COMENTÁRIO LITÚRGICO
– SANTÍSSIMA TRINDADE – 03.06.2012
Caros Confrades,
Celebramos hoje a festa
litúrgica da Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático do
tempo pascal. A partir do próximo domingo, retornam os domingos do
tempo comum.
O dogma da Santíssima
Trindade ocupa o ponto central de toda a fé cristã, para onde
convergem todas as demais verdades da fé. É o grande mistério do
cristianismo, pois não há similar em nenhuma outra religião, a
Divindade que é, ao mesmo tempo, una e trina. E esta verdade da
nossa fé somente veio a ser conhecida através da catequese de
Cristo, quando ele por várias vezes explicou aos discípulos que Ele
e o Pai são um só. Depois de muitas explicações, ainda chegou o
dia em que Felipe perguntou: mostra-nos o Pai e isso nos basta, ao
que Cristo respondeu: há tanto tempo estou convosco e ainda não me
conheceis? Quem me vê, vê o Pai. (Jo 14,7)
Os patriarcas do Antigo
Testamento não conheceram esta verdade, pois para eles havia somente
Javeh, o Deus onipotente, que tinha a voz igual ao trovão e era
ciumento e vingativo com os deslizes do povo eleito. A primeira
manifestação da Trindade ocorreu no batismo de Jesus no Jordão,
quando ouviu-se a voz do Pai e o Espírito Santo se tornou visivel em
forma de pomba. Evidentemente, naquela hora, ninguém entendeu do que
se tratava. Foi no dia a dia da sua vida de pregador que Cristo aos
poucos foi ensinando ao povo, em particular aos discípulos, esta
novidade.
É muito comum essas
verdades da fé serem rotuladas como mistérios e a percepção
genérica da palavra mistério induz a ideia de algo inexplicável.
Tudo que as pessoas não entendem chamam de misterioso. De fato, os
mistérios da fé são inexplicáveis, porque não estão acessíveis
ao nosso pensar racional. Mas o fato de algo não ser explicado não
impede de ser compreendido, porque enquanto a explicação está
relacionada com a razão discursiva ou lógica, a compreensão
alcança uma dimensão mais profunda do conhecimento, onde a lógica
não alcança, que é a dimensão do saber noético. A nossa tradição
cultural ficou apegada ao conceito do 'logos' aristotélico, que é o
plano da racionalidade pura. Mas se observarmos o conceito de 'nous'
em Platão, veremos que ele não se restringe à racionalidade
lógica, mas a um entendimento profundo que está mais próximo do
domínio da vontade, portanto, da crença, da fé. Santo Agostinho
preferia trabalhar com os conceitos de Platão, porque estes se
aprofundam até as raízes das coisas, enquanto os conceitos
aristotélicos se situam no plano da experiência. Quem não se
recorda daquela famosa máxima de Aristóteles, seguida por Santo
Tomás: Nihil est in intellecto quod prius non fuerit in sensu. (Nada
está no intelecto que antes não tenha estado no sentido), portanto,
somente o que passa pelos sentidos chega ao intelecto. Platão
dispensava o auxílio dos sentidos para alcançar o conhecimento,
pois ele afirmava que o intelecto age por conta própria, sem
depender do corpo material.
Desse modo, seguindo o
modo platônico de pensar, criou-se o conceito do saber noético,
isto é, aquele que procede do 'nous' ou do intelecto superior, que
não depende dos sentidos corporais, mas é realizado diretamente com
as forças mentais. É nesse ponto que se situa a fé e é nesse
ponto que a nossa mente entra em contato com os mistérios. Por isso,
dizemos que os mistérios não são explicados, mas são
compreendidos. Do ponto de vista aristotélico, isso pode até ser
denominado de irracionalidade, mas do ponto de vista platônico, isso
é o que há de mais racional no ser humano. Aí está a grande
diferença teórica que deve ter em mente o leitor dos textos de
Agostinho e de Tomás, porque eles raciocinam com diferentes
categorias do pensamento.
Estou desenvolvendo
essas questões de teoria do conhecimento para chegar ao seguinte
ponto: de que modo os mistérios são trabalhados na nossa mente?
Resposta: pela atitude de adesão, de aceitação, embora não sejam
explicáveis. Se observarmos o significado grego da palavra mysterion
isso ficará melhor compreendido. Mysterion quer dizer segredo, algo
oculto. Os mistérios da fé são segredos que Deus guardou por muito
tempo, mas agora eles foram revelados através de Cristo. Portanto,
no momento atual, o significado mais apropriado do mysterion é o de
um segredo revelado, isto é, agora não está mais oculto. Daí
porque a teologia fala da REVELAÇÃO DIVINA. A revelação é o ato
de Deus ter aberto seu cofre de segredos para nós, através dos
ensinamentos de Cristo. Quando dizemos que uma verdade de fé é uma
verdade revelada, queremos dizer isso: é um segredo divino, que
Cristo veio nos ensinar.
Então, nós tomamos
conhecimento desse mistério trinitário pela pregação de Cristo. É
algo confuso, que se torna difícil de ser mentalizado, porque nós
temos uma tradição de pensar pela matriz de Aristóteles (nada está
no intelecto que primeiro não tenha estado nos sentidos) e como os
nossos sentidos corporais não têm essa experiência, o nosso
intelecto lógico fica com dificuldade para aceitar. Lembram da
historieta sobre Santo Agostinho e o menino que queria colocar toda a
água do mar num buraco da praia? Pois bem, quando Agostinho deixou
de pensar com o modelo aristotélico ele pôde então compreender que
a fé se situa no domínio do absurdo, ou seja, daquilo que perante o
pensamento lógico não tem explicação.
Um Deus em três
pessoas, sendo cada pessoa um Deus inteiro. Na nossa experiência
corporal, jamais essa realidade poderá ser alcançada. Os discípulos
só entenderam isso depois de Pentecostes, quando o Espírito veio
confirmar todos os ensinamentos de Cristo e os transformou em
doutores. Porém, a teologia somente veio a consolidar essa verdade
muitos anos mais tarde. Foi no Concílio de Nicéia (ano 325) que os
Santos Padres começaram a elaborar o 'símbolo' da fé, texto que
foi concluído anos depois, no Concílio de Constantinopla (ano 381),
produzindo o Credo, o símbolo ou o resumo de todas as verdades da fé
cristã. Antes disso, foram muitas discussões, muitas opiniões
divergentes, muitas heresias, por causa da dificuldade de entender
isso. Atualmente, os teólogos simplificam a exposição dessa
doutrina, dizendo que a Palavra (Verbo) de Deus é tão poderosa que
se transforma em outra pessoa divina. Foi essa Palavra que se fez um
de nós para nos revelar este segredo do Pai (Verbum caro factum est,
diz S. João, o Verbo se fez carne). E o amor do Pai pelo Verbo é
tão enorme que se torna outra pessoa divina, o Paráclito
(assistente, advogado). Foi o Paráclito que confirmou para os
discípulos este segredo e continua assistindo a ekklesia
(comunidade) de Cristo, ajudando-nos ainda hoje a compreender essas
verdades.
Não é por outro
motivo que iniciamos sempre nossas preces com a invocação da
Trindade: em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Assim, que
ao nos persignarmos, esse não seja apenas um ato mecânico e
automático, mas uma demonstração da fé de que a Santíssima
Trindade está sempre conosco.
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