domingo, 29 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA - 29.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 29.12.2013

Caros confrades,

Como de costume, no último domingo do ano, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré, convidando-nos a refletir sobre a nossa própria família, a vocação primeira e mais antiga de todo ser humano. A família é a instituição social e religiosa mais antiga que existe, pois surgiu com o próprio ser humano, em data tão remota que é impossível fazer uma citação precisa. Uma coisa parece certa: desde que o ser humano (homem e mulher) tornaram-se tais já traziam consigo a tradição do grupo familiar, como sendo o ponto de referência básico e estrutural de cada um de nós. Grande parte dos males que afligem atualmente a sociedade, incluindo aí a excessiva violência e a absoluta ausência de valores referenciais do comportamento, encontram raiz justamente na desestruturação familiar, que vigora nos nossos dias.

O modelo familiar monogâmico, ao qual a nossa cultura se filia, vem dos tempos bíblicos mais remotos, cuja organização está retratada na legenda do “casal do paraíso”, história que remonta ao tempo dos antigos hebreus, para significar o modelo familiar criado por Deus. Prefiro não adentrar na polêmica acerca da existência (ou não) de Adão e Eva, porque essa discussão não cabe aqui nessas notas. Refiro-me apenas ao modelo familiar que era praticado entre os hebreus, desde Abraão, e que teve seu maior reforço na cultura romana, quando o cristianismo chegou a Roma, nos primeiros séculos da nossa era, pois os romanos eram tradicionalmente monogâmicos, muito antes de conhecerem a doutrina cristã. Sob esse aspecto, houve um “casamento” perfeito entre as culturas hebraica e romana, de onde nasceu o cristianismo ocidental. Embora a origem do cristianismo, geograficamente falando, seja a região da Galiléia, onde Jesus viveu, mais especificamente, Jerusalém, onde foi crucificado, do ponto de vista histórico, o cristianismo europeu surgiu em Roma, através das pregações de Paulo e depois com Pedro, que ali fixou residência. Aos poucos, os costumes e tradições judaicas foram perdendo espaço e terreno para os costumes gregos e romanos, que se incorporaram ao pensamento cristão espalhando-se assim pela Europa e, via de consequência, para os povos da América.

Porém, esse modelo familiar tradicional passa por severas mudanças, a partir do século XX, e está agora competindo com outros modelos familiares que não existiram anteriormente, quais sejam, as famílias monoparentais (pais com filhos/as sem mãe(s) ou mães com filhos/as sem pai(s)), famílias homoafetivas masculinas e femininas, muitas vezes com seus filhos adotados, cujo reconhecimento jurídico já existe, mas são vistas com restrições pelas diferentes religiões. A religião católica tem bravamente batalhado contra essas mudanças, como também sempre se pôs contrária ao aborto e ao controle da natalidade. Nessas circunstâncias, eu gostaria de fazer aqui uma reflexão acerca dessa rejeição da doutrina cristã sobre os modelos alternativos de família, sob a alegação de que são contrárias à natureza e também porque Cristo ensinou que o casamento só é legítimo entre homem e mulher. O fundamento da afirmação de ser “contrário à natureza” é porque nas uniões homoafetivas não é possível a geração de filhos e a finalidade essencial do matrimônio é a geração da prole. Assim está prescrito no Direito Canônico: “Cân. 1055 – §1. O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem o consórcio de toda a vida, por sua índole natural ordenado ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados foi por Cristo elevado à dignidade de sacramento.” No entanto, parece-me que esse conceito de “natureza” está espelhado no modo de vida típico dos animais não humanos, aqueles que nós chamamos de irracionais. Nestes, sim, a finalidade da aproximação entre o macho e a fêmea é para a geração da prole. Contudo, devemos pensar que a natureza humana, dada a racionalidade que a informa, pode ser considerada em um nível diferente da natureza animal e assim pensando, a finalidade da união matrimonial não precisa, necessariamente, estar ordenada para a geração dos filhos, embora essa seja uma consequência biológica e psicologicamente esperada e até, sob certo aspecto, necessária para o amadurecimento de ambos como pessoas humanas. Mas, pode acontecer, que um casal decida não querer filhos e, nem por isso, o casamento deles estaria se desviando da finalidade, porque o consórcio familiar tem outros objetivos pessoais e sociais.

Portanto, afirmar simplesmente que a união matrimonial que não leva à geração dos filhos é contrária à natureza implica a equiparação entre a natureza humana e a natureza animal, o que não é uma legítima equiparação. Afinal, quando Deus deu ao homem a racionalidade, já o estava distinguindo dos demais seres vivos, ou seja, aquilo que deve ser considerado de acordo com a natureza humana não pode tomar como ponto de referência a natureza dos animais. Essa doutrina adentrou o pensamento cristão a partir do aproveitamento que Sto Tomás fez do pensamento de Aristóteles. Este grego é o autor do famoso conceito do homem como “animal racional”, isto é, enquanto animal, o homem é igual aos demais seres vivos, só enquanto racional ele se distingue. Atualmente, mesmo os filósofos cristãos não mais concordam com essa definição aristotélica, por entenderem que a animalidade humana tem um caráter próprio e essencialmente distinto dos demais viventes.

Em relação ao ensinamento de Cristo, também diversas vezes repetido por Paulo (“Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher; e os dois formarão uma só carne...” -Mateus 19, 5; Efésios 5, 31), sem nenhuma dúvida, ambos estão referendando e recomendando a tradição judaica mais antiga, bem como a tradição grega e romana. Esse era o modelo familiar conhecido então, não faria qualquer sentido, por exemplo, se Jesus tivesse dito algo assim: daqui a 2.000 anos, vocês verão aparecer outras formas de matrimônio diferentes... Jesus falava na linguagem compreensível para aquele povo e dava exemplos conhecidos pela cultura deles. Agora, vejamos outro conhecido trecho do evangelho de Mateus (12, 46-50): “Falava ainda Jesus à multidão quando sua mãe e seus irmãos chegaram do lado de fora, querendo falar com ele. Alguém lhe disse: "Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem falar contigo". "Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?", perguntou ele. E, estendendo a mão para os discípulos, disse: "Aqui estão minha mãe e meus irmãos! Pois quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe".” Se nós lermos esse trecho de acordo com a mentalidade contemporânea acerca das uniões familiares, podemos ver aí uma alusão de Cristo a um outro modelo de família. Os exegetas interpretam esse trecho referindo-se à Igreja, isto é, a nós cristãos, como sendo a grande família de Cristo. Para mim, não há dúvida que essa interpretação é legítima. No entanto, encarando sob outra perspectiva, podemos também entender que Jesus não estaria se referindo apenas ao corpo místico, que é a Igreja, mas também a outras possíveis uniões familiares (pais, mães, irmãos, irmãs) que não fosse aquela típica fórmula familiar da sociedade do seu tempo. A expressão de Cristo revela, numa leitura descuidada, até uma atitude desrespeitosa para com Maria, ao perguntar: “quem é minha mãe?” embora nós tenhamos consciência de que Ele não agiu assim. Estou colocando aqui essa reflexão porque eu penso que, se Cristo tivesse vivido numa época histórica em que existissem outros modelos de uniões familiares, provavelmente ele não se oporia, porque mais importante do que a geração da prole, o matrimônio deve ser uma comunhão de vida e de amor. Por outras palavras, na minha opinião, as uniões familiares alternativas não são contrárias à natureza e nem são incompatíveis com a doutrina cristã. Basta que abramos um pouco a nossa mente para tentar compreender a palavra de Cristo de acordo com as nuances de cada época.

