domingo, 20 de maio de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO DA PÁSCOA – DEUS ISONÔMICO – 13.05.2012



Caros Confrades,

As leituras deste 6º domingo da Páscoa nos trazem, outra vez, a recomendação de Cristo para o cumprimento do primeiro e maior dos mandamentos: o amor. A ênfase está nos textos escritos por João (1ª Carta 4, 7 – evangelho 15, 9). Mas eu quero direcionar meu comentário para a 1ª leitura, do livro dos Atos (10, 25), que mais uma vez relata maravilhas realizadas pelos discípulos de Cristo.

As leituras da liturgia semanal, sempre retiradas do livro dos Atos, narram diversas missões de Paulo, Barnabé, Pedro e outros discípulos. Na leitura de ontem, sábado, está o relato do primeiro encontro de Paulo com Timóteo, que foi circuncidado por Paulo e depois seguiu viagem com ele, para pregar o evangelho. Este relato da circuncisão de Timóteo por Paulo, nos primeiros anos do cristianismo, demonstra como ainda se misturavam os costumes judeus com as novas práticas cristãs. Os judeus convertidos insistiam que os 'pagãos' convertidos deviam submeter-se ao ritual da circuncisão, como requisito para aderirem ao cristianismo, e isso gerou diversas polêmicas dentro da comunidade, envolvendo também opiniões divergentes também entre os discípulos. O fato de Paulo circuncidar Timóteo significa que ele (Paulo) queria agradar os judeus, embora talvez não achasse que fosse necessário. Mas acolher na comunidade um incircunciso poderia gerar outras polêmicas, que ele pretendia evitar.

Na primeira leitura de hoje (At 10,25) consta o episódio em que Cornélio se prostrou diante de Pedro, e este pediu que ele se levantasse, porque era humano tanto quanto ele. Com certeza, Cornélio via Pedro como um verdadeiro representante de Cristo, ou talvez o próprio Cristo. O texto de Atos não diz se Cornélio era judeu ou grego. Mas em referência a esse episódio, Pedro pronunciou um discurso que é considerado fundamental para encerrar essa polêmica dos judaizantes - “estou compreendendo que Deus não faz distinção entre pessoas, pelo contrário, Ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença”. Este discurso é significativo porque dá a entender que Pedro ainda estava em dúvida sobre de que lado deveria se posicionar na questão entre judeus e gentios, mas naquela ocasião, ele declarou que afinal tinha compreendido o fato, de modo a encaminhar uma solução. E diz o texto de Atos (10, 44) que Pedro ainda estava falando, quando o Espírito Santo desceu sobre todos os que ouviam a palavra. Isso veio confirmar o que Pedro acabara de afirmar, isto é, o Espírito Santo confirmou o discurso de Pedro perante todos os presentes. E continua o texto de Atos (10, 45) afirmando que os “judeus” ficaram admirados ao verem o Espírito Santo descendo também sobre os pagãos, eles que se consideravam os autênticos seguidores de Cristo, por serem judeus convertidos e pensavam ser necessário que os pagãos primeiro se tornassem judeus (pela circuncisão), para depois se tornarem cristãos.

Com efeito, o texto latino traduzido pela CNBB usa aqui a palavra 'judeus', mas o texto original de São Jerônimo diz 'circuncisione fideles', ou seja, os que eram leais ao judaísmo, que acreditavam na circuncisão. Nesse contexto, ficou então decidida a polêmica, confirmando-se que a circuncisão não seria necessária, surgindo daí o conceito de um Deus isonômico, que não faz distinção entre judeu, grego, romano ou asiático ou de qualquer outra nação, circunciso ou incircunciso, pois o Espírito de Deus foi derramado sobre os pagãos na presença dos judeus, para que eles não tivessem mais dúvida sobre a isonomia divina.

Esse trecho dos Atos cap 10 nos coloca ainda diante de duas polêmicas históricas, além da questão dos judaizantes. São eles: o versículo 46, onde diz que os 'circuncisione fideles', isto é, os adeptos da circuncisão ouviram os pagãos 'falando em línguas' e louvando as maravilhas do Senhor; e o versículo 47, quando Pedro diz: o que nos impede de batizar estes que receberam o Espírito, assim como nós recebemos? Aqui temos duas descrições problemáticas: a 'fala em línguas' e a descida do Espírito Santo sobre os que ainda não haviam sido batizados, ou seja, antes do batismo deles.

