planeta. Então, essa afirmação de que foram vários os iniciadores do gênero humano, e não “um casal”, conforme consta na metáfora do paraíso, leva muitas pessoas a rejeitarem o evolucionismo. Essa polêmica já foi objeto até de processo judicial contra escolas, quando pessoas com esse entendimento quiseram evitar que os seus filhos fossem doutrinados em sentido contrário. Lamentavelmente, o texto bíblico tem essa característica de se prestar tanto a afirmar algo num determinado sentido, quanto noutro sentido às vezes totalmente oposto, dependendo da forma como o leitor interpreta e compreende. Ao meu ver, conforme aduzi acima, a finalidade da lição de Paulo não é ensinar que “um homem” trouxe o pecado e “um homem” trouxe a salvação, mas dizer que o pecado entrou no mundo com a desobediência e isso provocou uma decaída qualitativa dos seres humanos, situação que foi sanada com a redenção trazida por Cristo. Mas o assunto é muito extenso e polêmico e eu não devo me alongar aqui neste espaço.

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domingo, 15 de junho de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - O MISTÉRIO MAIOR - 15.06.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE – O MISTÉRIO MAIOR - 15.06.2014

Caros Confrades,

Neste domingo após Pentecostes, a liturgia celebra a festa da Santíssima Trindade, encerrando o tempo pascal. A partir do próximo domingo, retornam os domingos do tempo comum. A imagem do Deus Uno e Trino é o maior mistério que Jesus revelou na sua pregação e essa verdade é o centro da fé cristã. Nenhuma outra religião, apenas o cristianismo, tem a fé fundamentada em um Deus que é uno e conforma-se em três pessoas. No Antigo Testamento, o povo hebreu conhecia apenas o Deus da aliança, o todo poderoso mas também o terrível. A revelação divina foi, então, apenas parcial. Somente a encarnação de Cristo trouxe a imagem completa do Deus da aliança, de modo que por Ele foi celebrada uma Nova Aliança, agora com o Deus Trindade. Esse é o significado do Novo Testamento.

Na primeira leitura, retirada do livro do Êxodo (Ex 34, 4-9), lemos o diálogo de Moisés com Javé, logo após haver recebido as tábuas da lei. Moisés descia do monte com as tábuas na mão e pediu clemência a Javé por aquele povo, pois ele já sabia que seria difícil a missão dele como líder, que devia levar todos ao cumprimento daquela lei. Conhecendo as suas tribos, Moisés ficou preocupado e foi logo pedindo a Javé: tem paciência com esse povo, que é um povo de cabeça dura, e perdoa-lhes os pecados, acolhe-os como Teu povo. É exatamente essa a imagem de Javé que predomina no Antigo Testamento: um Deus exigente, irascível, que aplica grandes castigos por causa das atitudes contrárias à lei, mas ao mesmo tempo, misericordioso e sempre pronto a perdoar. Era essa a figura de Deus desenhada na mente do povo hebreu e que Jesus veio desfazer, quando ensinou que Deus é amor. Era muito difícil para aqueles hebreus moldarem uma nova compreensão do Deus da aliança, esse foi o grande esforço pedagógico de Jesus tanto no grupo dos apóstolos quanto nas discussões com os fariseus. Além de ser a mais verdadeira expressão da bondade e da misericórdia, esse Deus ainda é múltiplo, sem deixar de ser um. Convenhamos, foi exigida dos hebreus uma mudança tão radical de pensamento acerca de Javé que eles não conseguiram aceitar nem compreender. E no meio dessa dúvida, terminaram por condenar à morte Aquele que veio trazer a notícia.

