domingo, 24 de novembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 34º DOMINGO COMUM - FESTA DE CRISTO REI - 24.11.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 24.11.2013.

Caros Confrades,

Como é praxe, neste 34º domingo comum, que encerra o ano litúrgico, a Igreja celebra a festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, no período histórico que mediou entre as duas grandes guerras mundiais e num momento de grande descrença nas religiões e a consequente ascensão do ateísmo no mundo, situação muito parecida com a que nos encontramos hoje. Conforme já tive oportunidade de manifestar em ocasião anterior, a mim parece que esse destaque à figura de Jesus como rei não condiz com a vivência histórica que ele teve, bem como também não combina com o momento político mundial, no qual os reinos são praticamente inexistentes. Trata-se de uma figura apelativa para o romantismo de uma época em que a figura do rei representava o grande pai de todos, imagem que de modo algum é comparável aos nossos governantes modernos. Estou até curioso para ler os sermões do Seráfico Papa referentes ao domingo de hoje, a fim de ver se ele se mantém ligado à tradição triunfalista da Igreja, o que não é bem o estilo dele.

Passando à nossa reflexão acerca das leituras litúrgicas de hoje, vemos na primeira leitura, um trecho do segundo livro de Samuel (2Sm 5, 1-3), no qual é narrada a unção de Davi como rei de Israel. O rei Davi é uma das figuras mais emblemáticas do Antigo Testamento, juntamente com o filho dele, Salomão, outro grande governante, os dois fizeram histórias e lendas junto ao povo de Israel. Tão simbólica foi a missão do rei Davi que os profetas anunciaram que o Messias tão esperado de Israel nasceria de uma família da sua estirpe. Com efeito, tanto José, esposo de Maria, quanto ela própria eram da “casa de Davi”. As profecias antigas diziam que o Messias nasceria de uma mulher descendente de Abraão, da tribo de Judá e da família de Davi. Portanto, essa leitura do segundo livro de Samuel relaciona a realeza de Davi com a realeza de Cristo. Cristo é rei por ser descendente do mais importante rei de Israel. Essa é a ligação feita pelos teólogos desde a Idade Média, o que se justificava bem naquela época, em que a realeza era a forma de governo dominante, praticamente a única existente. E dentro da regra da hereditariedade, para alguém ter direito ao trono real, era necessário demonstrar que o herdeiro era descendente de um rei. No entanto, logo nos primórdios do cristianismo, o evangelista Mateus já buscava demonstrar, através das citações genealógicas, o vínculo familiar que unia Cristo ao rei Davi, afirmando assim o cumprimento das profecias. Mateus faz isso de uma forma bastante cuidadosa, quando no seu texto (Mt 1, 1-17) detalha a listagem genealógica de Jesus, elencando três períodos de 14 gerações, a partir de Abraão até chegar a Ele. De Abraão a Davi são 14 gerações, de Davi até o cativeiro da Babilônia, outros 14, e do final do cativeiro até o Messias são mais 14. De acordo com os biblistas, isso tem uma explicação matemática, porque a correspondência das letras hebraicas do nome de Davi com os números, somando-as, dá 14 como resultado. A soma é assim: em hebraico, escreve-se Dawid, com w. Na numerologia hebraica, o D=4 e o W=6, já as vogais não existiam no hebraico, por isso não entram na soma. Então, o total será D+W+D=4+6+4=14. Como os Confrades podem perceber, numerologia também faz parte da Bíblia e Mateus devia ser um especialista na matéria.

Temos na segunda leitura um trecho da carta aos Colossenses (Cl 1, 12-20), na qual Paulo faz um grande discurso apologético acerca da divindade de Cristo. “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele.” (2Cl 1, 15-16) Observa-se que Paulo não economiza nos qualificativos, ao contrário, faz uma suprema exaltação da figura de Cristo, embora não use o título de rei. Jesus é o princípio de todas as coisas e o primogênito dentre os mortos e alcançar a glória da ressurreição. O texto de Paulo é um autêntico hino à realeza de Cristo, sem citá-la. Com certeza, Paulo escreveu isso sem conhecer o texto do evangelho de Mateus (as cartas de Paulo são mais antigas), pois talvez se o tivesse conhecido, teria mencionado também a ascendência real de Cristo na sua origem terrena. O discurso de Paulo se direciona para a ascendência de Cristo no plano divino, mostrando a estreita relação d'Ele com o Pai: “porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres.” (2Cl 1, 19-20) Portanto, embora não mencione a palavra rei”, Paulo deixa isso subentendido nos vários conceitos utilizados para realçar a Sua personalidade divina. Nesse contexto, Paulo também relaciona a figura de Cristo como Cabeça da Igreja, cujo corpo somos nós, criando assim a doutrina do corpo místico de Cristo, largamente aplicada na teologia e na catequese.

No evangelho de Lucas (Lc 23, 35-43), lemos um trecho da narrativa dos eventos relativos à paixão de Cristo, quando Ele dialoga com os ladrões, que foram crucificados ao Seu lado. O mau ladrão debocha dele, desafiando-O a salvar-se e a salvar também os outros dois condenados. Por outro lado, o bom ladrão repreende o comparsa e confessa seu arrependimento, pedindo que Jesus o acolha no Seu reino. Esse diálogo é bem conhecido, porque é sempre repassado na liturgia da Semana Santa e foi sempre muito reproduzido também na catequese tradicional. Mas a leitura desse trecho sempre me faz recordar dois pensamentos. O primeiro diz respeito a uma discussão que eu ouvi, certa vez, na redação do jornalzinho do Seminário, quando dois colegas discutiam o significado da expressão latina que reproduzia o dito de Pilatos, quando foi perguntado pelos fariseus por que escrevera aquele letreiro aposto na cruz (INRI-Iesus Nazarenus Rex Iudeorum), ao que Pilatos teria respondido “quod scripsi, scripsi” (o que escrevi, escrevi – literalmente). O segundo pensamento diz respeito a quem teria escutado e transmitido esse diálogo entre Jesus e os ladrões. Sabemos que os apóstolos haviam debandado, junto à cruz estavam apenas João, Maria e algumas mulheres, que olhavam à distância. Pois bem, João não relata esse diálogo no seu texto. Os outros dois evangelistas, Marcos e Mateus, apenas se referem aos malfeitores crucificados com ele, sem mencionarem o diálogo, que só aparece no texto de Lucas. Ora, sabemos que Lucas, sendo médico, cuidou de Maria e por certo ouviu dela relatos intimistas referentes à vida de Jesus, que os outros escritores não tomaram conhecimento. Por essa linha de raciocínio, podemos concluir como provável que tal diálogo tenha sido escutado e memorizado por Maria, mãe de Jesus, que posteriormente o segredou a Lucas. Não me parece crível que algum dos soldados que participaram da execução tenha se preocupado com isso. E se João tivesse prestado atenção nesses detalhes, certamente também os teria relatado. Mas o olhar e o ouvido da Mãe captaram coisas que passaram despercebidas a todas as outras pessoas. É impressionante essa capacidade que as mães têm para perceber mensagens até subliminares no comportamento dos filhos.

Meus amigos, apesar de discordar desse aparato que a liturgia atribui à figura de Cristo como rei, entendo que Ele é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz que Ele vem nos trazer todos os dias, ensinando-nos a viver em fraternidade e harmonia. É disso que a sociedade precisa e compete a nós, cristãos, dar exemplo público dessa fraternidade e harmonia de Cristo nas nossas vivências cotidianas.


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