Falando agora um pouquinho sobre as leituras, o Livro do Eclesiástico traz aqueles conselhos aos filhos sobre o respeito aos pais, que precisam ser sempre lembrados e praticados. A obediência aos pais, o cuidado dos filhos com os pais idosos, mesmo quando já sem lucidez, que além de obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação, para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé. Este texto tem aplicação sempre atual em qualquer sociedade, porque a relação saudável entre pais e filhos foi sempre um dos pontos fundamentais de sustentação da sociedade. E assim também o conselho de Paulo a Colossenses:“Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas. Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor. Pais, não intimideis os vossos filhos, para que eles não desanimem. ” (Cl 3, 18-21).

Que a Sagrada Família de Nazaré continue inspirando as nossas famílias e oriente também os modelos familiares alternativos, sempre no seguimento dos ensinamentos cristãos.

Cordial abraço a todos e votos de Feliz Ano Novo.


quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - NATAL DO SENHOR - 25.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – NATAL DO SENHOR – A PALAVRA DA COMUNICAÇÃO – 25.12.2013

Caros Confrades,

Eu gostaria de compartilhar com vocês algumas ideias que me vieram à cabeça na celebração da missa do Natal do Senhor, nesta quarta feira. As duas leituras (Carta aos Hebreus e Evangelho de João) contêm referências muito interessantes ao Verbo (Palavra) de Deus e eu compreendi que a vinda de Cristo antecipou em dois milênios a invenção da internet: Jesus foi a primeira mensagem transmitida através de um meio etéreo, de um modo análogo ao que temos hoje nas transmissões de mensagens pelos satélites de comunicação.

Comecemos pela Carta aos Hebreus. Anteriormente, atribuía-se a autoria desta epístola a Paulo, depois a crítica literária concluiu que não seria ele o autor. Todavia, não se sabe ao certo quem a escreveu, mas deve ter sido um judeu convertido, que procura demonstrar a continuidade da tradição hebraica em Jesus Cristo, com o objetivo de converter aqueles que ainda estavam em dúvida sobre a sua messianidade. O autor inicia com uma afirmação taxativa e convincente: Jesus é a nova palavra, pela qual o Pai se comunica com a humanidade. Diz o texto: Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo. (Hb 1, 1-2). Isto é, a palavra de Deus transmitida através dos Profetas era uma forma de comunicação indireta com a humanidade. Mas nesses dias (os últimos, segundo ele), a Palavra veio diretamente através do Filho. Agora o interlocutor não fala mais um discurso indireto: o Senhor disse..., ele agora fala na primeira pessoa: eu vos digo... A comunicação agora é direta e plena.

Nós vivemos na sociedade da comunicação. Em nenhuma época histórica anterior, as comunicações foram tão difundidas, tão utilizadas, tão diversificadas. Mas, por isso mesmo, existe hoje, mais do que no passado, a possibilidade de uma falha no processo comunicativo, as mensagens falsas estão espalhadas junto com as mensagens autênticas. Por isso, sempre nos cercamos de cuidados de segurança. No telefone, temos o identificador de chamadas. Nos e-mail temos as senhas e os protocolos. Nas transações pela internet, temos cartões magnéticos, chips e códigos criptografados, tudo com o objetivo de garantir a autenticidade da comunicação. Pois bem, no caso de Jesus, essa segurança da comunicação se fazia pelos milagres que ele realizou. Os chefes do povo hebreu, os sacerdotes puseram Jesus em prova por diversas vezes, tendo ele sempre conseguido encontrar uma saída estratégica. Apesar disso, muitos não creram nele. O autor da epístola aos Hebreus tenta, através de uma argumentação bem construída, mostrar que em Jesus se consumam as profecias e, na pessoa dele, temos o esplendor da glória do Pai e a expressão do seu ser (Hb 1, 3). A palavra de Deus, transmitida por Cristo, é assim a palavra autêntica, aliás, Cristo é a própria palavra e, como tal, sustenta o universo, perdoa os pecados, coloca-se acima dos anjos, pois a nenhum dos anjos Deus se referiu dizendo “eu hoje de gerei”, somente para Cristo essa declaração foi ouvida.

Essa teologia da palavra está descrita, em sua forma mais perfeita, no prólogo do evangelho de João. Essa síntese teológica é tão apropriada que, na liturgia antiga, antes do Concílio Vaticano II, esse trecho do evangelho de João era lido em todas as missas, no final da cerimônia, com o título de “último evangelho”. Após o Concílio, com a reforma litúrgica, essa leitura foi retirada. A título de informação, é importante lembrar que este evangelho foi escrito por volta do ano 100 d.C., ou seja, após todos os outros, que foram escritos entre os anos 60 e 70 d.C. João era o discípulo mais jovem e também o que viveu por mais tempo, tendo falecido de causas naturais, enquanto os demais foram martirizados. Além disso, João era o “discípulo amado” e provavelmente Cristo teria conversado com ele assuntos que não falara aos demais. Foi a ele que Jesus confiou Maria, sua mãe, quando estava pregado na cruz. João é o único evangelista que, com certeza, testemunhou os fatos e conviveu diretamente com Cristo. Marcos e Lucas não tiveram essa convivência e sobre Mateus, embora tenha sido um dos doze, existem dúvidas acerca da autoria do texto do evangelho que lhe é atribuído. Portanto, João é o único dos evangelistas que, com certeza, viveu ao lado de Cristo.