Conforme já tive oportunidade de esclarecer em comentários anteriores, os conceitos de revelação e mistério se atraem mutuamente. O sentido comum da palavra mistério, na nossa cultura, é daquela verdade que a nossa razão não consegue entender, no entanto, o sentido etimológico da palavra grega mysterion é de algo conhecido apenas por um pequeno grupo, uma informação à qual apenas algumas pessoas têm acesso. Portanto, mysterion tem mais a ver com algo secreto do que com algo incompreensível. Quando nós falamos nos mistérios da nossa fé, no sentido etimológico grego, estamos dizendo algumas verdades, algumas informações que antes estavam escondidas, mas que nos foram trazidas por Cristo; isto é o que chamamos de revelação.

As discussões e as tentativas de compreensão sobre a informação trazida por Cristo acerca da Trindade causou muita celeuma nas primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas doutrinas depois consideradas heréticas, porque não admitiam a mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de nome Ario, ensinava que Cristo é filho de Deus, mas não é igual a ele, seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que Cristo tinha apenas uma natureza, a divina, e a sua humanidade era apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível. Essas doutrinas foram discutidas e, por fim, definidas nos Concílios de Nicéia (325) e Constantinopla (381), quando foi composto o “symbolo”, isto é, o resumo doutrinário que nós chamamos de “credo” e o rezamos na missa. A propósito, o Concílio de Nicéia irá completar 1.700 anos no ano de 2025 e, no mês passado, durante sua viagem à Terra Santa, o Papa Francisco, juntamente com o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu, lançaram um plano conjunto de comemoração desse significativo evento. Nicéia fica próxima a Constantinopla.

A segunda leitura, extraída da carta de Paulo aos Coríntios (2Cor 13, 11-13), traz apenas três curtos versículos, cuja finalidade é muito mais demonstrar como o apóstolo Paulo, logo nos primeiros tempos do cristianismo, ensinava a doutrina da Trindade. “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós ” (2Cor 13, 13) Não apenas nesta, mas em todas as suas cartas, Paulo faz questão de sempre aludir às três pessoas divinas, pois estas são o ponto central da nossa fé. A partir das lições de Paulo, as orações e invocações litúrgicas passaram a adotar sempre a referência à Trindade e sempre terminam com a invocação clássica: por Jesus Cristo, que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina por todos os séculos. A demonstração de que a Trindade está no centro da vida cristã se verifica pela frequência com que a invocamos em todas as orações e ações. É comum as pessoas sempre iniciarem ou concluírem uma atividade com o sinal da cruz, que não é outra coisa senão uma invocação da Trindade.

É interessante examinar o cuidado linguístico que os teólogos redatores do Credo tiveram ao compor o resumo simbólico das verdades da fé: o Filho é gerado, não é criado. Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas no linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o mundo, o ser humano, as coisas em geral foram criadas por Deus, mas o Filho foi gerado. Esta diferença conceitual significa que o Filho tem a mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as coisas do mundo não têm a mesma natureza do Criador. Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra pessoa divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a nossa racionalidade não consegue entender. Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino foi socorrer-se das categorias de Aristóteles não para explicar a verdade trinitária, porque esta não comporta nas cavidades do intelecto humano, mas para justificar, perante os adversários do cristianismo que, embora não sendo racional esse conceito, por outro lado, não encerra uma contradição e, por isso, não é contrário à razão. O fato de ser incompreensível não é porque contenha algo impossível de existir, mas apenas porque as limitações da nossa capacidade racional nos impedem de entender. Daí ser necessária a fé, que complementa a razão. Todos se lembram daquele famoso poema de Sto Tomás, do qual se cantam duas estrofes quando tem a bênção do Santíssimo Sacramento. Sto Tomás escreveu exatamente isso que eu repeti acima: a fé vem em socorro da racionalidade. Vou escrever em latim, para ficar mais original: Tantum ergo sacramentum veneremur cernui. Et antiquum documentum novo cedat ritui, praestet fides suplementum sensuum defectui. Traduzindo a última frase: que a fé forneça um suplemento para a falha dos sentidos, isto é, que a fé ajude a completar aquilo que os sentidos sozinhos não conseguem perceber.

