COMENTÁRIO LITÚRGICO
– FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 29.12.2013
Caros confrades,
Como de costume, no
último domingo do ano, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família
de Nazaré, convidando-nos a refletir sobre a nossa própria família,
a vocação primeira e mais antiga de todo ser humano. A família é
a instituição social e religiosa mais antiga que existe, pois
surgiu com o próprio ser humano, em data tão remota que é
impossível fazer uma citação precisa. Uma coisa parece certa:
desde que o ser humano (homem e mulher) tornaram-se tais já traziam
consigo a tradição do grupo familiar, como sendo o ponto de
referência básico e estrutural de cada um de nós. Grande parte dos
males que afligem atualmente a sociedade, incluindo aí a excessiva
violência e a absoluta ausência de valores referenciais do
comportamento, encontram raiz justamente na desestruturação
familiar, que vigora nos nossos dias.
O modelo familiar
monogâmico, ao qual a nossa cultura se filia, vem dos tempos
bíblicos mais remotos, cuja organização está retratada na legenda
do “casal do paraíso”, história que remonta ao tempo dos
antigos hebreus, para significar o modelo familiar criado por Deus.
Prefiro não adentrar na polêmica acerca da existência (ou não) de
Adão e Eva, porque essa discussão não cabe aqui nessas notas.
Refiro-me apenas ao modelo familiar que era praticado entre os
hebreus, desde Abraão, e que teve seu maior reforço na cultura
romana, quando o cristianismo chegou a Roma, nos primeiros séculos
da nossa era, pois os romanos eram tradicionalmente monogâmicos,
muito antes de conhecerem a doutrina cristã. Sob esse aspecto, houve
um “casamento” perfeito entre as culturas hebraica e romana, de
onde nasceu o cristianismo ocidental. Embora a origem do
cristianismo, geograficamente falando, seja a região da Galiléia,
onde Jesus viveu, mais especificamente, Jerusalém, onde foi
crucificado, do ponto de vista histórico, o cristianismo europeu
surgiu em Roma, através das pregações de Paulo e depois com Pedro,
que ali fixou residência. Aos poucos, os costumes e tradições
judaicas foram perdendo espaço e terreno para os costumes gregos e
romanos, que se incorporaram ao pensamento cristão espalhando-se
assim pela Europa e, via de consequência, para os povos da América.
Porém, esse modelo
familiar tradicional passa por severas mudanças, a partir do século
XX, e está agora competindo com outros modelos familiares que não
existiram anteriormente, quais sejam, as famílias monoparentais
(pais com filhos/as sem mãe(s) ou mães com filhos/as sem pai(s)),
famílias homoafetivas masculinas e femininas, muitas vezes com seus
filhos adotados, cujo reconhecimento jurídico já existe, mas são
vistas com restrições pelas diferentes religiões. A religião
católica tem bravamente batalhado contra essas mudanças, como
também sempre se pôs contrária ao aborto e ao controle da
natalidade. Nessas circunstâncias, eu gostaria de fazer aqui uma
reflexão acerca dessa rejeição da doutrina cristã sobre os
modelos alternativos de família, sob a alegação de que são
contrárias à natureza e também porque Cristo ensinou que o
casamento só é legítimo entre homem e mulher. O fundamento da
afirmação de ser “contrário à natureza” é porque nas uniões
homoafetivas não é possível a geração de filhos e a finalidade
essencial do matrimônio é a geração da prole. Assim está
prescrito no Direito Canônico: “Cân. 1055 – §1. O pacto
matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem o consórcio de
toda a vida, por sua índole natural ordenado ao
bem dos cônjuges e à geração e educação da prole,
entre batizados foi por Cristo elevado à dignidade de sacramento.”
No entanto, parece-me que esse conceito de “natureza” está
espelhado no modo de vida típico dos animais não humanos, aqueles
que nós chamamos de irracionais. Nestes, sim, a finalidade da
aproximação entre o macho e a fêmea é para a geração da prole.
Contudo, devemos pensar que a natureza humana, dada a racionalidade
que a informa, pode ser considerada em um nível diferente da
natureza animal e assim pensando, a finalidade da união matrimonial
não precisa, necessariamente, estar ordenada para a geração dos
filhos, embora essa seja uma consequência biológica e
psicologicamente esperada e até, sob certo aspecto, necessária para
o amadurecimento de ambos como pessoas humanas. Mas, pode acontecer,
que um casal decida não querer filhos e, nem por isso, o casamento
deles estaria se desviando da finalidade, porque o consórcio
familiar tem outros objetivos pessoais e sociais.
