domingo, 8 de setembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - RENÚNCIA RADICAL - 08.09.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – RENÚNCIA RADICAL – 08.09.2013

Caros Confrades,

Neste 23º domingo comum, o tema do evangelho se concentra na renúncia radical que deve ser a atitude de quem quer ser seguidor de Cristo, mostrando uma certa relação com a primeira das bem aventuranças proferidas no Sermão da Montanha: felizes os pobres de espírito. No caso, a renúncia não abrange apenas os bens materiais, mas tudo aquilo que, de alguma maneira, impede ou dificulta a nossa opção cristã, inclusive as relações familiares. Antes, porém, de fazer outras considerações sobre este assunto, eu gostaria de destacar pontos que achei interessantes nas outras leituras.

Na primeira leitura, retirada do livro da Sabedoria (9, 13-18), uma frase me chamou a atenção por causa da sua semelhança com a doutrina da reencarnação, que é rejeitada pelo cristianismo. No versículo 15 do cap 9, temos: “porque o corpo corruptível torna pesada a alma e, tenda de argila, oprime a mente que pensa.” A imagem do corpo como “tenda de argila que oprime a alma” faz lembrar a doutrina de Platão acerca da rivalidade entre corpo e espírito, doutrina esta que é inspirada na tradição dos órficos gregos, os quais eram um grupo de adeptos da metempsicose, que acreditava na preservação dos espíritos das pessoas após a morte, sendo possível comunicar-se com eles. Para tanto, eles faziam sessões em que invocavam esses espíritos, sendo essa a origem da doutrina reelaborada por Alan Kardec, criador do moderno espiritismo. Vale lembrar que Santo Agostinho, de início, tinha simpatia por essa teoria platônica, mas ele observou que era incompatível com o cristianismo, abandonando-a. De outro lado, a teologia medieval, através de St. Tomás de Aquino, preferiu a teoria de Aristóteles, porém visto que Aristóteles era materialista e não acreditava na continuidade da vida após a morte, St. Tomás precisou fazer algumas correções, aproveitando e adaptando a doutrina aristotélica. Na época contemporânea, com a influência da filosofia fenomenológica, tanto a teoria de Platão quanto a de Aristóteles ficaram superadas com o conceito da subjetividade intencional, que procura unir corpo e espírito como uma realidade integrada, de modo que não se cogita mais em separação entre corpo e espírito. Não é este espaço apropriado para desenvolver essa problemática com maiores detalhes, por isso sugiro aos Colegas que tenham interesse no tema que façam leituras sobre a fenomenologia de Husserl. Por ora, o que eu gostaria de salientar é que essa frase, no contexto do livro da Sabedoria, ao referir-se à narração da criação do homem, contida no Gênesis, vai além da própria narrativa e tira ilações que, no meu entendimento, deixam uma ideia de ambiguidade na relação corpo-mente, que abre brechas para interpretações de outras crenças. Isso, visto de outro modo, demonstra também que é possível um espiritismo cristão, o que oficialmente não é reconhecido pela teologia católica.

Na segunda leitura, da carta de Paulo a Filêmon (9-17), o Apóstolo destaca a doutrina da reconciliação como uma atitude decorrente do ideal do cristianismo. Nesta carta, encontramos três personagens em situações bastante diferentes: o apóstolo Paulo levando adiante a sua pregação do evangelho, o amigo dele Filêmon, um cristão rico que morava na cidade de Colosso e tinha uma igreja funcionando na sua própria casa, e o (ex) escravo Onésimo, que é o portador da carta. Paulo deixa entender, nas entrelinhas, que Onésimo tinha sido escravo de Filêmon e estava fugido em Roma, onde o encontrou, provavelmente Onésimo teria confessado a Paulo que furtara alguma coisa do patrão ou havia causado um prejuízo a ele, tendo sido este o motivo da sua fuga. O fato é que Paulo encontrou Onésimo em Roma na prisão, onde ambos estavam enclausurados, e este aceitou o batismo, após a catequese de Paulo. Vindo a saber do fato ilícito praticado por Onésimo, que havia se convertido e se arrependera, Paulo fez questão de “devolver” Onésimo ao seu antigo patrão, não para que ele retornasse à condição de escravo, mas dando seu aval ao amigo Filêmon da conversão de Onésimo e da sua nova condição de irmão na fé, a fim de que o ex-patrão o recebesse na sua casa como se fosse o próprio Paulo, reforçando desse modo aquela comunidade eclesial que Paulo bem conhecia. Ao pedir a Filêmon que aceitasse Onésimo como se fosse ele próprio (Paulo), estava solicitando a ele uma dupla atitude: primeiro, que perdoasse o mal feito do seu ex-escravo e, mais do que isso, que o aceitasse como irmão na fé, recomendado pelo Apóstolo para trabalhar com ele na comunidade. O texto da carta demonstra o cuidado de Paulo na redação, para que Filêmon entendesse bem o seu pedido e demonstra mais a grande confiança que Paulo depositava nele, porque era um pedido muito delicado. Vejamos o que Paulo diz no vers. 14: “eu não quis fazer nada sem o teu parecer, para que a tua bondade não seja forçada, mas espontânea. ” E mais adiante, no vers. 17: “se estás em comunhão de fé comigo, recebe-o como se fosse a mim mesmo. ” A carta desenvolve a teologia do perdão e da reconciliação que cada um de nós deve ter para com o irmão que peca, assim como Deus tem para conosco, quando pecamos. Por certo, Filêmon concordou com Paulo e fez conforme a recomendação deste.