Segundo os historiadores, João já estava bastante idoso e tinha se estabelecido em Éfeso, onde era o líder da igreja local. Os seus seguidores fizeram-lhe diversos pedidos para que ele escrevesse o seu testemunho da vivência com Cristo, mas João havia se recusado a fazer isso antes. Porém, vendo se aproximar o fim dos seus dias, resolveu aceitar o desafio de escrever as suas memórias. Consta que não foi ele próprio o escriba, mas um secretário dele, a quem João teria ditado as palavras. Antes de iniciar o trabalho da escrita, João e o escriba teriam feito uma semana de orações e jejum, preparando-se para a tarefa e pedindo a iluminação divina para reunir na sua memória os fatos com precisão e inteireza. Também há de se levar em conta que João conhecia os demais evangelhos, os quais eram lidos nas catequeses das igrejas orientais. Por isso, o texto de João, além de ser mais elaborado, inclui diversas passagens de vida de Cristo, que não são relatadas nos demais textos. E também é de se considerar que, na época da escrita desse evangelho, a evolução doutrinária cristã estaria já bastante mesclada com a filosofia grega, tendo com isso um maior embasamento teórico e conceitual. Daí a característica marcante e diferenciada do evangelho joanino.

João inicia assim (Jo 1, 1): “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.” Esta é a tradução atual da CNBB. No texto latino, temos: no princípio era o Verbo... no texto grego, temos: no princípio era o Lógos. Com o intuito de tornar o texto bíblico mais popular, sem perda do caráter teológico, a tradução oficial agora é a Palavra. Nesta pequena frase, João faz afirmações marcantes da doutrina teológica que já se desenvolvera naquela época. De trás para frente, temos: a Palavra (o Verbo) é Deus, isto é, não é apenas um profeta, é mais do que um profeta, é o próprio Deus. A Palavra (o Verbo) estava com Deus, isto é, antes de se humanizar, a Palavra estava unida a Deus, a Palavra se fundia com Deus. Isso aconteceu desde o princípio, pois no princípio de tudo, a Palavra (o Verbo) já existia, isto é, a Palavra (o Verbo) não começou a existir apenas agora que se humanizou, mas já existia desde sempre. E no versículo 14, logo adiante, está a tradicional e conhecidíssima verdade: E a Palavra (o Verbo) se fez carne e habitou entre nós. E no versículo 11: a Palavra (o Verbo) veio para o que era seu, mas os seus não a reconheceram. Aqui é que entra a ligação direta do evangelho de João com o texto da carta aos Hebreus: Jesus é a Palavra do Pai.

Todo esse hino sobre a Palavra tem seu ponto central na frase: o Verbo se fez carne. A Palavra de Deus veio habitar no mundo e se tornou um de nós. É interessante compreendermos a expressão grega, na qual o evangelho de João foi originalmente escrito. Diz assim: kai ó Lógos sarx egéneto. Só uma explicação rápida: Kai=preposição “e”; ó Lógos = o Verbo, a Palavra; Egéneto = forma passiva do verbo “gennaw” (gerar, produzir); Sarx é aqui o vocábulo chave. Traduz-se literalmente por “carne”, mas significa bem mais do que este vocábulo da língua portuguesa. Em geral, quando nos referimos a carne colocamos em oposição aos ossos, portanto, num sentido bem limitado. No grego, sarx significa o corpo inteiro feito de carne e osso, o corpo humano quando se refere às pessoas. Num sentido mais figurado, significa “natureza humana”. Portanto, dizer que o Verbo tornou-se “sarx” quer dizer que a Palavra tornou-se gente, transformou-se em ser humano, humanizou-se. No hebraico, assim como no grego, quando se fala a expressão “toda a carne” isso quer dizer todas as pessoas, não apenas os músculos, que constituem a parte carnal propriamente falando. Por isso, a expressão “o Verbo se fez carne” deve ser entendida como a Palavra transformou-se em um de nós, assumiu a natureza humana, virou gente. Atentem só para a profundidade dessa afirmação. Quando nós falamos, a nossa palavra é apenas um som, que se propaga no ar até certa distância, depois desaparece. Mas a Palavra de Deus é tão poderosa, tão enorme, que se transforma em alguém, se consolida em outro Ser igual a Ele (desde o princípio) e, nos últimos tempos, transformou-se também em pessoa humana, passou a ter uma existência histórica, desceu da sua grandeza imensa e veio mostrar-se em carne e osso. A Palavra: Jesus é a própria palavra do Pai vivendo entre nós, mesmo após ter deixado a sua forma humana e retornado apenas à forma divina. Essa comunicação perfeita do Pai conosco é, de fato, a primeira autêntica mensagem transmitida do infinito para a história, é o e-mail divino inaugurando a era das comunicações, através de uma mensagem perfeita.

Nesse espírito, quero renovar sinceros votos de Feliz Natal a todos.


domingo, 22 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - O SONHO DE JOSÉ - 22.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – O SONHO DE JOSÉ – 22.12.2013

Caros Confrades,

Neste quarto domingo do Advento, a liturgia dá continuidade ao tema da anunciação do anjo a Maria, quando ela aceitou ser a Mãe de Deus, tema que foi abordado na festa da Imaculada Conceição. Agora, o foco da liturgia se volta para José, o esposo de Maria, que se viu embaraçado diante da notícia de Maria estar grávida sem ele ser o pai... foi necessário que o “anjo” do Senhor viesse acudi-lo e remediar a situação, através do sonho revelador.

Na primeira leitura, do profeta Isaias (Is 7, 10-14), lemos aquela famosa predição sobre a futura vinda do Messias: uma virgem conceberá e parirá um filho, que terá o nome de Emanuel (Is 7, 14). O profeta Isaias é aquele que melhor predisse a chegada do Messias, com extraordinária precisão de detalhes. Ao ler hoje esse trecho de Isaias, acerca da concepção virginal, lembrei-me de uma notícia lida na internet nesta semana, acerca de um fato curioso: nos Estados Unidos, cerca de 5% das jovens que engravidam são virgens, o que é um fenômeno atípico desde os tempos bíblicos. Faço menção disso aqui não para comparar com a concepção divina de Maria, mas para dizer que uma tal situação não algo assim tão incomum, embora sempre chame a atenção. Associado a este fato da concepção virginal, existe ainda outro comentário exegético acerca do termo “virgem”, que no contexto bíblico não significa exatamente a virgindade no sentido biológico, mas no sentido da juventude da mulher. Era como se “virgem” fosse sinônimo de “jovem mulher”. Na hora da tradução para o latim, São Jerônimo utilizou o vocábulo “virgem” neste sentido de mulher jovem, pelo fato de que as mulheres jovens, comumente, são virgens. Daí a hermenêutica bíblica tradicional passou a entender a palavra “virgem” no sentido da integridade corporal da mulher, desenvolvendo toda uma teologia acerca da virgindade e isso vai contra a tendência usual do povo hebreu, pois num contexto histórico de espera do Messias, a mulher que permanecia virgem, portanto, sem chance de ter filhos, era considerada uma indigna por Javeh, já que ela nunca poderia ser a mãe do Messias. Desse modo, a profecia de Isaías quando diz uma “virgem conceberá” deve ser entendida como uma “jovem conceberá”. Polêmica à parte, o fato é que a concepção divina de Maria foi um fenômeno que intrigou José, levando-o a cogitar mil alternativas, até ser tranquilizado pela “revelação angelical”.