Portanto, afirmar
simplesmente que a união matrimonial que não leva à geração dos
filhos é contrária à natureza implica a equiparação entre a
natureza humana e a natureza animal, o que não é uma legítima
equiparação. Afinal, quando Deus deu ao homem a racionalidade, já
o estava distinguindo dos demais seres vivos, ou seja, aquilo que
deve ser considerado de acordo com a natureza humana não pode tomar
como ponto de referência a natureza dos animais. Essa doutrina
adentrou o pensamento cristão a partir do aproveitamento que Sto
Tomás fez do pensamento de Aristóteles. Este grego é o autor do
famoso conceito do homem como “animal racional”, isto é,
enquanto animal, o homem é igual aos demais seres vivos, só
enquanto racional ele se distingue. Atualmente, mesmo os filósofos
cristãos não mais concordam com essa definição aristotélica, por
entenderem que a animalidade humana tem um caráter próprio e
essencialmente distinto dos demais viventes.
Em relação ao
ensinamento de Cristo, também diversas vezes repetido por Paulo
(“Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe
e se unirá à sua mulher; e os dois formarão uma só
carne...” -Mateus 19, 5; Efésios 5, 31), sem nenhuma dúvida,
ambos estão referendando e recomendando a tradição judaica mais
antiga, bem como a tradição grega e romana. Esse era o modelo
familiar conhecido então, não faria qualquer sentido, por exemplo,
se Jesus tivesse dito algo assim: daqui a 2.000 anos, vocês verão
aparecer outras formas de matrimônio diferentes... Jesus falava na
linguagem compreensível para aquele povo e dava exemplos conhecidos
pela cultura deles. Agora, vejamos outro conhecido trecho do
evangelho de Mateus (12, 46-50): “Falava ainda Jesus à multidão
quando sua mãe e seus irmãos chegaram do lado de fora, querendo
falar com ele. Alguém lhe disse: "Tua mãe e teus irmãos estão
lá fora e querem falar contigo". "Quem é minha mãe e
quem são meus irmãos?", perguntou ele. E, estendendo a mão
para os discípulos, disse: "Aqui estão minha mãe e meus
irmãos! Pois quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este
é meu irmão, minha irmã e minha mãe".” Se nós lermos
esse trecho de acordo com a mentalidade contemporânea acerca das
uniões familiares, podemos ver aí uma alusão de Cristo a um outro
modelo de família. Os exegetas interpretam esse trecho referindo-se
à Igreja, isto é, a nós cristãos, como sendo a grande família de
Cristo. Para mim, não há dúvida que essa interpretação é
legítima. No entanto, encarando sob outra perspectiva, podemos
também entender que Jesus não estaria se referindo apenas ao corpo
místico, que é a Igreja, mas também a outras possíveis uniões
familiares (pais, mães, irmãos, irmãs) que não fosse aquela
típica fórmula familiar da sociedade do seu tempo. A expressão de
Cristo revela, numa leitura descuidada, até uma atitude
desrespeitosa para com Maria, ao perguntar: “quem é minha mãe?”
embora nós tenhamos consciência de que Ele não agiu assim. Estou
colocando aqui essa reflexão porque eu penso que, se Cristo tivesse
vivido numa época histórica em que existissem outros modelos de
uniões familiares, provavelmente ele não se oporia, porque mais
importante do que a geração da prole, o matrimônio deve ser uma
comunhão de vida e de amor. Por outras palavras, na minha opinião,
as uniões familiares alternativas não são contrárias à natureza
e nem são incompatíveis com a doutrina cristã. Basta que abramos
um pouco a nossa mente para tentar compreender a palavra de Cristo de
acordo com as nuances de cada época.
Falando agora um
pouquinho sobre as leituras, o Livro do Eclesiástico traz aqueles
conselhos aos filhos sobre o respeito aos pais, que precisam ser
sempre lembrados e praticados. A obediência aos pais, o cuidado dos
filhos com os pais idosos, mesmo quando já sem lucidez, que além de
obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação,
para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé.
Este texto tem aplicação sempre atual em qualquer sociedade, porque
a relação saudável entre pais e filhos foi sempre um dos pontos
fundamentais de sustentação da sociedade. E assim também o
conselho de Paulo a Colossenses:“Esposas,
sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor.
Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas.
Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto
no Senhor. Pais, não intimideis os vossos filhos, para que eles não
desanimem. ” (Cl 3,
18-21).
Que a Sagrada Família
de Nazaré continue inspirando as nossas famílias e oriente também
os modelos familiares alternativos, sempre no seguimento dos
ensinamentos cristãos.
Cordial abraço a todos
e votos de Feliz Ano Novo.