domingo, 17 de junho de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – SANTÍSSIMA TRINDADE – 03.06.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – SANTÍSSIMA TRINDADE – 03.06.2012

Caros Confrades,

Celebramos hoje a festa litúrgica da Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático do tempo pascal. A partir do próximo domingo, retornam os domingos do tempo comum.

O dogma da Santíssima Trindade ocupa o ponto central de toda a fé cristã, para onde convergem todas as demais verdades da fé. É o grande mistério do cristianismo, pois não há similar em nenhuma outra religião, a Divindade que é, ao mesmo tempo, una e trina. E esta verdade da nossa fé somente veio a ser conhecida através da catequese de Cristo, quando ele por várias vezes explicou aos discípulos que Ele e o Pai são um só. Depois de muitas explicações, ainda chegou o dia em que Felipe perguntou: mostra-nos o Pai e isso nos basta, ao que Cristo respondeu: há tanto tempo estou convosco e ainda não me conheceis? Quem me vê, vê o Pai. (Jo 14,7)

Os patriarcas do Antigo Testamento não conheceram esta verdade, pois para eles havia somente Javeh, o Deus onipotente, que tinha a voz igual ao trovão e era ciumento e vingativo com os deslizes do povo eleito. A primeira manifestação da Trindade ocorreu no batismo de Jesus no Jordão, quando ouviu-se a voz do Pai e o Espírito Santo se tornou visivel em forma de pomba. Evidentemente, naquela hora, ninguém entendeu do que se tratava. Foi no dia a dia da sua vida de pregador que Cristo aos poucos foi ensinando ao povo, em particular aos discípulos, esta novidade.

É muito comum essas verdades da fé serem rotuladas como mistérios e a percepção genérica da palavra mistério induz a ideia de algo inexplicável. Tudo que as pessoas não entendem chamam de misterioso. De fato, os mistérios da fé são inexplicáveis, porque não estão acessíveis ao nosso pensar racional. Mas o fato de algo não ser explicado não impede de ser compreendido, porque enquanto a explicação está relacionada com a razão discursiva ou lógica, a compreensão alcança uma dimensão mais profunda do conhecimento, onde a lógica não alcança, que é a dimensão do saber noético. A nossa tradição cultural ficou apegada ao conceito do 'logos' aristotélico, que é o plano da racionalidade pura. Mas se observarmos o conceito de 'nous' em Platão, veremos que ele não se restringe à racionalidade lógica, mas a um entendimento profundo que está mais próximo do domínio da vontade, portanto, da crença, da fé. Santo Agostinho preferia trabalhar com os conceitos de Platão, porque estes se aprofundam até as raízes das coisas, enquanto os conceitos aristotélicos se situam no plano da experiência. Quem não se recorda daquela famosa máxima de Aristóteles, seguida por Santo Tomás: Nihil est in intellecto quod prius non fuerit in sensu. (Nada está no intelecto que antes não tenha estado no sentido), portanto, somente o que passa pelos sentidos chega ao intelecto. Platão dispensava o auxílio dos sentidos para alcançar o conhecimento, pois ele afirmava que o intelecto age por conta própria, sem depender do corpo material.

Desse modo, seguindo o modo platônico de pensar, criou-se o conceito do saber noético, isto é, aquele que procede do 'nous' ou do intelecto superior, que não depende dos sentidos corporais, mas é realizado diretamente com as forças mentais. É nesse ponto que se situa a fé e é nesse ponto que a nossa mente entra em contato com os mistérios. Por isso, dizemos que os mistérios não são explicados, mas são compreendidos. Do ponto de vista aristotélico, isso pode até ser denominado de irracionalidade, mas do ponto de vista platônico, isso é o que há de mais racional no ser humano. Aí está a grande diferença teórica que deve ter em mente o leitor dos textos de Agostinho e de Tomás, porque eles raciocinam com diferentes categorias do pensamento.

Estou desenvolvendo essas questões de teoria do conhecimento para chegar ao seguinte ponto: de que modo os mistérios são trabalhados na nossa mente? Resposta: pela atitude de adesão, de aceitação, embora não sejam explicáveis. Se observarmos o significado grego da palavra mysterion isso ficará melhor compreendido. Mysterion quer dizer segredo, algo oculto. Os mistérios da fé são segredos que Deus guardou por muito tempo, mas agora eles foram revelados através de Cristo. Portanto, no momento atual, o significado mais apropriado do mysterion é o de um segredo revelado, isto é, agora não está mais oculto. Daí porque a teologia fala da REVELAÇÃO DIVINA. A revelação é o ato de Deus ter aberto seu cofre de segredos para nós, através dos ensinamentos de Cristo. Quando dizemos que uma verdade de fé é uma verdade revelada, queremos dizer isso: é um segredo divino, que Cristo veio nos ensinar.

Então, nós tomamos conhecimento desse mistério trinitário pela pregação de Cristo. É algo confuso, que se torna difícil de ser mentalizado, porque nós temos uma tradição de pensar pela matriz de Aristóteles (nada está no intelecto que primeiro não tenha estado nos sentidos) e como os nossos sentidos corporais não têm essa experiência, o nosso intelecto lógico fica com dificuldade para aceitar. Lembram da historieta sobre Santo Agostinho e o menino que queria colocar toda a água do mar num buraco da praia? Pois bem, quando Agostinho deixou de pensar com o modelo aristotélico ele pôde então compreender que a fé se situa no domínio do absurdo, ou seja, daquilo que perante o pensamento lógico não tem explicação.

Um Deus em três pessoas, sendo cada pessoa um Deus inteiro. Na nossa experiência corporal, jamais essa realidade poderá ser alcançada. Os discípulos só entenderam isso depois de Pentecostes, quando o Espírito veio confirmar todos os ensinamentos de Cristo e os transformou em doutores. Porém, a teologia somente veio a consolidar essa verdade muitos anos mais tarde. Foi no Concílio de Nicéia (ano 325) que os Santos Padres começaram a elaborar o 'símbolo' da fé, texto que foi concluído anos depois, no Concílio de Constantinopla (ano 381), produzindo o Credo, o símbolo ou o resumo de todas as verdades da fé cristã. Antes disso, foram muitas discussões, muitas opiniões divergentes, muitas heresias, por causa da dificuldade de entender isso. Atualmente, os teólogos simplificam a exposição dessa doutrina, dizendo que a Palavra (Verbo) de Deus é tão poderosa que se transforma em outra pessoa divina. Foi essa Palavra que se fez um de nós para nos revelar este segredo do Pai (Verbum caro factum est, diz S. João, o Verbo se fez carne). E o amor do Pai pelo Verbo é tão enorme que se torna outra pessoa divina, o Paráclito (assistente, advogado). Foi o Paráclito que confirmou para os discípulos este segredo e continua assistindo a ekklesia (comunidade) de Cristo, ajudando-nos ainda hoje a compreender essas verdades.

Não é por outro motivo que iniciamos sempre nossas preces com a invocação da Trindade: em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Assim, que ao nos persignarmos, esse não seja apenas um ato mecânico e automático, mas uma demonstração da fé de que a Santíssima Trindade está sempre conosco.


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