Sobre o tema de 'falar em línguas', algumas igrejas não-católicas e, entre os católicos, os membros do Shalom, entendem isso como pronunciar palavras desconexas, expressar fonemas sem nenhum nexo semântico. Eu já ouvi isso (vocês talvez já ouviram também) nas emissoras de rádio de algumas igrejas autodenominadas 'evangélicas', e também nas 'igrejas eletrônicas' pela TV, de repente o 'locutor' emenda palavras compreensíveis com fonemas inexpressivos e quer significar com isso que está 'falando em línguas'. Pela leitura do texto dos Atos, eu entendo a expressão 'loquentes linguis' como falando línguas que os judeus não entendiam. Naquelas regiões não judaicas e não romanas, a língua predominante era a grega, mas os diversos povos tinham línguas próprias, das suas próprias etnias, como ainda hoje ocorre na África, onde as pessoas falam inglês ou francês, mas conservam suas línguas tribais. Eu compreendo essa expressão 'loquentes linguis' como se fosse 'falando na língua deles próprios', isto é, falando uma língua diferente do aramaico (que os judeus falavam) e do grego (que os gentios falavam). Essas línguas próprias eram incompreensíveis para os judeus, mas isso não quer dizer que eles estivessem falando palavras desconexas, fonemas sem sentido. Eles estavam aclamando as maravilhas de Deus nas línguas de suas etnias. O texto grego de Atos é bem mais claro sobre isso e está coerente com o que eu afirmei. Diz assim, transcrevendo em letras latinas: “auton lalounton glossais”, ou seja, falando nas próprias línguas. Explicando as palavras: auton – o próprio, o mesmo, de si mesmo, por si mesmo; lalounton – flexão do verbo laleô – falar; glossais – língua seja no sentido do órgão corporal, seja no sentido do idioma falado. São Jerônimo, ao traduzir para o latim, simplificou com a expressão 'loquentes linguis', não colocou o adjetivo 'ipsis', que seria o equivalente ao grego 'auton'. Daí que na tradução para o português, ficou a insólita expressão 'falando em línguas' como se fosse algo exótico, incompreensível. Para sermos mais exatos, devemos entender aí 'falando nas próprias línguas'.

A outra questão aberta aqui é a descida do Espírito Santo antes do batismo. Na primeira vez em que o Espírito apareceu foi no batismo de Jesus no Jordão, e veio depois do batismo. Os apóstolos não foram batizados, porque Cristo não colocou isso como condição. Na verdade, eles foram batizados com o próprio sangue, pois foram todos martirizados, à exceção de João. Em outras passagens narradas nos Atos, ocorre a vinda do Espírito sobre os ouvintes, como confirmação da pregação dos apóstolos, antes do batismo. Mas a catequese oficial diz que o batismo deve ser administrado em primeiro lugar, como o primeiro sacramento e como condição para a recepção dos demais. Não há dúvida de que, com Jesus, foi assim que aconteceu. Mas o que se lê em Atos é que o Espírito desceu antes do batismo. A passagem lida na liturgia de hoje é uma confirmação disso. Parece-me que a tradição está colocada acima do exemplo bíblico.

Quero agora fazer uma alusão ao episódio inicial, em que Cornélio de prostra diante de Pedro e este manda que ele se levante, porque é tão humano quanto ele. Pois bem, percebe-se aí um ato inequívoco de Cornélio reconhecendo a autoridade de Pedro dentro da comunidade eclesial. E por outro lado, percebe-se também a atitude humilde de Pedro de não se considerar digno de que alguém se prostre diante dele, porque só se faz isso diante de Deus. Ora, com o passar dos tempos, na Idade Média, os bispos, sucessores dos apóstolos, não apenas gostavam disso, mas até exigiam isso dos subalternos. No tempo da Igreja mandatária, era comum que até os reis e rainhas se prostrassem diante do Papa. Essa atitude humilde de Pedro ficou esquecida por muito tempo, até ser resgatada pelo Concílio Vaticano II, que expressou isso na constituição Lumen Gentium. O bispo emérito de Blumenau, Dom Ângelo Sândalo, no jornalzinho O Domingo de hoje, destaca este fato, ele que foi um dos participantes do Concílio. O Concílio afirmou que a Igreja é o Povo de Deus. Isso veio terminar com aquela ideia de que a Igreja era composta somente pelo Papa, os Bispos e os Padres, ou seja, a Igreja das autoridades. O povo era apenas o 'rebanho' que seguia as ordens das autoridades. Diz o referido bispo: na Igreja, há profunda igualdade entre todos, o que nos diferencia são as vocações, os carismas, os serviços, os dons. Todos somos povo de Deus. Meus amigos, essa 'igualdade de todos' dentro da Igreja está em total coerência com o título desse meu comentário, sobre o Deus isonômico. Mas a realidade da vida eclesial, nas Dioceses e Paróquias, não evidencia tal igualdade, ao contrário, o sentido da autoridade ainda é o que predomina. De fato, essa isonomia total dentro da Igreja, distinguindo-se só pelas vocações, carismas, serviços e dons ainda se encontra apenas no papel. Sem os fiéis, no entanto, não existe Igreja-ekklesia-comunidade.

Que o Espírito ilumine sempre e cada vez mais as autoridades eclesiais e todos nós, para sermos coerentes com o que Ele espera de nós.


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