O trecho do evangelho colhido pela liturgia (Jo 3, 16-68) não me pareceu bem adequado para a festa da Santíssima Trindade, porque nestes versículos João fala apenas do Pai e do Filho, não faz uma referência ao Espírito Santo. Há outros trechos mais significativos, que fazem referência às três pessoas divinas. Neste, apenas de forma indireta, quando João alude ao Espírito, ao afirmar que “Deus amou tanto o mundo que mandou seu Filho unigênito...” (Jo 3, 16). Podemos entender que esse Amor sem medida é a pessoa do Espírito divino, como concluiu o Concílio de Constatinopla ao compor a redação final do Credo:  o Espírito é fruto de uma relação de amor entre o Pai e o Filho, então, o amor do Pai para com o mundo, ao ponto de enviar o seu próprio Filho, é também uma afirmação indireta da pessoa do Espírito Santo. Mas há, com certeza, outros trechos mais explícitos e que caberiam melhor no contexto litúrgico da festa da Trindade.

Meditemos sobre essa verdade imensa e una, que é de fato o elemento central da nossa fé cristã. Se tivermos sempre presente na mente essa verdade, as nossas atitudes cristãs terão muito mais sentido.

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domingo, 8 de junho de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE PENTECOSTES - 08.06.2014 - UMA NOVA IGREJA

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE PENTECOSTES – 08.06.2014 – UMA NOVA IGREJA

Caros Confrades,

Dentro do ciclo histórico-catequético do ano litúrgico, celebramos mais uma vez o domingo de Pentecostes. A vinda do Paráclito confirma as promessas de Cristo aos apóstolos e marca o início oficial da 'ekklesia', a comunidade das pessoas de boa vontade, que acreditam n'Ele e se responsabilizam por levar adiante a sua doutrina. A celebração de Pentecostes marca assim o evento inaugural oficial da Igreja de Cristo. Durante a sua catequese com aquele grupo de galileus, por três anos, e em seguida, após a sua ressurreição, com uma reciclagem doutrinal, Jesus criou uma equipe de operários, que iriam disseminar pelo mundo a sua mensagem. No entanto, foi a vinda do Espírito que deu o início oficial da Igreja, com aquela memorável pregação de Pedro, dirigindo-se à multidão que acudiu ao local de onde se ouviu um grande estrondo, conforme está narrado em Atos 2,2. Ali foi uma espécie de aula magna para ouvintes representando os povos de diversas nações, que se encontravam em Jerusalém e, pela ação do Espírito, eles ouviram a pregação de Pedro no seu próprio idioma, funcionando a eloquência do Espírito como um tradutor instantâneo. O escritor de Atos, o evangelista Lucas, com o detalhismo que lhe é peculiar, teve o cuidado de enumerar as nacionalidades dos presentes, conforme consta em Atos 2,9: “partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia,da Frígia e da Panfília, do Egito e da parte da Líbia próxima de Cirene, também romanos que aqui residem; judeus e prosélitos, cretenses e árabes”, em resumo, habitantes de todos as nações que tinham algum contato com os romanos, que na época eram quase todas as regiões conhecidas. Excetuando o extremo oriente (China, Índia, Japão, Mongólia, que eram conhecidas mas não negociavam com os romanos) e as américas (que não eram ainda conhecidas), Lucas faz questão de declarar que todas as nações do mundo estavam presentes naquela ocasião e ouviram a pregação de Pedro.