Tentemos imaginar a situação. José era casado com Maria, mas ainda não coabitavam, de acordo com o costume daquela época. Maria ainda estava passando por um “treinamento” para assumir as funções próprias do matrimônio. Os textos bíblicos não esclarecem como foi que José tomou conhecimento: se foi Maria quem contou a ele ou se ele, José, percebeu a gravidez. De um modo ou de outro, José sabia que não era ele o pai, então, cabia-lhe denunciar a esposa por mau comportamento perante os sacerdotes, mas José sabia que isso implicaria o apedrejamento de Maria, de acordo com a Lei de Moisés. José era justo e não queria fazer mau juízo sobre Maria, porém não entendia como aquela gravidez tinha ocorrido. Então, resolveu simplesmente abandoná-la, viajar para outras terras e seguir sua vida por lá. Só que isso era muito trabalhoso, afinal, mudar de domicílio não é fácil nos dias de hoje, devia ser mais complexo ainda naquela época. José se encontrava nesse dilema sobre o que fazer. Foi quando ele teve o sonho com o anjo, fato que é narrado por Mateus no evangelho deste domingo (Mt 1, 18-24). É interessante observar que a Bíblia relata diversos episódios em que Javeh fala com as pessoas em sonho, seja diretamente, seja através de um mensageiro. A palavra “mensageiro”, em grego, diz-se “angelos”, derivada do verbo “angelô” (anunciar, proclamar), que se transformou no latim em “angelus” e, em português, passou para “anjo”, perdendo a relação com a raiz grega, devido à troca do G pelo J.

Os personagens bíblicos que foram visitados por esses mensageiros (angelos) não descrevem como é a aparência deles, porém, os artistas medievais se encarregaram de compor a sua figura como um ser masculino, de grande beleza, tendo as omoplatas desenvolvidas em forma de asas como os pássaros, por causa da sua grande agilidade de deslocamento. E assim ficou criada a figura estereotipada do anjo que todos conhecemos. No entanto, não podemos nos esquecer que Lúcifer era também um anjo da corte celeste, apesar disso, a figura deste é retratada pelos mesmos artistas de uma forma totalmente diversa. Digo isso para que retiremos da nossa cabeça as imagens medievais, quando nos referimos aos mensageiros divinos. Por que razão não existem figuras femininas como anjos (ou anjas), apenas figuras masculinas? Evidentemente, entra aí toda a carga cultural do machismo, típico da cultura grego-romana. Apesar da sua feição marcadamente andrógina, no entanto, eles são apresentados sempre como seres masculinos, em coerência com a mesma cultura que afirma que somente os homens podem exercer os ministérios eclesiais. E o mais curioso é que a grande maioria dos cristãos, em vez de lembrar dessa matriz cultural para explicar o machismo presente nos textos bíblicos, faz o oposto, ou seja, utiliza os próprios textos bíblicos para justificar o machismo eclesiástico.

Pois bem, mas voltando à história sobre o sonho de José, vemos uma diferença curiosa na forma como o mensageiro (anjo) apareceu a José e a Maria. No caso de Maria, ela estava desperta e dialogou com ele. No caso de José, ele estava dormindo e não participou da conversa, apenas recebeu uma informação. É o caso de indagarmos se, efetivamente, um mensageiro lhe apareceu ou se ele apenas sonhou, foi apenas um sonho simples, da mesma forma como nós, muitas vezes, estamos com uma dúvida nos atormentando e, num sonho, vislumbramos uma solução. Aliás, se formos observar bem, nas diversas vezes em que um texto bíblico se refere a um mensageiro (anjo), em geral, a presença de um ser angelical não é de fato necessária, mas a situação se esclarece com uma explicação psicológica. O caso do sonho de José é um desses exemplos. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. A referência ao mensageiro fica mais por conta da tradição hebraica, ainda muito presente no cristianismo primitivo. E também devido ao estado de desenvolvimento científico da época, em que esses fenômenos psicológicos eram sempre considerados como manifestações divinas ou demoníacas. Disso podemos concluir, com alguma segurança, que a doutrina tradicional acerca dos anjos precisa ser repensada e redimensionada, dando-lhe uma compreensão mais realista e menos fantasiosa.

O caso da anunciação a Maria já foge a essa regra, por causa do diálogo que ela travou com o anjo até ser convencida e dar o seu aceite. Há uma intervenção divina na história, trata-se de algo realmente miraculoso na sua essência, algo que apenas uma explicação da psicologia não seria suficiente. Isso é que torna diferente a atuação do “mensageiro” divino em certas situações em que há uma justificativa para a sua presença, enquanto em outros casos a referência ao “mensageiro” é apenas intuída ou suposta. E em geral isso ocorre quando o fato está relacionado a um sonho. Deus Pai instruiu José através de um sonho, assim como muitas vezes nos instrui em situações de dúvida, apontando-nos uma solução viável, seja quando estamos sonhando ou quando simplesmente temos um “estalo” na mente, aquilo que os psicólogos chamam de “insight”, uma descoberta inesperada e instantânea que a nossa mente produz, em situações emergenciais.

