COMENTÁRIO LITÚRGICO
– SÃO PEDRO E SÃO PAULO – LIGAR E DESLIGAR – 01.07.2012
Caros Confrades:
Neste décimo terceiro
domingo comum, a liturgia dominical cede o lugar para a festa dos
santos Pedro e Paulo, baluartes dos inícios do cristianismo e da
igreja primitiva, em razão do acordo com o governo brasileiro sobre
os feriados religiosos, que retirou o dia 29 de junho da lista dos
feriados. Transfere-se, então, a celebração para o domingo
seguinte, no caso, o domingo de hoje.
As leituras desta festa
litúrgica evocam as importantes tarefas desempenhadas por Pedro e
Paulo, na implantação e propagação do cristianismo e no
estabelecimento da comunidade eclesial de Roma, que viria a se tornar
depois a sede oficial da Igreja de Cristo. Este fato, contudo, não é
aceito de forma unânime, mas é permeado por inúmeras controvérsias
históricas e doutrinárias.
Todos os católicos
conhecem a passagem do evangelho de Mateus, lida neste domingo, onde
ele narra o episódio em que Jesus muda o nome de Simão para Cefas,
palavra esta que vem do aramaico Képhas e significa rocha. Esta
palavra foi 'traduzida' nos primeiros textos gregos por Petros, um
vocábulo que na verdade não existia na língua grega e pode-se
dizer que foi criada nessa ocasião. Daí deu origem à palavra
latina Petrus. Na célebre passagem de Mt 13, 18-19, Jesus diz que
sobre esta pedra será construída a sua ekklesia e dá a Pedro a
chave do reino dos céus. Esta é a fonte do dogma denominado
'primado de Pedro', que dá ao Papa a chefia de toda a Igreja
universal. Porém, isso é bastante controvertido entre os estudiosos
seja católicos ou não católicos.
Nos primeiros séculos
da Igreja de Cristo, não havia essa 'chefia' do bispo de Roma, onde
Pedro foi o primeiro, sendo que cada comunidade local era chefiada
por um apóstolo e depois por um sucessor deste, sem o reconhecimento
de uma hierarquia dentre eles. São João evangelista, que foi chefe
da igreja de Antioquia e foi o último dos apóstolos a morrer, isso
por volta do ano 100 d.C., era uma autoridade reconhecida e não
havia essa subordinação ao bispo de Roma, sucessor de Pedro (nessa
época, era Santo Evaristo).
Aliás, essa
divergência entre os que aceitam e os que não aceitam a primazia de
Pedro foi um dos temas que serviu de pretexto para o cisma do
Ocidente, ou seja, a divisão entre as Igrejas Católicas Ocidental
(de Roma) e Oriental (de Constantinopla), fato ocorrido em 1054. E
essa não aceitação do 'primado de Pedro' pelos bispos da Igreja
grega se deu pela grande intromissão dos imperadores romanos dentro
da Igreja, após o cristianismo ter sido decretado religião oficial
do Império Romano, por ato do imperador Teodósio, em 380. Em
diversos Concílios que ocorreram nos anos seguintes, essa
insatisfação dos Padres Gregos foi levantada, pois estes se
consideravam os detentores da tradição cristã mais genuína, não
contaminada pelos imperadores romanos, sendo que as discussões nunca
levaram a qualquer solução. A partir da coroação de Carlos Magno
como imperador do Sacro Império Romano Germânico, no ano 800, ele
que era bárbaro e fez muitas imposições religiosas, a insatisfação
aumentou ainda mais, por causa dessas interferências consideradas
ilegítimas pelos Padres Gregos. E isto foi se agravando até
explodir quando o Patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, em
1043, começou a fazer campanha direta contra a doutrina defendida
pela Igreja de Roma acerca da natureza do Espírito Santo, tendo sido
repreendido por isso e terminou por ser excomungado pelo Papa, o qual
foi por sua vez excomungado pelos Bispos da Igreja Bizantina,
declarando-se abertamente a cisão ou cisma entre as duas Igrejas, o
que prevalece até hoje. Somente no ano de 1965, o Papa Paulo VI,
dentro dos ares renovadores e ecumênicos do Concílio Vaticano II,
promoveu um encontro com o Patriarca Atenágoras, de Constantinopla,
e assim ambos retiraram as excomunhões recíprocas, que haviam
perdurado por mais de 900 anos.