A vinda do Espírito cumpriu a principal promessa de Jesus, quando enviou os discípulos a pregarem pelo mundo o seu evangelho, qual seja: estarei convosco até o fim do mundo. Desse modo, embora a liturgia celebre a festa de Pentecostes apenas em um domingo do ano, devemos estar cientes de que a vinda do Espírito não foi um fenômeno que aconteceu naquele dia, mas que continua a ocorrer todos os dias, em todas as comunidades cristãs, falando coletivamente, e em cada cristão, falando subjetivamente. Pelo sacramento da crisma, cada cristão celebra o seu Pentecostes particular, recebendo o Espírito já não mais em forma de língua de fogo, mas nem por isso de um modo menos abrasador. Pelo batismo, nós ingressamos na comunidade dos cristãos, mas é pela crisma que nos habilitamos verdadeiramente para o exercício do envio à missão, da mesma forma como aconteceu com os apóstolos, naquele dia de Pentecostes. São Paulo, na epístola aos Coríntios (1Cor 12, 4) diz que há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Então, a missão de cada um dentro da Igreja pode ser diferente, mas nos anima e nos une o mesmo Espírito. Os cristãos ordenados, os clérigos, têm a missão de testemunhar Cristo e de anunciá-lo a todos, pregando a palavra e presidindo os trabalhos, seguindo na frente (esse é o sentido original do verbo latino praesum=presidir). Os cristãos não ordenados, os leigos, têm a missão de testemunhar Cristo e anunciá-lo a todos com o seu exemplo, com as suas obras e atitudes.

Ainda na carta a Coríntios acima citada (1Cor 12,12), Paulo explica e exemplifica essa diversidade de dons, de carismas, de tarefas, através do pedagógico exemplo do corpo: “Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo.” É a conhecida doutrina teológica do “corpo místico de Cristo”, da qual já ouvimos falar tantas vezes, mas é sempre necessário recordá-la, para que nos conscientizemos da função que cada um de nós deve assumir nesse contexto. Não é necessário fazer nenhum esforço, basta deixar agir o Espírito que está em cada um de nós, basta ouvir a voz da nossa consciência, que nos transmite a mensagem vinda do Espírito. Todos sabemos que o exemplo vale mais do que as palavras. Então, o nosso maior testemunho será viver o dia a dia como autênticos cristãos. Há certas pessoas, sobretudo entre algumas denominações cristãs não católicas, que interpretam de forma literal o mandato de Cristo (ide e pregai a todas as criaturas) e nós os vemos, às vezes, em praças e locais públicos com a Bíblia na mão e um equipamento de amplificação de som a fazerem pregações, que em vez de atrairem as pessoas, causam o efeito oposto nelas. Eu soube de um desses pregadores que chegava numa praça de Fortaleza todos os domingos bem cedo da manhã e começava a sua leitura e pregação ali sozinho, num momento em que a praça estava vazia. O seu discurso, ainda que bem intencionado, incomodava os moradores das residências próximas, os quais chamaram a polícia acusando-o de perturbar o silêncio. Ou seja, as suas palavras tiveram nenhum resultado. Por isso, repito que mais do que falar, discursar ou discutir religião com as pessoas, o nosso maior testemunho será com o bom exemplo silencioso, coerente, convicto, esse produz muito mais efeito do que palavras bíblicas ao vento, levadas por aparelhos sonoros.

A festa de Pentecostes deve ser também a festa da unidade dos cristãos ou, mais do que isso, a unidade de todos os povos. Foi o grande desafio lançado por Cristo aos apóstolos: ide e pregai a todos os povos, para que se tornem um só rebanho. Esta profecia de Cristo continua sendo o maior desafio a ser enfrentado e vencido por todos os lideres religiosos, principalmente aqueles que comandam as religiões monoteistas. Faz poucos dias, na viagem do Papa a Jerusalém, ele reuniu e conclamou os líderes do judaísmo e do islamismo para, juntamente com ele, realizarem ações direcionadas para a união dos seus liderados. Hoje, no domingo de Pentecostes, o Papa recebeu em audiência, na sua residência em Roma, esses mesmos líderes dos judeus e dos islâmicos, para tratarem de três temas comuns ao cristianismo, judaísmo e islamismo: o agradecimento a Deus pela criação, a busca do perdão por erros do passado e rezas a Deus para que a paz se restabeleça no Oriente Médio. Enquanto isso, setores internos radicais da própria Cúria Romana torcem o nariz e vociferam contra esses esforços do Papa pela paz entre os povos, acusando-o de abandonar as tradições da Igreja, de protestantizar o Vaticano, de enfraquecer a autoridade eclesiástica com esses gestos que demonstram humildade e fraqueza. No domingo passado, eu já comentei aqui o encontro do Papa com o Patriarca de Constantinopla, ocasião em que eles juntos deram início a uma ação conjunta em preparação para o aniversário de 1.700 anos do Concílio de Nicéia, num outro gesto concreto em busca da união das igrejas cristãs orientais e ocidental.

