segunda-feira, 2 de julho de 2012

COMENTÁRIO LITÚRGICO – SÃO PEDRO E SÃO PAULO – LIGAR E DESLIGAR – 01.07.2012


COMENTÁRIO LITÚRGICO – SÃO PEDRO E SÃO PAULO – LIGAR E DESLIGAR – 01.07.2012

Caros Confrades:

Neste décimo terceiro domingo comum, a liturgia dominical cede o lugar para a festa dos santos Pedro e Paulo, baluartes dos inícios do cristianismo e da igreja primitiva, em razão do acordo com o governo brasileiro sobre os feriados religiosos, que retirou o dia 29 de junho da lista dos feriados. Transfere-se, então, a celebração para o domingo seguinte, no caso, o domingo de hoje.

As leituras desta festa litúrgica evocam as importantes tarefas desempenhadas por Pedro e Paulo, na implantação e propagação do cristianismo e no estabelecimento da comunidade eclesial de Roma, que viria a se tornar depois a sede oficial da Igreja de Cristo. Este fato, contudo, não é aceito de forma unânime, mas é permeado por inúmeras controvérsias históricas e doutrinárias.

Todos os católicos conhecem a passagem do evangelho de Mateus, lida neste domingo, onde ele narra o episódio em que Jesus muda o nome de Simão para Cefas, palavra esta que vem do aramaico Képhas e significa rocha. Esta palavra foi 'traduzida' nos primeiros textos gregos por Petros, um vocábulo que na verdade não existia na língua grega e pode-se dizer que foi criada nessa ocasião. Daí deu origem à palavra latina Petrus. Na célebre passagem de Mt 13, 18-19, Jesus diz que sobre esta pedra será construída a sua ekklesia e dá a Pedro a chave do reino dos céus. Esta é a fonte do dogma denominado 'primado de Pedro', que dá ao Papa a chefia de toda a Igreja universal. Porém, isso é bastante controvertido entre os estudiosos seja católicos ou não católicos.

Nos primeiros séculos da Igreja de Cristo, não havia essa 'chefia' do bispo de Roma, onde Pedro foi o primeiro, sendo que cada comunidade local era chefiada por um apóstolo e depois por um sucessor deste, sem o reconhecimento de uma hierarquia dentre eles. São João evangelista, que foi chefe da igreja de Antioquia e foi o último dos apóstolos a morrer, isso por volta do ano 100 d.C., era uma autoridade reconhecida e não havia essa subordinação ao bispo de Roma, sucessor de Pedro (nessa época, era Santo Evaristo).

Aliás, essa divergência entre os que aceitam e os que não aceitam a primazia de Pedro foi um dos temas que serviu de pretexto para o cisma do Ocidente, ou seja, a divisão entre as Igrejas Católicas Ocidental (de Roma) e Oriental (de Constantinopla), fato ocorrido em 1054. E essa não aceitação do 'primado de Pedro' pelos bispos da Igreja grega se deu pela grande intromissão dos imperadores romanos dentro da Igreja, após o cristianismo ter sido decretado religião oficial do Império Romano, por ato do imperador Teodósio, em 380. Em diversos Concílios que ocorreram nos anos seguintes, essa insatisfação dos Padres Gregos foi levantada, pois estes se consideravam os detentores da tradição cristã mais genuína, não contaminada pelos imperadores romanos, sendo que as discussões nunca levaram a qualquer solução. A partir da coroação de Carlos Magno como imperador do Sacro Império Romano Germânico, no ano 800, ele que era bárbaro e fez muitas imposições religiosas, a insatisfação aumentou ainda mais, por causa dessas interferências consideradas ilegítimas pelos Padres Gregos. E isto foi se agravando até explodir quando o Patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, em 1043, começou a fazer campanha direta contra a doutrina defendida pela Igreja de Roma acerca da natureza do Espírito Santo, tendo sido repreendido por isso e terminou por ser excomungado pelo Papa, o qual foi por sua vez excomungado pelos Bispos da Igreja Bizantina, declarando-se abertamente a cisão ou cisma entre as duas Igrejas, o que prevalece até hoje. Somente no ano de 1965, o Papa Paulo VI, dentro dos ares renovadores e ecumênicos do Concílio Vaticano II, promoveu um encontro com o Patriarca Atenágoras, de Constantinopla, e assim ambos retiraram as excomunhões recíprocas, que haviam perdurado por mais de 900 anos.