E para não deixar passar, faço uma breve referência à segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (Rm 1, 1-7), na qual Paulo destaca a descendência de Jesus da raça de David (em grego: ek spérmatos David) segundo a natureza humana, e predestinado como Filho de Deus em poder, segundo o Espírito. Curiosamente, o texto da CNBB traduz a palavra latina “praedestinatus” (literalmente, predestinado) como “autenticado”. Deliberadamente, penso eu, a tradução evita usar a palavra “predestinado” por causa da doutrina da predestinação, que não é acolhida pela teologia católica, substituindo-a por uma palavra mais da cultura contemporânea: autenticado. No entanto, eu considero essa palavra perigosa no seu entendimento, porque traz subjacente a ideia do que não é original, mas uma cópia carimbada... sinceramente, tem certas traduções que aparecem nos textos oficiais da CNBB que complicam aquilo que deveriam explicar. Dizer que Jesus é autenticado como Filho de Deus com o poder do Espírito, ao meu ver, deturpa o significado do texto paulino e dá a impressão de uma coisa subalterna, uma segunda via que se autentica para ter validade oficial. Com certeza, Jesus não precisa de autenticação.

Ao ensejo, envio a todos sinceros votos de Feliz Natal.


domingo, 15 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DO ADVENTO - MAIS QUE UM PROFETA - 15.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – MAIS QUE UM PROFETA – 15.12.2013

Caros Confrades,

Sempre no 3º domingo, a liturgia sóbria do advento abre espaço para a alegria da próxima chegada do Senhor. O refrão latino antigo dizia: gaudete in Domino, iterum dico, gaudete. Alegrai-vos no Senhor, outra vez eu digo, alegrai-vos. Este é o tema dominante desta liturgia, que traz na leitura do evangelho o elogio que Jesus faz a João Batista: muito mais do que um profeta, dentre os nascidos, ninguém é maior do que ele. E, de carona, faz outro rasgado elogio a todos nós, seus seguidores.

A primeira leitura, do profeta Isaias (35, 1-10), expressa a alegria dos cativos ao serem libertados da Babilônia e retornarem a Jerusalém: “Dizei às pessoas deprimidas: 'Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a recompensa de Deus; é ele que vem para vos salvar'. Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um cervo e se desatará a língua dos mudos. Os que o Senhor salvou, voltarão para casa.” (Is 1, 4-10) Esta alegria do retorno para casa é comparada com a alegria da Igreja pela chegada do Senhor, que se avizinha. A liturgia relembra a festa dos hebreus celebrando a sua libertação do cativeiro babilônico, fazendo alusão com o júbilo que deve tomar conta de todo o mundo cristão, com a chegada da libertação trazida por Cristo. Se aquela libertação terrena foi motivo de tanto regozijo para os hebreus, então para nós, que recebemos de Cristo a salvação eterna, a alegria deve ser muito maior. A parte final do versículo 10 é bem sugestiva: “Eles virão a Sião cantando louvores, com infinita alegria brilhando em seus rostos: cheios de gozo e contentamento, não mais conhecerão a dor e o pranto.” Sião, a Jerusalém terrestre, é a Igreja de Cristo, da qual nós fazemos parte. A ela, nós nos dirigimos cantando louvores e com intensa alegria brilhando nos nossos rostos, tal como os hebreus libertados. O livro de Isaías, ao mesmo tempo em que descreve a tristeza do povo cativo, do meio para o fim, passa a retratar o grande contentamento daqueles que puderam voltar à sua terra. É uma leitura recorrente no tempo do advento, era também uma leitura preferida por Cristo, quando comparecia aos cultos na sinagoga e lhe era dada a palavra.

Na segunda leitura, retirada da carta de Tiago (Tg 5, 7-10), ele exorta os cristãos sobre a vinda do Senhor, que está próxima. Sabemos que, naquele tempo, tanto os apóstolos quanto as comunidades primitivas, esperavam para “os próximos dias” o retorno de Jesus, como ele havia prometido, na sua ascensão, que retornaria em breve daquele mesmo modo. A interpretação que os primeiros cristãos davam a essa passagem bíblica era totalmente literal. Então, a exortação de Tiago tinha outro sentido daquela referida pelo profeta Isaías, pois no tempo deste Profeta, o Messias ainda não havia chegado, portanto, ele se refere à sua chegada original. Mas na carta de Tiago, a espera é pelo seu retorno, para julgar o mundo. Daí percebermos uma certa ingenuidade nas palavras de Tiago, no versículo 9: “Irmãos, não vos queixeis uns dos outros, para que não sejais julgados. Eis que o juiz está às portas.” Essa queixa é também referida por Paulo na segunda carta aos Tessalonicenses, lida num domingo recente, em que ele repreendia os cristãos que já não queriam trabalhar só esperando o dia do Senhor voltar. Esse mesmo contexto é repetido por Tiago. Esta carta não é dirigida a uma comunidade particular, mas a todos os judeus da diáspora. Esta diáspora, ou dispersão dos judeus, ocorreu logo após a destruição de Jerusalém pelos romanos, levando-os a se espalharem por diferentes territórios da Ásia, África e sul da Europa. Em alguns destes locais, já existiam diversas igrejas cristãs, sobretudo aquelas fundadas por Paulo, tendo sido até motivo de atritos. Na verdade, os judeus ficaram sem um território próprio e isso perdurou por vários séculos, pois eles somente voltaram a ter um local geográfico com a criação do Estado de Israel, após a segunda guerra mundial. E, diga-se de passagem, a situação permanece insegura, com as constantes intrigas e guerras intentadas por seus vizinhos árabes, que nunca aceitaram essa decisão política, fruto da mediação, mais do que isso, da imposição dos norte americanos. Pois bem, a carta de Tiago reflete assim aquela ideia que era comum entre os primeiros cristãos, acerca da iminente volta de Cristo, para julgar os vivos e os mortos.

No evangelho de Mateus (Mt 11, 2-11), lemos o episódio em que João Batista, encontrando-se preso a mandado de Herodes, ouviu falar de Cristo e enviou a ele alguns dos seus discípulos, a fim de colher informações: és Tu o que esperamos ou devemos esperar por outro? Lembremos que João Batista já havia batizado Jesus no rio Jordão, portanto, já o conhecia, inclusive foi naquela ocasião em que o Espírito Santo apareceu, portanto, João Batista tinha conhecimento da existência de Jesus, que era também seu parente. Mas, mesmo assim, visto que estava preso e não podia fazer isso pessoalmente, enviou seus discípulos para se certificarem do fato. Não deixa de ser curiosa essa referência do evangelho à atitude de dúvida de João Batista sobre o Messias. Será que ele não tinha certeza de que Jesus era o Messias? Creio que sim, no entanto, João Batista precisava que os seus discípulos tivessem essa certeza também . Sabemos que João Batista tinha seguidores, alguns deles depois se tornaram discípulos de Jesus. Então, eu entendo esse fato de João Batista enviar mensageiros para irem ter com Jesus como uma forma de dizer a eles algo assim: pronto, a minha carreira terminou, de agora em diante, vocês devem ficar com Ele. De fato, daquela prisão onde se encontrava, João Batista não mais saiu, vindo a ser decapitado a pedido da concubina de Herodes, como forma de vingar-se dele, que havia censurado a sua vida marital com Herodes, por ser uma união ilegítima. A vingança da imperatriz não demorou a acontecer.

