Caros Confrades,
Celebramos neste
domingo a festa da Ascensão do Senhor. Convém sempre lembrar que o
dia próprio da festa é na quinta feira anterior, quando se
completam os 40 dias após a ressurreição, segundo o testemunho de
Lucas, nos Atos (1, 3: Durante
quarenta dias, apareceu-lhes falando do Reino de Deus.)
E convém sempre lembrar também a simbologia do número 40, repetida
em diversas passagens da Escritura. A festa litúrgica é celebrada
no domingo por causa do acordo da CNBB com o governo acerca dos
feriados religiosos. Contando a partir da quinta feira da Ascensão
até o domingo próximo, teremos mais 10 dias, formando 50 dias após
a ressurreição, quando celebraremos a festa de Pentecostes, cuja
etimologia significa 'quinquagésimo'. Com efeito, era uma festa
tradicional aquela que os judeus celebravam após sete semanas da
Páscoa (7 x 7) e foi exatamente por isso que havia tanta gente em
Jerusalém naquele dia. Mas deixemos a continuação desse assunto
para o próximo domingo.
Neste domingo da
Ascensão, o tema principal que percebo é o do envio, da missão.
Conforme o texto dos Atos (1, 4), Jesus falou para os apóstolos que
não se afastassem de Jerusalém, porque em breve eles iriam ser
batizados com o Espírito. Os apóstolos ainda mantinham aquela
esperança política do Messias revolucionário e fizeram aquela
pergunta que podemos hoje classificar como ingênua: “é agora que
Tu vais restaurar o reino de Israel?” porque, na mente deles, ainda
não se haviam esclarecido todos os ensinamentos doutrinários
cristãos. Jesus Cristo, mais uma vez, respondeu de forma gentil e
enigmática: não vos cabe saber o dia nem a hora que o Pai
determinou. E novamente confirmou a promessa da vinda do Espírito,
que lhes traria o verdadeiro 'conhecimento' da doutrina, tal como
dirá depois São Paulo, na carta aos Efésios, que está na segunda
leitura de hoje (Ef 1, 17): o
Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito
de sabedoria
que vo-lo revele e faça verdadeiramente
conhecer.
Foi exatamente isso que ocorreu com os apóstolos.
Junto com a confirmação
dessa promessa do Pai, Cristo reafirmou aos apóstolos o motivo para
o qual tinham eles sido chamados para o convívio mais próximo com
Ele: (Atos 1, 8): para
serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e na
Samaria, e até os confins da terra'.
Nas leituras do meio da semana, foram lidos vários trechos de Atos,
em que são narradas as viagens de Paulo pelas diversas comunidades
da Ásia Menor, os debates com os judeus, as conversões em massa, os
sofrimentos passados (espancamentos, julgamentos, prisões).
Lamentavelmente, não teve outro escriba acompanhando as atividades
dos demais Apóstolos em missão, assim como temos as crônicas de
Lucas, em Atos, contando os detalhes das viagens e atividades de
Paulo. Mas com certeza os outros também saíram pelo mundo em
missão, cumprindo o mandado de Cristo. Foi nessa missão que Pedro
terminou por fixar-se em Roma, onde sob o reinado de Nero, foi
crucificado de cabeça para baixo. O martírio de Pedro, assim como
de muitos cristãos judeus e gentios no Coliseu de Roma nesta época,
se deram por causa do famoso incêndio da cidade, encomendado por
Nero, que achava feia a cidade (e era mesmo), então com isso ele
alcançaria dois objetivos: a reforma urbana de Roma e a imposição
da culpa disso aos cristãos. Foi nesse contexto que se deu o
martírio de Pedro. Quem quiser ver uma versão hollywoodiana desses
fatos, procure pelo filme Quo Vadis, onde essa história é contada
em detalhes.
O evangelho de Marcos
lido neste domingo (Mc 16, 15) repete o mesmo tema da missão que
Cristo deu aos apóstolos: “'Ide
pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura! Quem crer
e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado.
” Conforme já dissemos em comentário anterior, estamos seguindo o
ano litúrgico “B”, cujo texto sagrado seguido é o evangelho de
Marcos, embora com inserções ocasionais de João. Isso se verificou
por diversas vezes nesses domingos da Páscoa, porque o texto de
Marcos é por demais sucinto e até com algumas passagens de
linguagem obscura, como a que lemos nesta citação acima: quem crer
e for batizado será salvo, quem não crer será condenado. Por
muitos séculos, a catequese da Igreja Católica se baseava nestas
palavras para dizer que fora da Igreja não há salvação. Somente
após o Concílio Vaticano II, quando foram resgatados os conceitos
do ecumenismo, esse entendimento foi abrandado.
Com efeito, esse texto
é bastante cru e sem rodeios: quem crer e for batizado será salvo,
quem não crer será condenado. Mas o seu entendimento será melhor
alcançado com uma interpretação mais abrangente, inspirado no que
o próprio Cristo disse aos discípulos certa vez, quando eles
disseram a Ele que havia uma pessoa expulsando demônios em nome Dele
(sem ser discípulo) e eles os tinham proibido (Mc 9, 38). Resposta
de Cristo: (Mc 9, 39-40): “Não
lho proibais; porque ninguém há que faça milagre em meu nome e
possa logo falar mal de mim. Porque quem não é contra nós, é por
nós.” Coligindo os dois textos (quem não crer será condenado –
quem não é contra nós, é por nós), podemos concluir que a adesão
ao espírito do cristianismo ocorre também entre aqueles que não
são formalmente engajados entre os 'discípulos', mas expressa isso
nas atitudes praticadas. Eu conheci, certa vez, um judeu cuja esposa
era católica, daquelas de ir à missa todos os dias. No entanto, ele
era muito mais humanitário e compassivo no trato com os empregados,
diferentemente da esposa, que era rígida e intolerante. É o caso de
se perguntar: qual dos dois seguia com mais fidelidade os
ensinamentos de Cristo?
Com esse pensamento, a
expressão 'quem não crer será condenado' deve estar relacionada
àquelas pessoas más e perversas, cujos hábitos destoam totalmente
dos ensinamentos cristãos. E isso tanto pode incluir pessoas
batizadas como não batizadas, pois o simples batismo não conduz à
salvação, se não for confirmado com as obras coerentes e
exemplares. Não faz muitos dias, eu li um e-mail, cujo remetente era
um padre, no qual ele dizia que a Igreja Católica afirma que o
inferno existe, mas não afirma que haja pessoas lá, porque o
resultado do julgamento divino, na hora máxima da prestação de
contas de cada um, não é dado a ninguém saber. É o que diz
Cristo, no texto da primeira leitura de hoje (At 1,7): não vos cabe
saber os tempos e os momentos que o Pai determinou... A Igreja
Católica também ensina que, na hora suprema, o arrependimento
supremo pode resgatar toda uma vida de pecados graves e isso somente
ao Pai é dado saber.
Portanto, a expressão
'quem não crer será condenado' deve ser compreendida com uma
interpretação abrangente, e não com a sua estrita literalidade. O
mesmo raciocínio se aplica ao texto do Apocalipse, que trata dos 144
mil assinalados (Ap 7, 4), que não pode ser compreendido dentro do
quantificador matemático expresso. Daí a razão de ser muito
arriscado ler a Bíblia sem uma adequada preparação de estudos,
porque a Palavra tem uma riqueza muito maior do que as suas palavras
indicam.
Preparemo-nos para a
festa de Pentecostes, que conclui o ciclo pascal, aplainando as
veredas do nosso interior para recebermos o 'batismo' do verdadeiro
conhecimento.
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