Caros Confrades,
As leituras deste 6º
domingo da Páscoa nos trazem, outra vez, a recomendação de Cristo
para o cumprimento do primeiro e maior dos mandamentos: o amor. A
ênfase está nos textos escritos por João (1ª Carta 4, 7 –
evangelho 15, 9). Mas eu quero direcionar meu comentário para a 1ª
leitura, do livro dos Atos (10, 25), que mais uma vez relata
maravilhas realizadas pelos discípulos de Cristo.
As leituras da liturgia
semanal, sempre retiradas do livro dos Atos, narram diversas missões
de Paulo, Barnabé, Pedro e outros discípulos. Na leitura de ontem,
sábado, está o relato do primeiro encontro de Paulo com Timóteo,
que foi circuncidado por Paulo e depois seguiu viagem com ele, para
pregar o evangelho. Este relato da circuncisão de Timóteo por
Paulo, nos primeiros anos do cristianismo, demonstra como ainda se
misturavam os costumes judeus com as novas práticas cristãs. Os
judeus convertidos insistiam que os 'pagãos' convertidos deviam
submeter-se ao ritual da circuncisão, como requisito para aderirem
ao cristianismo, e isso gerou diversas polêmicas dentro da
comunidade, envolvendo também opiniões divergentes também entre os
discípulos. O fato de Paulo circuncidar Timóteo significa que ele
(Paulo) queria agradar os judeus, embora talvez não achasse que
fosse necessário. Mas acolher na comunidade um incircunciso poderia
gerar outras polêmicas, que ele pretendia evitar.
Na primeira leitura de
hoje (At 10,25) consta o episódio em que Cornélio se prostrou
diante de Pedro, e este pediu que ele se levantasse, porque era
humano tanto quanto ele. Com certeza, Cornélio via Pedro como um
verdadeiro representante de Cristo, ou talvez o próprio Cristo. O
texto de Atos não diz se Cornélio era judeu ou grego. Mas em
referência a esse episódio, Pedro pronunciou um discurso que é
considerado fundamental para encerrar essa polêmica dos judaizantes
- “estou compreendendo que Deus não faz distinção entre pessoas,
pelo contrário, Ele aceita quem o teme e pratica a justiça,
qualquer que seja a nação a que pertença”. Este discurso é
significativo porque dá a entender que Pedro ainda estava em dúvida
sobre de que lado deveria se posicionar na questão entre judeus e
gentios, mas naquela ocasião, ele declarou que afinal tinha
compreendido o fato, de modo a encaminhar uma solução. E diz o
texto de Atos (10, 44) que Pedro ainda estava falando, quando o
Espírito Santo desceu sobre todos os que ouviam a palavra. Isso veio
confirmar o que Pedro acabara de afirmar, isto é, o Espírito Santo
confirmou o discurso de Pedro perante todos os presentes. E continua
o texto de Atos (10, 45) afirmando que os “judeus” ficaram
admirados ao verem o Espírito Santo descendo também sobre os
pagãos, eles que se consideravam os autênticos seguidores de
Cristo, por serem judeus convertidos e pensavam ser necessário que
os pagãos primeiro se tornassem judeus (pela circuncisão), para
depois se tornarem cristãos.
Com efeito, o texto
latino traduzido pela CNBB usa aqui a palavra 'judeus', mas o texto
original de São Jerônimo diz 'circuncisione fideles', ou seja, os
que eram leais ao judaísmo, que acreditavam na circuncisão. Nesse
contexto, ficou então decidida a polêmica, confirmando-se que a
circuncisão não seria necessária, surgindo daí o conceito de um
Deus isonômico, que não faz distinção entre judeu, grego, romano
ou asiático ou de qualquer outra nação, circunciso ou
incircunciso, pois o Espírito de Deus foi derramado sobre os pagãos
na presença dos judeus, para que eles não tivessem mais dúvida
sobre a isonomia divina.
Esse trecho dos Atos
cap 10 nos coloca ainda diante de duas polêmicas históricas, além
da questão dos judaizantes. São eles: o versículo 46, onde diz que
os 'circuncisione fideles', isto é, os adeptos da circuncisão
ouviram os pagãos 'falando em línguas' e louvando as maravilhas do
Senhor; e o versículo 47, quando Pedro diz: o que nos impede de
batizar estes que receberam o Espírito, assim como nós recebemos?
Aqui temos duas descrições problemáticas: a 'fala em línguas' e a
descida do Espírito Santo sobre os que ainda não haviam sido
batizados, ou seja, antes do batismo deles.