Jesus não respondeu aos discípulos de João de forma direta, mas apenas indiretamente, ao afirmar: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados.” (Mt 11, 4-5) Se observarmos bem, Jesus estava mandando o recado para João Batista mais ou menos nesses termos: vejam só, estão acontecendo aquelas coisas que o profeta Isaías dissera que iria acontecer com a chegada do Messias. Isto é, para um bom entendedor (e João conhecia as escrituras), ali estava uma resposta claríssima. João deve ter, então, se despedido dos seus discípulos, porque a sua missão tinha sido encerrado. E ele havia dito, em outra ocasião (João 1, 27), que ele era apenas o precursor e que, quando o Messias chegasse, ele (João) não seria digno nem de desatar as correias das suas sandálias. Deve ter sido algo parecido que João, por fim, esclareceu aos seus discípulos e os encaminhou para o seguimento de Jesus.

Mas o evangelista Mateus prossegue (11, 9) a história, contando o que Jesus falou aos seus ouvintes, após a saída dos discípulos de João: eu vos afirmo que ele é mais do que um profeta. Aqueles que ouviam Jesus conheciam os Profetas da Israel e os reverenciava, assim Jesus quis dar a eles uma noção da importância de João Batista. E citando o seu profeta preferido, Isaías, completou: “É dele que está escrito: 'Eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de ti'.” (Mt 11, 10) O “está escrito” quer dizer: Isaías escreveu isso. Em outra ocasião, Jesus havia utilizado outra passagem de Isaías para se identificar na sinagoga, perante os rabinos e os chefes do povo, quando foi convidado para fazer a leitura e escolheu um trecho de Isaias, conforme está relatado no evangelho de Lucas (4, 16). Após a leitura na qual Isaías falava sobre as qualidades do futuro Messias, Jesus disse: hoje se cumpriu essa escritura. Foi como se dissesse: Isaías estava falando a meu respeito. E complementando o elogio que fazia a João Batista, assim terminou o seu discurso: “de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do que João Batista.” (Mt 11,11) Vejam que Jesus exclui a si próprio dessa referência, fazendo assim uma alusão velada à sua divindade. Ele nunca falava de si mesmo diretamente, mas sempre de forma indireta. Porém, logo depois, Jesus faz um surpreendente elogio a todos nós, cristãos: “No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele.” Ou seja, meus amigos, Jesus coloca os seus seguidores (João foi seu precursor), quer dizer, nos coloca acima de João Batista, porque ele não chegou a ver a revelação e a salvação, que nós conhecemos através dos seus ensinamentos.

Que nós realmente façamos por onde sermos dignos desse tremendo elogio que Jesus nos fez.


domingo, 8 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - FESTIVIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO - 08.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – FESTIVIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO – 08.12.2013

Caros Confrades,

Neste segundo domingo do advento, a liturgia dominical cede lugar para a celebração da festividade da Imaculada Conceição de Maria. Trata-se de um dos dogmas católicos acerca de Maria, proclamado em 1854, pelo Papa Pio IX. Contudo, a tradição já acreditava nessa verdade desde os primeiros tempos do cristianismo. Quando em 431, no Concílio de Éfeso, foi proclamado o dogma de Maria Mãe de Deus (Teotokos), a crença na sua imaculada conceição já existia.

Hoje, vou iniciar este comentário de uma forma diferente. Vou reproduzir aqui trechos de um livro pouco conhecido: O Evangelho Secreto da Virgem Maria. Trata-se de um manuscrito descoberto na Itália, em 1864, que teria sido encontrado por uma monja espanhola no século IV, durante uma viagem que ela teria feito à Terra Santa. Trata-se de um evangelho apócrifo. Porém, apócrifo não significa falso, apenas que não foi oficialmente colocado na lista da Bíblia. A narração é toda na primeira pessoa e tem um aspecto intimista, diferente dos evangelhos canônicos. Seguem alguns trechos:
“Eu tinha 15 anos, fazia alguns meses que me tornara mulher. Aquele dia era um sábado, meu pai tinha ido à sinagoga para ouvir, como sempre, a leitura de um trecho da Torah e a explicação que dava o rabino. Joaquim disse a mim e à minha mãe que, naquela manhã, Asaf (o rabino) estava preocupado. As notícias que chegavam das cidades que abrigavam destacamentos romanos não eram boas. Comentava-se que na longínqua Jerusalém havia muita inquietação e que alguns rabinos haviam dito que a chegada do Messias poderia estar próxima.”
“Meu pai e José, meu querido primo e quase meu marido, voltaram juntos, subindo a encosta até a nossa casa, onde José deixou meu pai, não sem antes pedir-lhe que me saudasse em seu nome, o que sempre me fazia corar. Estamos em tempos sublimes, tempos de Deus, assim disse meu pai, dando por terminado o relato e indicando-nos em seguida o horário tardio, próprio para se deitar. Logo me encaminhei para o meu quarto mas não podia dormir. Assim, comecei a rezar. Sentia fortemente que, naquela noite, o Senhor esperava algo de mim. Minha resposta foi positiva. Disse-lhe que, por mim, as coisas se fariam segundo a sua vontade e não segundo os meus cálculos e previsões. Foi quando tudo ocorreu. Meu pequeno quarto se encheu de luz. Estava ajoelhada, com minha modesta roupa presa acima do joelho para não gastá-la, quando ele apareceu. Confesso que não me assustei. Nunca me ocorreu que fosse um enviado do maligno, pois a paz que dele emanava era representativa apenas de Deus. Porém, quando começou a falar, assustei-me um pouco, não porque sua voz fosse feia, mas o que me disse me deixou perplexa: Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo.” O que significava “cheia de graça”, pensei? Ele se deu conta e em seguida tentou tranquilizar-me: Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus.”