O ponto central da
questão está no fato de que a Igreja Católica do ocidente
reconhecia o Bispo de Roma como Papa e como chefe da Igreja, no
entanto, a Igreja Católica do oriente só reconhecia no Bispo de
Roma um título honorífico, não uma autoridade universal. Podemos
dar o exemplo do que acontece no Brasil com o Bispo de Salvador, na
Bahia, que tem o título de Primaz porque foi lá a primeira Diocese
instalada no Brasil, mas esta primazia não dá a ele uma autoridade
sobre os demais Bispos. Era assim que os Bispos Gregos compreendiam a
figura do Papa, como Bispo de Roma. Então, vemos que do ponto de
vista histórico, o Cisma do Ocidente representou a oficialização
do Bispo de Roma como o chefe universal da Igreja Católica, embora
essa doutrina já existisse desde o terceiro século. Mas é oportuno
registrar que Santo Agostinho, que viveu no século IV, segundo
alguns estudiosos, discordava desse entendimento.
Bem, de uma forma ou de
outra, o fundamento bíblico da 'primazia de Pedro' está no
evangelho de Mateus, conforme acima referido (Mt 13, 19), o conhecido
episódio das chaves dadas por Jesus a ele. Sobre isso, eu faço
outras considerações. Segundo o texto latino da tradução de São
Jerônimo, lê-se que, após 'dar as chaves' a Pedro, Jesus disse:
“quodcumque ligaveris super terram, erit ligatum et in
coelis, et quodcumque solveris super terram erit solutum et in
coelis. Eu destaquei propositalmente os verbos 'ligaveris' e
'solveris' que são traduzidos, respectivamente, por 'ligardes' e
'desligardes'. Quando ao primeiro (ligaveris=ligardes), a tradução
está literal; mas quando ao segundo (solveris=desligardes), ao meu
ver, não seria bem esse o sentido. O tradutor português aproveita a
morfologia dos verbos ligar-desligar para fazer um trocadilho, mas
não é bem este o sentido do verbo 'solvere', que significa
'resolver', e deve ser entendido, ao meu ver, no sentido jurídico
romano de 'resolver uma obrigação', ou seja, liquidar um débito,
perdoar uma dívida, solucionar uma contenda. Na tradição
histórica, os Papas muitas vezes 'abusaram' desse poder de
ligare-solvere para introduzir muitas práticas e normas que
terminaram por afastar o cristianismo das suas origens. Vou citar
apenas dois exemplos, que são reiteradamente alegados pelos nossos
'irmãos separados': primeiro, o batismo das crianças e somente por
aspersão no crânio,quando devia ser de pessoas adultas e
mergulhando o corpo inteiro, conforme fazia João Batista; segundo, o
formato da hóstia como é adotado na Igreja Católica, quando devia
ser o pão comum, conforme Jesus fez na ceia derradeira. Eu não
desconheço que há inúmeros argumentos e motivos a justificarem
essas mudanças, mas seria o caso de perguntar se isso foi realmente
necessário (com todo respeito, claro)?
Outra coisa. Com a
instituição do direito canônico, a Igreja romana buscou dar uma
mais sólida organização para a entidade eclesial, no entanto, isso
trouxe como efeito colateral uma excessiva burocracia, que ainda hoje
permeia o culto litúrgico e a administração dos sacramentos,
deixando-nos em dúvida sobre até que ponto essas inovações das
autoridades estão sendo fiéis ao mandato que Jesus confiou a Pedro,
com a delegação de 'ligare-solvere'. Será que, ao longo dos tempos
históricos, esse mandato conferido a Pedro não teria sido
extrapolado com a introdução de ações divergentes, conforme a
censura exercida pelos Padres Gregos contra a Igreja de Roma? Até
que ponto essas novidades foram realmente fruto da necessidade
pastoral ou de um exercício unilateral de autoridade? Lembro-me
agora que Montesquieu, quando propôs que o poder do Estado fosse
dividido em três (executivo, legislativo e judiciário), argumentou
que as experiências históricas demonstraram que, sempre que um só
exerce o poder, tende a exercê-lo com arbitrariedade. Não teria
isso acontecido também com as autoridades eclesiásticas?
São reflexões que
faço não no intuito de contestar ou desmerecer a autoridade do
sucessor de Pedro, mas como uma espécie de autocrítica que,
enquanto membros da Igreja Católica, nós podemos lançar na
intenção de uma melhor compreensão do papel das nossas autoridades
hierárquicas. As notícias que são filtradas do Vaticano e apenas
em doses homeopáticas chegam à grande imprensa mundial deixam
sérias preocupações sobre o poder da burocracia eclesial superando
a hegemonia doutrinária e a herança escriturística. Que o Espírito
Santo nos ilumine para compreender isso e ilumine ainda mais as
nossas autoridades eclesiásticas constituídas.
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