Meus amigos, nesta festa de Pentecostes, devemos pedir ao Espírito que ilumine e fortaleça o Papa, nessa sua busca tenaz e obstinada por construir uma nova Igreja. O Papa Francisco está seriamente imbuído do mesmo espírito do Seráfico Patriarca de Assis, na tentativa de reconstruir a Igreja, mantendo-se fiel a ela. É do que nós cristãos mais precisamos, nesses tempos conturbados e temerários. O Papa está empenhado em conduzir de volta a Igreja de Cristo para o seu verdadeiro objetivo, que é transformar todos povos no único rebanho de Cristo, contudo as pessoas que ocupam elevados cargos na hierarquia estão mais preocupados com as tradições e com os protocolos, estão mais receosos de perderem seus gordos salários e seus exclusivos privilégios, por isso não querem que o Papa mexa em nada, deixe tudo como está e apenas se mantenha seguindo a burocracia, de olho no Direito Canônico e se autoproclamando como único dono da verdade, foi assim que os Papas fizeram nos últimos séculos. Eu penso que a vontade do Papa seria mesmo destituir todos esses dignitários que ocupam aqueles vetustos escritórios curiais e renovar radicalmente os seus quadros. Mas ele sabe que isso provocaria uma espécie de “guerra civil” no Vaticano e os resultados seriam imprevisíveis, inclusive para ele próprio. Por isso, ele precisa agir com moderação.

Mas não resta dúvida de que o Papa está visivelmente sendo conduzido pelo Espírito Santo, nessa sua tarefa de redesenhar a identidade da Igreja Católica e é realmente dele, mais do que de todos os outros Bispos e Sacerdotes, a responsabilidade por bem conduzir essa missão. Ninguém atualmente duvida que o Papa tem um grande carisma e é isso que o move. Apenas para lembrar que kharisma, em grego, é um substantivo derivado do verbo khairôw, que significa estar alegre, ter motivo de alegria; kharisma é, portanto, obséquio, dom, marca de felicidade. Penso que a palavra carisma, no seu significado original, traduz perfeitamente a personalidade do Papa e o credencia para a realização dessa árdua e difícil tarefa a que ele se propôs. Com toda certeza, ele não está sozinho nessa empreitada, mas o Espírito está com ele e as orações de todos nós, verdadeiros cristãos, são essenciais para o bom êxito das suas ações.

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domingo, 1 de junho de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA ASCENSÃO - A MISSÃO - 01.06.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA ASCENSÃO -  A MISSÃO – 01.06.2014

Caros Confrades,

Celebramos neste domingo a festa da Ascensão do Senhor, preparando os nossos espíritos para a festa de Pentecostes, no domingo próximo. Ao se despedir dos apóstolos, naquela sua última aparição na Galiléia, Jesus deu-lhes uma ordem e fez uma importante promessa. A ordem foi: ide pelo mundo e batizai a todos. A promessa foi: eu estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo. O decorrer dos séculos confirma que a promessa de Jesus continua a vigorar no meio de nós.