Interrompo aqui. Quem quiser ler o livro, procure na Editora Paulus. Agora, reporto-me à liturgia de hoje. A primeira leitura (Gn 3, 9-20) narra o diálogo de Deus com Adão e Eva, logo após terem comido do fruto proibido, no qual consta o trecho onde diz que a mulher irá esmagar a cabeça da serpente e essa é uma das imagens bíblicas relacionadas com o culto a Maria. Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 1, 3-6), temos a pregação do Apóstolo ensinando que nós somos filhos adotivos de Deus, por intermédio da encarnação de Jesus, que se deu através de Maria. Paulo não menciona essa última parte, ela fica apenas subentendida. E o evangelho de Lucas (1, 26-38) narra o mesmo episódio que transcrevi acima, retirado do evangelho secreto de Maria, ou seja, a visita do anjo.

Pois bem. Já foi objeto de discussão em diversas ocasiões, entre pessoas do grupo, acerca de um certo exagerado devocionismo, que ocorre nos meios católicos, em torno da figura de Maria, o que leva a desviar a atenção dos fiéis para mistérios centrais da religião. Para muitos fiéis, a devoção a Maria e aos Santos está acima da fé em Jesus Cristo e do conhecimento dos textos bíblicos. Recentemente, eu li a respeito de um grupo católico que promove uma campanha para que a Igreja Católica declare que Maria é co-redentora, conferindo a ela mérito similar à função redentora de Cristo. Proliferam no mundo todo relatos miraculosos sobre aparições de Maria a diversas pessoas, sendo as mais conhecidas Fátima e Lourdes, mas há também Guadalupe (comemorada nesta semana), Aparecida, Medjugorje, Loreto, além dos inúmeros títulos com os quais Maria é reverenciada. Nesse contexto, a religião católica torna-se mais mariológica do que cristológica, indicando uma real inversão dos valores do cristianismo, onde a figura de Cristo deve ocupar sempre o lugar de destaque.

Sem desmerecer a figura de Maria e a sua importância dentro da economia da salvação, devemos reconhecer que, de fato, existe uma exacerbação devocional da sua pessoa. E não apenas por parte dos fiéis leigos, mas também dentro da hierarquia. Embora os textos evangélicos sejam centrados na pessoa de Cristo e a menção ao nome de Maria se faça em poucas ocasiões, a tradição religiosa se encarregou de desenvolver-lhe todo um culto paralelo desde os inícios do cristianismo. Os dogmas relacionados à figura de Maria demonstram a força dessa tradição, que é invocada para fundamentar as verdades da fé: Maria Mãe de Deus, a Virgindade de Maria, a Imaculada Conceição de Maria, a Assunção de Maria. O primeiro foi proclamado no contexto da negação de alguns padres medievais sobre a maternidade divina de Maria, pois afirmavam que Maria era mãe de Jesus enquanto homem apenas. Os outros fundamentam-se exclusivamente na tradição.

A concepção imaculada de Maria é deduzida da sua condição de Mãe de Deus, por uma dedução lógica de que, para ser a Mãe de Deus, ela não devia ter pecado nenhum. A este se liga diretamente o dogma da Virgindade. E associado aos dois, o dogma cristológico de ser Jesus o Filho Unigênito, ou seja, Maria não teve outros filhos. E indiretamente associada a tudo isso está a doutrina teológica católica que, desde os primeiros tempos, encara com pessimismo tudo que se relaciona ao sexo, a ponto de Sto Agostinho ter sugerido que o pecado de Adão e Eva teria sido um pecado sexual. A moral católica considera, ainda hoje, que o sexo se destina exclusivamente à procriação, sendo permitido apenas com essa finalidade. E na sequência disso, repudia qualquer outra finalidade da sexualidade, bem como rejeita qualquer método ou medicamento que, de alguma forma, impeça, vede ou obstacule a concepção. A supervalorização da virgindade de Maria, o título de Sempre Virgem Maria, exerce uma pressão subliminar dentro do catolicismo acerca da exclusão da sexualidade, sobretudo em relação às mulheres. Estas sempre foram mais tolhidas no seu comportamento, ao longo da história, diferentemente dos homens que, mesmo estando submetidos aos mesmos paradigmas sexuais, contudo sempre obtiveram maior tolerância neste aspecto. Chegou ao ponto de Freud, no século XIX, colocar como motivação principal para uma série de doenças que afligia as mulheres daquele tempo, como relacionadas à repressão sexual, criando o termo “histeria” para designar um certo tipo de comportamento psicótico típico das mulheres. Vale lembrar que “hystera”, em grego, significa “útero”, donde se supunha que tinha origem essa doença ligada à sexualidade.

Quero deixar claro que as ideias apresentadas acima não significam que, da minha parte, haja qualquer restrição às verdades de fé proclamadas acerca de Maria. Eu não me coloco do lado dos não-católicos, que consideram Maria uma mulher como as outras, eu creio que ela foi especial, não tenho dúvidas disso. No entanto, sou honesto em admitir que o exagero devocional que a tradição cultural criou acerca da personalidade de Maria se põe como obstáculo a uma mais adequada vivência do cristianismo. Que Maria nos ensine a compreender essas verdades, dentro da mais autêntica dimensão da nossa fé.


domingo, 1 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - VIGILÂNCIA E PRONTIDÃO - 01.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – VIGILÂNCIA E PRONTIDÃO – 01.12.2013

Caros Confrades,

Como ocorre em todos os anos, a liturgia do 1º domingo do advento dá início ao ano litúrgico seguinte ao ano civil, de acordo com o calendário eclesiástico. As últimas quatro semanas do ano civil já são, na verdade, as primeiras semanas do novo ano litúrgico, assim como acontece com os calendários religiosos dos povos mais antigos, que fica desencontrado do ano civil padrão.

Lamentavelmente, a celebração do Natal vem se transformando, a cada ano, em um evento comercial, tempo de grande estímulo para consumir o que nem se necessita. Muito embora a tradição de montar os presépios continue, a sua utilização visa muito mais aos fins comerciais do que às verdadeiras finalidades religiosas. Sem falar em que alguns, mais céticos, criticam a escolha da data, porque a festa pagã que foi substituída pela comemoração do Natal era uma festa romana, dedicada ao deus saturno (saturnália), que se prolongava por uma semana, indo do dia 17 ao dia 24 de dezembro, período em que ocorre o solstício de inverno no hemisfério norte. Era uma espécie de festa carnavalesca, como a nossa cultura celebra no período que antecede a quaresma, com muitas bebedeiras e licenciosidades. Somente a partir do século IV d.C., após a conversão do imperador Constantino e a liberdade religiosa instituída por ele, a festividade foi transformada em homenagem ao Natal do Senhor. Portanto, a festa do Natal e a sua celebração no dia 25 de dezembro não se refere à data do nascimento de Cristo, mas apenas é uma festa comemorativa. A rigor, não se sabe a data em que Cristo nasceu e a data referencial do ano Zero também é contestada por recentes pesquisas.

