domingo, 3 de novembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - IMENSA MULTIDÃO - 03.11.2013 - FESTA DE TODOS OS SANTOS

COMENTÁRIO LITÚRGICO – IMENSA MULTIDÃO (TODOS OS SANTOS) – 03.11.2013

Caros Confrades,

A liturgia deste domingo traz a comemoração da festa de Todos os Santos, transferida do dia 1 para hoje, conforme acordo entre a CNBB e o Governo. Tomei como tema a referência feita na leitura do Apocalipse sobre a visão joanina de “uma grande multidão de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, que ninguém podia contar.” Essa multidão, que se sucedeu à visão daqueles assinalados, os membros das doze tribos de Israel, somos nós, os cristãos espalhados pelos quadrantes do universo conhecido, e que poderão ser ainda mais, se pensarmos na possibilidade de outros mundos habitados.

Nesta semana, eu estava lendo no jornal sobre a romaria de finados, em Juazeiro, com um número estimado de 600 mil pessoas, dos diversos Estados do nordeste. Foi do que me recordei, ao fazer a leitura de hoje do texto apocalíptico de João. Alguns daqueles romeiros diziam: eu venho aqui há vinte anos seguidos... trinta anos seguidos... Uma senhorinha revelou: eu comecei vindo aqui trazendo o meu filho menino, hoje é ele quem me traz. Meus amigos, com o que podemos relacionar essa multidão de fiéis, senão com a imensa multidão descrita no texto de João, tanta que ninguém podia contar? Alguém poderá contradizer: ah, mas isso não é fé cristã, é cultura, é fanatismo religioso. Seja qual for o nome que queiramos dar, para as pessoas que experimentam isso, é a mais autêntica fé que eles sabem expressar. Vê-se isso nos seus semblantes, nas suas atitudes. Falando hoje com o Frei Barbosa, Pároco do Santuário de Juazeiro, ele dizia que alguns caminhões de romeiros foram interceptados pelas patrulhas rodoviárias, por falta de segurança. Mas o romeiro explica de um jeito tipicamente seu: romaria tem que ser em pau-de-arara. E pau-de-arara é sinônimo de desconforto e de insegurança, quem segura tudo é a fé dos romeiros.

Logo a seguir, na leitura litúrgica de hoje do Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: quem são essas pessoas? João não soube responder e o próprio ancião completou: São os que vieram da grande tribulação, lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só podiam ser nordestinos, que saíram da grande tribulação da seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados ciceronianos. Hoje, no sermão da missa, o Monsenhor Manfredo Ramos comentou que, nos primeiros dez séculos do cristianismo, quem proclamara os santos era o povo, não havia a proclamação oficial pelo Papa, a conhecida canonização. Somente a partir do primeiro milênio, o Papa atraiu para si essa tarefa. Todos sabemos que o nosso povo já proclamou santo o Padre Cicero, independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico. Se olharmos o fato pela antiga tradição da proclamação dos santos, o povo nordestino está seguindo a regra primitiva, mesmo que a hierarquia oficial não tome conhecimento disso.

Meus amigos, essa é a autêntica comunhão dos santos, a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Ora, somente em Juazeiro, nesta semana, este número estava mais do que quadruplicado. A previsão de João deve ser, portanto, calculada com a correção do fator multiplicador do tempo decorrido, sendo mais coerente a passagem do versículo 9, onde ele diz que ninguém podia contar a multidão. Nós não somos descendentes genéticos das doze tribos de Israel, mas todos nós lavamos e alvejamos nossas roupas no sangue do Cordeiro, portanto, também fomos assinalados para a salvação. Se nós computarmos as diversas comunidades de igrejas cristãs, então esse número se torna deveras incontável. Dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.

A segunda leitura, que também é da autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro, “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo 3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo, que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada divina. Essa situação é descrita na teologia como a tensão do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém, ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer, no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim explica essa doutrina: “A salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado, futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”. Achei interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas cristãs, prega-se a justificação do fiel em Cristo, mas o teólogo explica que o conceito de salvação está muito acima da simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a passagem da carta de João citada logo acima (3, 2), “quando Jesus se manifestar”. Essa doutrina do “já e ainda não” foi um dos temas que achei mais interessantes no decorrer do curso de teologia. Esse conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como encobertas por um véu, como diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” [1Coríntios 13].

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem aventurados. Dizer que somos bem aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, bem aventurados = 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. Esse assunto se encaixa com o tema do evangelho do domingo comum, que cedeu o lugar para a festa de Todos os Santos, e que narra o episódio em que Jesus foi hospedar-se na casa de Zaqueu. Este era um cobrador de impostos, portanto, um publicano, um pecador público, um excluído do mundo religioso pela hipocrisia dos fariseus. No entanto, pela sua fé, ele ganhou a condição de “beatus”, quando Jesus mandou que ele descesse da árvore, pois Ele queria hospedar-se na sua casa. Ora, pensavam os fariseus ao verem aquilo, com tantas pessoas honradas e dignas nesta cidade, porque Jesus vai escolher a casa de um publicano para visitar? Pois é, dentro da lógica humana (e do próprio Zaqueu, que não imaginava que isso fosse acontecer), ele estaria fora dos “beati” referidos no sermão da montanha. Mas dentro da lógica de Cristo, a ele foi ofertada a salvação e ele muito que aceitou.

O Papa Francisco, no sermão que fez neste domingo para os fiéis que estavam na Praça de São Pedro, lembrou que o nome Zaqueu, em hebraico, significa “Deus recorda”, e fez o seguinte comentário: Não existe profissão ou condição social, não há pecado ou crime de qualquer gênero que possa cancelar da memória e do coração de Deus um filho sequer. “Deus recorda”, sempre, não esquece nenhum daqueles que criou; Ele é Pai, sempre à espera vigilante e amorosa de ver renascer no coração do filho o desejo de retornar à casa. E quando reconhece este desejo, mesmo que simplesmente manifestado, e tantas vezes quase inconsciente, imediatamente põe-se a seu lado, e com o seu perdão lhe torna mais leve o caminho da conversão e do retorno.O convite que Jesus fez a Zaqueu, ignorando que ele era um pecador público, assim como o sermão da montanha, no qual Ele exalta as virtudes contrárias ao que o mundo aceita, enche de esperança a todos nós, que ainda estamos na “grande tribulação” e, portanto, sujeitos às maiores adversidades no cumprimento fiel à nossa vocação cristã. A celebração de Todos os Santos nos coloca nessa corrente de fé em que, vivendo o “já”, preparamos aquilo que “ainda não” alcançamos.

Permaneçamos fiéis ao ensinamento de Cristo e para que possamos ser dignos de participar das suas promessas de santidade.


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