Na primeira leitura, retirada dos Atos dos Apóstolos, como acontece em todos os anos neste domingo, lê-se o trecho inicial (At 1, 1-11), no qual o escritor sagrado narra a subida de Jesus ao céu, após despedir-se dos apóstolos. Jesus promete enviar, dentro de poucos dias, o Paráclito e sobe ao céu perante eles, maravilhados. Curioso é observar que, após três anos de catequese diuturna com o grupo, após um período de “recuperação” nos quarenta dias que sucederam a sua ressurreição, ainda havia alguém que não entendera a lição. O escritor sagrado evita o constrangimento de citar os nomes, dizendo apenas que alguns perguntaram: Senhor, é agora que vais restaurar o reino em Israel? Eu fico aqui imaginando a expressão facial de Jesus e o que se passou no seu pensamento naquela ocasião. Ele preferiu fazer-se de desentendido e dar uma resposta bem genérica: não vos cabe saber o dia nem a hora que o Pai determinou... Percebe-se, nesse contexto, que Judas Iscariotes não era o único zelote do grupo, apenas ele foi o mais afoito e presunçoso. Os zelotes eram uma espécie de partido de oposição dos romanos, que dominavam a região, e achavam que Jesus seria o lider que iria comandar a expulsão dos dominadores. Portanto, na hora da despedida de Jesus, ainda havia entre os discípulos alguém que não havia compreendido o que estava fazendo ali.

Um fato que merece destaque na leitura dos Atos é o trecho conclusivo do escritor sagrado Lucas, quando ele escreveu (At 1, 11): “Apareceram então dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: 'Homens da Galiléia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi levado para o céu, virá do mesmo modo como o vistes partir para o céu.” Lucas era um escritor que apreciava contar os detalhes dos fatos que narrava: dois homens vestidos de branco. Ele não diz que eram dois anjos, mas a tradição sempre entendeu assim. Os pintores medievais, que exploraram muito os temas bíblicos, fizeram imagens de anjos nas pinturas da ascensão de Jesus, contribuindo para reforçar essa idéia. Mas também merece destaque o trecho em que o escritor diz: “Ele virá do mesmo modo como o vistes subir.” Por causa disso, os primeiros cristãos acreditavam que, a qualquer momento, Jesus retornaria, interpretando essa passagem como uma promessa de cumprimento imediato. Por muitos séculos, a arte sacra representou essa passagem dos Atos relacionando com o fim do mundo, gerando na mente dos cristãos um quadro hipotético de grande esplendor e, ao mesmo tempo, de medo e insegurança. Ao que se pode supor, o próprio Lucas, escritor dos Atos, pensava assim mesmo. Porém, com o decurso dos tempos, os biblistas passaram a compreender esse texto como uma descrição metafórica. A interpretação atual já não aposta na ocorrência de “um dia” específico em que Jesus descerá, do modo como está escrito em diversas passagens do Novo Testamento. Na verdade, esse encontro com Cristo acontecerá para cada fiel, quando este encerrar a sua missão terrena e for encontrar-se com o Julgador. Da forma como está textualmente escrito na Bíblia, esse texto se presta mais a justificar algumas teorias da doutrina espírita acerca da reencarnação e da comunicação com os espíritos.

A segunda leitura, da carta aos Efésios, traz um trecho da doutrina paulina acerca da divindade de Cristo, em consonância com o texto lido no evangelho escrito por Mateus, ambos dizendo que Jesus recebeu do Pai toda autoridade neste mundo e no outro. Paulo diz assim (Ef 1, 20-21): “Ele [o Pai] manifestou sua força em Cristo, quando o ressuscitou dos mortos e o fez sentar-se à sua direita nos céus, bem acima de toda a autoridade, poder, potência, soberania, ou qualquer título que se possa mencionar, não somente neste mundo, mas ainda no mundo futuro.” E em seguida, Paulo faz a sua conhecida comparação da Igreja com o corpo místico de Cristo, sendo Ele a cabeça e nós os seus membros. Essa doutrina paulina se constitui num dos ensinamentos teológicos mais antigos e mais conhecidos no mundo cristão. De fato, Paulo foi muito feliz no acerto dessa comparação, transmitindo uma ideia complexa através de um exemplo bastante simples. E por saber que se tratava de um assunto tão importante quanto difícil, Paulo ora ao Pai para que faça aqueles cristãos de Éfeso compreenderem verdadeiramente essa doutrina. A comunidade de Éfeso foi sempre uma igreja local muito próspera e exemplar. Basta lembrar que João evangelista terminou seus dias como bispo de lá, assinalando a importância daquela comunidade para o mundo cristão antigo.