Sobre o tema de 'falar
em línguas', algumas igrejas não-católicas e, entre os católicos,
os membros do Shalom, entendem isso como pronunciar palavras
desconexas, expressar fonemas sem nenhum nexo semântico. Eu já ouvi
isso (vocês talvez já ouviram também) nas emissoras de rádio de
algumas igrejas autodenominadas 'evangélicas', e também nas
'igrejas eletrônicas' pela TV, de repente o 'locutor' emenda
palavras compreensíveis com fonemas inexpressivos e quer significar
com isso que está 'falando em línguas'. Pela leitura do texto dos
Atos, eu entendo a expressão 'loquentes linguis' como falando
línguas que os judeus não entendiam. Naquelas regiões não
judaicas e não romanas, a língua predominante era a grega, mas os
diversos povos tinham línguas próprias, das suas próprias etnias,
como ainda hoje ocorre na África, onde as pessoas falam inglês ou
francês, mas conservam suas línguas tribais. Eu compreendo essa
expressão 'loquentes linguis' como se fosse 'falando na língua
deles próprios', isto é, falando uma língua diferente do aramaico
(que os judeus falavam) e do grego (que os gentios falavam). Essas
línguas próprias eram incompreensíveis para os judeus, mas isso
não quer dizer que eles estivessem falando palavras desconexas,
fonemas sem sentido. Eles estavam aclamando as maravilhas de Deus nas
línguas de suas etnias. O texto grego de Atos é bem mais claro
sobre isso e está coerente com o que eu afirmei. Diz assim,
transcrevendo em letras latinas: “auton lalounton glossais”, ou
seja, falando nas próprias línguas. Explicando as palavras: auton –
o próprio, o mesmo, de si mesmo, por si mesmo; lalounton – flexão
do verbo laleô – falar; glossais – língua seja no sentido do
órgão corporal, seja no sentido do idioma falado. São Jerônimo,
ao traduzir para o latim, simplificou com a expressão 'loquentes
linguis', não colocou o adjetivo 'ipsis', que seria o equivalente ao
grego 'auton'. Daí que na tradução para o português, ficou a
insólita expressão 'falando em línguas' como se fosse algo
exótico, incompreensível. Para sermos mais exatos, devemos entender
aí 'falando nas próprias línguas'.
A outra questão aberta
aqui é a descida do Espírito Santo antes do batismo. Na primeira
vez em que o Espírito apareceu foi no batismo de Jesus no Jordão, e
veio depois do batismo. Os apóstolos não foram batizados, porque
Cristo não colocou isso como condição. Na verdade, eles foram
batizados com o próprio sangue, pois foram todos martirizados, à
exceção de João. Em outras passagens narradas nos Atos, ocorre a
vinda do Espírito sobre os ouvintes, como confirmação da pregação
dos apóstolos, antes do batismo. Mas a catequese oficial diz que o
batismo deve ser administrado em primeiro lugar, como o primeiro
sacramento e como condição para a recepção dos demais. Não há
dúvida de que, com Jesus, foi assim que aconteceu. Mas o que se lê
em Atos é que o Espírito desceu antes do batismo. A passagem lida
na liturgia de hoje é uma confirmação disso. Parece-me que a
tradição está colocada acima do exemplo bíblico.
Quero agora fazer uma
alusão ao episódio inicial, em que Cornélio de prostra diante de
Pedro e este manda que ele se levante, porque é tão humano quanto
ele. Pois bem, percebe-se aí um ato inequívoco de Cornélio
reconhecendo a autoridade de Pedro dentro da comunidade eclesial. E
por outro lado, percebe-se também a atitude humilde de Pedro de não
se considerar digno de que alguém se prostre diante dele, porque só
se faz isso diante de Deus. Ora, com o passar dos tempos, na Idade
Média, os bispos, sucessores dos apóstolos, não apenas gostavam
disso, mas até exigiam isso dos subalternos. No tempo da Igreja
mandatária, era comum que até os reis e rainhas se prostrassem
diante do Papa. Essa atitude humilde de Pedro ficou esquecida por
muito tempo, até ser resgatada pelo Concílio Vaticano II, que
expressou isso na constituição Lumen Gentium. O bispo emérito de
Blumenau, Dom Ângelo Sândalo, no jornalzinho O Domingo de hoje,
destaca este fato, ele que foi um dos participantes do Concílio. O
Concílio afirmou que a Igreja é o Povo de Deus. Isso veio terminar
com aquela ideia de que a Igreja era composta somente pelo Papa, os
Bispos e os Padres, ou seja, a Igreja das autoridades. O povo era
apenas o 'rebanho' que seguia as ordens das autoridades. Diz o
referido bispo: na Igreja, há profunda igualdade entre todos, o que
nos diferencia são as vocações, os carismas, os serviços, os
dons. Todos somos povo de Deus. Meus amigos, essa 'igualdade de
todos' dentro da Igreja está em total coerência com o título desse
meu comentário, sobre o Deus isonômico. Mas a realidade da vida
eclesial, nas Dioceses e Paróquias, não evidencia tal igualdade, ao
contrário, o sentido da autoridade ainda é o que predomina. De
fato, essa isonomia total dentro da Igreja, distinguindo-se só pelas
vocações, carismas, serviços e dons ainda se encontra apenas no
papel. Sem os fiéis, no entanto, não existe
Igreja-ekklesia-comunidade.
Que o Espírito ilumine
sempre e cada vez mais as autoridades eclesiais e todos nós, para
sermos coerentes com o que Ele espera de nós.
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