A leitura do evangelho, retirada de Lucas (14, 25-33), enfoca a renúncia radical que deve fazer o cristão. No texto original latino, a exigência de Cristo é bem mais forte do que na tradução da CNBB. Diz assim: “si quis venit ad me et non odit patrem suum et matrem et uxorem...”, ou seja, se alguém vem a mim e não odeia seu pai, mãe, esposa... a tradução de São Jerônimo é literal do verbo grego “miseô”, que significa odiar, detestar. Porém, segundo o Monsenhor Manfredo, no sermão da missa de hoje, o sentido original desta palavra na cultura hebraica é de “amar mais”, ou seja, se alguém amar mais seu pai, sua mãe, sua esposa … do que a mim... Daí porque a tradução da CNBB para a frase citada é “se alguém vem a mim, mas não se desapega do seu pai, sua mãe, sua esposa...” Neste caso, o texto da CNBB está mais conforme o sentido da exigência de Cristo aos seus seguidores, ou seja, não significa literalmente “odiar” o pai, a mãe, a esposa, os irmãos, os filhos, mas dedicar maior amor aos familiares do que a Ele próprio. Aqui está o significado da “renúncia radical” que Ele quer de nós. Não quer dizer que devemos rejeitar, detestar os familiares, mas sim que o amor que dedicamos a estes deve ser fruto do amor primordial a Cristo, amar os familiares no amor de Cristo, com o amor de Cristo. No vers. 33, tem aquela frase que muitas vezes nos era passada nas conferências: quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo. Só que essa exigência era-nos transmitida no sentido literal mesmo, de não se poder ter nem uma roupa para vestir ou uma sandália para calçar. Foi nesse sentido literal que o Seráfico Francisco entendeu a mensagem de Cristo a ele: reconstrói a minha Igreja. Era esse o padrão interpretativo clássico para os textos sagrados. Porém, num entendimento mais humanizado, atualmente a interpretação dessa exigência de Cristo se desloca mais para o sentido espiritual do desapego interior, na linha de pensamento da pobreza de espírito.

Foi com esse sentido que eu coloquei aqui neste comentário a palavra “radical”, não naquele sentido habitual e popular do exagero, do extremismo. É comum dizer-se que alguém é radical quando a pessoa não abre mão de suas opiniões e atitudes extravagantes. Mas não é disso que se cogita. A palavra “radical” aqui deve ser entendida no seu componente etimológico do termo latino “radix”, que significa “raiz”. Assim, a mudança radical é aquela que se realiza nas raízes do nosso ser, que se manifesta no nosso modo de pensar mais íntimo, nas nossas motivações mais profundas. A renúncia radical é aquela que vem das profundezas da alma, e não atua apenas no comportamento aparente, da boca pra fora, como se diz popularmente. A renúncia radical é aquela que se opera no nosso modo de pensar, provocando uma verdadeira “conversão” cristã, tendo um significado equivalente ao da palavra grega “metanóia”, isto é, mudança de mentalidade. Desse modo, ao invés de literalmente odiarmos e detestarmos nossos pais, cônjuges, filhos, etc, devemos amá-los ainda mais, contudo, uma nova forma de amar partindo da nossa fidelidade aos ensinamentos de Cristo, não apenas com manifestações exteriores e sentimentais. É nesse sentido que carregaremos a nossa cruz seguindo os passos de Cristo, não um seguimento pelo aspecto do sofrimento que a cruz tradicionalmente simboliza, mas no seguimento do modelo de amor que Cristo veio trazer para a nossa elevação espiritual. É óbvio que essa forma de amar pode também trazer algum sofrimento, no entanto, se a nossa motivação de amar for a mesma que Cristo tem para conosco, qualquer sofrimento será insignificante, se comparado à dimensão do nosso amor.

Recordo ainda que hoje, 8/9, celebra-se a festa de Nossa Senhora do Brasil, a padroeira do Seminário Seráfico e de todos nós que por ali passamos. Que ela nos ensine a amar a Cristo e aos irmãos como ela própria amou.

Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos


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