No evangelho, lemos hoje a parte final do texto de Mateus, no qual ele narra a despedida de Jesus, em termos bem parecidos com o texto de Atos, escrito por Lucas. Até a referência acerca da dúvida de alguns, que Lucas menciona com mais detalhes, mas Mateus ratifica isso quando diz que “alguns ainda assim duvidaram” (Mt 28, 17). E o texto de Mateus também está em sintonia com a carta aos Efésios, quando afirma que Jesus falou: todo o poder me foi dado no céu e sobre a terra. Trata-se de uma autoafirmação de Jesus acerca da sua divindade. Ele provou isso logo em seguida, quando começou a subir na presença deles. Mas antes disso, Jesus renovou aos discípulos a sua ordem mais significativa: fazei discípulos meus todos os povos. Essa foi a missão que Jesus deu diretamente aos seus discípulos e, indiretamente, é a missão que ele espera que todos nós façamos. No texto dos Atos (1, 8), essa mesma missão é dita com outras palavras: “recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra”. A missão de batizar, isto é, transformar um fiel em discípulo de Cristo, é própria dos cristãos ordenados; mas a missão de testemunhar é comum a todos os cristãos. E esse testemunho não tem limites: até os confins da terra.

Em seguida, vem a grande promessa de Jesus: eu estarei convosco todos os dias até o fim do mundo. Essa é a garantia do cumprimento da missão. Eu não vos deixarei órfãos, disse Ele em outro momento. Ele se referia à vinda do Espírito, o “outro” Paráclito, conforme comentamos aqui no domingo passado. Na verdade, é o Espírito que está conosco, o nosso corpo é o templo d'Ele, o Espírito é aquele que procede do Pai e do Filho, portanto, onde está o Espírito, encontram-se aí também o Pai e o Filho. O Espírito é também aquele que confere a unidade da Igreja. E aqui nós entramos num outro tema, que foi objeto de uma mensagem do Papa Francisco, na semana passada.

Em sua visita à Terra Santa, o Papa Francisco teve um encontro histórico com o Patriarca Bartolomeu, de Constantinopla. No comentário da semana passada, eu já fazia referência a essa memorável viagem. Então, os dois Chefes máximos das duas Igrejas mais representativas do cristianismo – Roma e Constantinopla anunciaram em conjunto a criação de um grupo de trabalho que preparará as festividades do aniversário de 1.700 anos do Concílio de Nicéia, que ocorrerá em 2025. Pode parecer que ainda falta muito tempo, mas um evento desse porte precisa de um conjunto de atividades preparatórias que demandam muito esforço e dedicação. E o Concílio de Nicéia é o que se pode considerar o concílio padrão, porque foi o primeiro concílio verdadeiramente ecumênico, reunindo bispos do ocidente e do oriente, e além disso, foi nele que ocorreu a proclamação do símbolo da fé cristã, o Credo que hoje nós rezamos na missa. Foi o fim de uma era de muita conturbação no cristianismo, quando foram resolvidas questões fundamentais acerca os pontos chaves da fé cristã. Esse evento será mais uma prova da presença de  Cristo junto à Sua igreja até o fim do mundo e um grande passo que será dado em vista da unidade dos cristãos do ocidente com os do oriente, que é uma grande mácula milenar a ser exorcizada. Pelo que se pode deduzir da boa vontade dos dirigentes eclesiásticos, o caminho está aberto e as perspectivas são muito favoráveis.

Meus amigos, que nós nunca esqueçamos nem descuidemos do nosso compromisso de ser testemunhas de Cristo, conforme Ele nos recomendou.