Digo isso porque existem muitas crenças e tradições não apoiadas em documentos e que sempre foram ensinadas como verdadeiras, tendo-se incorporado à nossa cultura há tempos. A existência de Jesus é fato documentado por historiadores da época, que nem eram ligados ao cristianismo. Porém as datas referentes aos eventos principais da sua vida estão envoltas em discussões e incertezas. O ano litúrgico, portanto, se constitui com datas e períodos que só simbolizam os fatos comemorados, não devendo ser tomadas essas datas como corretas do ponto de vista histórico. Isso, porém, em nada compromete a grandeza e a importância das festas que comemoramos nessa época do ano. Como autênticos cristãos, devemos nos esforçar para romper o esquema comercial que se incorporou ao Natal e celebrar o tempo do advento com o espírito de verdadeira conversão, pensando na vinda do Senhor.

As leituras litúrgicas deste primeiro domingo recomendam a vigilância e a prontidão, porque ninguém sabe o dia em que o Senhor virá. A primeira leitura, de Isaías (Is 2, 1-5) narra uma visão tida pelo Profeta sobre Jerusalém: de lá, vem a palavra do Senhor. Para lá, acorrerão as nações e os povos todos. A visão do Profeta se aplica, nos dias de hoje, à Igreja de Cristo, firmemente estabelecida no monte da casa do Senhor, referindo-se ainda, numa visão de futuro, à Jerusalém celeste, onde se encontra Cristo ressuscitado. O Cristo que nasce menino na festividade do Natal é o mesmo que se encontra glorioso na Jerusalém celeste. O simbolismo do seu (re)nascimento a cada ano nos convida a também internamente reavivar em nós mesmos o cristão que se formou em nosso íntimo pelo batismo e que se consolidou na nossa formação religiosa, pela qual somos chamados a dar testemunho dos ensinamentos que recebemos. No advento, a cada ano, Cristo quer renascer em cada um de nós, para isso, Ele requer nossa disponibilidade e nossa participação. O verdadeiro natal é o que deve ocorrer no coração de cada crente, onde devemos montar o verdadeiro presépio para acolher o que vai nascer. A Belém dos nossos dias deve ser encontrada no coração de cada cristão, que se prepara para celebrar a festa do Natal. Daí o tema deste domingo ser a vigilância.

A segunda leitura é da Carta aos Romanos (Rm 13, 11-14), na qual Paulo exorta os cristãos de Roma para que se dispam das ações das trevas e se revistam das armas da luz. E, com certeza fazendo referência às festas da saturnália, recomenda: “Procedamos honestamente, como em pleno dia: nada de glutonerias e bebedeiras, nem de orgias sexuais e imoralidades, nem de brigas e rivalidades.” (Rm 13, 13) Tudo isso era o que realmente as pessoas faziam naquelas festas pagãs. Porém, os cristãos não devem proceder iguais a eles, mas devem dar o exemplo de filhos da luz. Recordemo-nos que Paulo pregava em Roma nos tempos de Nero, quando o cristianismo era uma religião proscrita e os cristãos eram tidos como inimigos do Estado Romano, precisando reunir-se às escondidas, para a celebração dos seus cultos religiosos. Paulo pregava nas catacumbas e apenas secretamente visitava as residências dos cristãos romanos, correndo o risco de ser denunciado e preso, como de fato o foi por diversas vezes. Mas o risco valia a pena, porque divulgar o cristianismo em Roma, a capital do mundo de então, significava muito para a propagação de sua doutrina. A prova está em que, quando Constantino decretou a liberdade religiosa, grande parte da comunidade romana já era adepta do cristianismo, embora às escondidas.

A leitura do evangelho é retirada de Mateus. Estamos iniciando um novo ano e a cada ano, um dos evangelhos recebe o destaque para as leituras. No ano litúrgico de 2014, o escolhido é Mateus. Então, lemos hoje o texto do cap. 24, 37 a 44, no qual Jesus fala aos discípulos sobre a sua vinda nos últimos tempos. Assim como nos tempos de Noé, quando ocorreu o dilúvio sem ninguém esperar, assim também será a vinda gloriosa de Cristo. Por isso, todos devem estar vigilantes sempre, porque na hora em que menos a gente pensa, o Filho do Homem virá. Sorrateiro como um ladrão, o Filho do Homem irá surpreender muita gente. Ninguém sabe quando será este dia, ou melhor, ninguém sabe quando será o seu dia. Nos dias atuais, a reflexão teológica prefere interpretar esses discursos escatológicos de Jesus de forma diferente do que tradicionalmente se entendia, isto é, não como um fenômeno coletivo, de proporções globais, mas como um evento privado que acontece na vida de cada pessoa. De fato, o Senhor já se encontra na sua glória e, em vez de ser Ele que venha ao nosso encontro, nós, ao contrário, é que nos dirigiremos a ele. Vejamos o texto do evangelho: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada.(Mt. 24, 40-41) Se o evento final fosse de ordem generalizada, todos seriam arrebatados simultaneamente, não faria sentido um ser levado e outro deixado. Se o final dos tempos fosse ocorrer como um grande cataclismo de proporções gigantescas, como entenderam os artistas da Renascença e assim pintaram nos seus quadros clássicos, não ocorreria de alguém ser poupado, mas a destruição alcançaria a todos. Será mais lógico concluir que essa arrebatação para prestar contas das suas ações ocorrerá em nível histórico e individual. Por isso é que cada um deve estar sempre vigilante, pois ninguém sabe o dia nem a hora em que isso ocorrerá.

Portanto, o ensinamento de Cristo para que estejamos sempre vigilantes não se refere a um tempo abstrato e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé n'Ele deve ser renovada a cada dia, para que não sejamos surpreendidos, não pelo fim do mundo, porque deste nós não sabemos nada, mas pelo fim dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. A contagem dos nossos dias em meses e anos nos dão a medida para cada um avaliar a chegada ao final da carreira, quando deveremos estar com a fé robustecida e a esperança sempre renovada. O tempo do natal é o período que a Igreja nos coloca para fazermos esta reflexão realista, não como forma de intimidação ou aterrorização, mas como exercício de viver conscientes e centrados nos nossos compromissos de cristãos.

Aproveitemos o tempo do advento para renovar a cada dia a nossa fé na sua divina promessa.