O ponto central da questão está no fato de que a Igreja Católica do ocidente reconhecia o Bispo de Roma como Papa e como chefe da Igreja, no entanto, a Igreja Católica do oriente só reconhecia no Bispo de Roma um título honorífico, não uma autoridade universal. Podemos dar o exemplo do que acontece no Brasil com o Bispo de Salvador, na Bahia, que tem o título de Primaz porque foi lá a primeira Diocese instalada no Brasil, mas esta primazia não dá a ele uma autoridade sobre os demais Bispos. Era assim que os Bispos Gregos compreendiam a figura do Papa, como Bispo de Roma. Então, vemos que do ponto de vista histórico, o Cisma do Ocidente representou a oficialização do Bispo de Roma como o chefe universal da Igreja Católica, embora essa doutrina já existisse desde o terceiro século. Mas é oportuno registrar que Santo Agostinho, que viveu no século IV, segundo alguns estudiosos, discordava desse entendimento.

Bem, de uma forma ou de outra, o fundamento bíblico da 'primazia de Pedro' está no evangelho de Mateus, conforme acima referido (Mt 13, 19), o conhecido episódio das chaves dadas por Jesus a ele. Sobre isso, eu faço outras considerações. Segundo o texto latino da tradução de São Jerônimo, lê-se que, após 'dar as chaves' a Pedro, Jesus disse: “quodcumque ligaveris super terram, erit ligatum et in coelis, et quodcumque solveris super terram erit solutum et in coelis. Eu destaquei propositalmente os verbos 'ligaveris' e 'solveris' que são traduzidos, respectivamente, por 'ligardes' e 'desligardes'. Quando ao primeiro (ligaveris=ligardes), a tradução está literal; mas quando ao segundo (solveris=desligardes), ao meu ver, não seria bem esse o sentido. O tradutor português aproveita a morfologia dos verbos ligar-desligar para fazer um trocadilho, mas não é bem este o sentido do verbo 'solvere', que significa 'resolver', e deve ser entendido, ao meu ver, no sentido jurídico romano de 'resolver uma obrigação', ou seja, liquidar um débito, perdoar uma dívida, solucionar uma contenda. Na tradição histórica, os Papas muitas vezes 'abusaram' desse poder de ligare-solvere para introduzir muitas práticas e normas que terminaram por afastar o cristianismo das suas origens. Vou citar apenas dois exemplos, que são reiteradamente alegados pelos nossos 'irmãos separados': primeiro, o batismo das crianças e somente por aspersão no crânio,quando devia ser de pessoas adultas e mergulhando o corpo inteiro, conforme fazia João Batista; segundo, o formato da hóstia como é adotado na Igreja Católica, quando devia ser o pão comum, conforme Jesus fez na ceia derradeira. Eu não desconheço que há inúmeros argumentos e motivos a justificarem essas mudanças, mas seria o caso de perguntar se isso foi realmente necessário (com todo respeito, claro)?

Outra coisa. Com a instituição do direito canônico, a Igreja romana buscou dar uma mais sólida organização para a entidade eclesial, no entanto, isso trouxe como efeito colateral uma excessiva burocracia, que ainda hoje permeia o culto litúrgico e a administração dos sacramentos, deixando-nos em dúvida sobre até que ponto essas inovações das autoridades estão sendo fiéis ao mandato que Jesus confiou a Pedro, com a delegação de 'ligare-solvere'. Será que, ao longo dos tempos históricos, esse mandato conferido a Pedro não teria sido extrapolado com a introdução de ações divergentes, conforme a censura exercida pelos Padres Gregos contra a Igreja de Roma? Até que ponto essas novidades foram realmente fruto da necessidade pastoral ou de um exercício unilateral de autoridade? Lembro-me agora que Montesquieu, quando propôs que o poder do Estado fosse dividido em três (executivo, legislativo e judiciário), argumentou que as experiências históricas demonstraram que, sempre que um só exerce o poder, tende a exercê-lo com arbitrariedade. Não teria isso acontecido também com as autoridades eclesiásticas?

São reflexões que faço não no intuito de contestar ou desmerecer a autoridade do sucessor de Pedro, mas como uma espécie de autocrítica que, enquanto membros da Igreja Católica, nós podemos lançar na intenção de uma melhor compreensão do papel das nossas autoridades hierárquicas. As notícias que são filtradas do Vaticano e apenas em doses homeopáticas chegam à grande imprensa mundial deixam sérias preocupações sobre o poder da burocracia eclesial superando a hegemonia doutrinária e a herança escriturística. Que o Espírito Santo nos ilumine para compreender isso e ilumine ainda mais as nossas autoridades eclesiásticas constituídas.

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