quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - NATAL DO SENHOR - 25.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – NATAL DO SENHOR – A PALAVRA DA COMUNICAÇÃO – 25.12.2013

Caros Confrades,

Eu gostaria de compartilhar com vocês algumas ideias que me vieram à cabeça na celebração da missa do Natal do Senhor, nesta quarta feira. As duas leituras (Carta aos Hebreus e Evangelho de João) contêm referências muito interessantes ao Verbo (Palavra) de Deus e eu compreendi que a vinda de Cristo antecipou em dois milênios a invenção da internet: Jesus foi a primeira mensagem transmitida através de um meio etéreo, de um modo análogo ao que temos hoje nas transmissões de mensagens pelos satélites de comunicação.

Comecemos pela Carta aos Hebreus. Anteriormente, atribuía-se a autoria desta epístola a Paulo, depois a crítica literária concluiu que não seria ele o autor. Todavia, não se sabe ao certo quem a escreveu, mas deve ter sido um judeu convertido, que procura demonstrar a continuidade da tradição hebraica em Jesus Cristo, com o objetivo de converter aqueles que ainda estavam em dúvida sobre a sua messianidade. O autor inicia com uma afirmação taxativa e convincente: Jesus é a nova palavra, pela qual o Pai se comunica com a humanidade. Diz o texto: Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo. (Hb 1, 1-2). Isto é, a palavra de Deus transmitida através dos Profetas era uma forma de comunicação indireta com a humanidade. Mas nesses dias (os últimos, segundo ele), a Palavra veio diretamente através do Filho. Agora o interlocutor não fala mais um discurso indireto: o Senhor disse..., ele agora fala na primeira pessoa: eu vos digo... A comunicação agora é direta e plena.

Nós vivemos na sociedade da comunicação. Em nenhuma época histórica anterior, as comunicações foram tão difundidas, tão utilizadas, tão diversificadas. Mas, por isso mesmo, existe hoje, mais do que no passado, a possibilidade de uma falha no processo comunicativo, as mensagens falsas estão espalhadas junto com as mensagens autênticas. Por isso, sempre nos cercamos de cuidados de segurança. No telefone, temos o identificador de chamadas. Nos e-mail temos as senhas e os protocolos. Nas transações pela internet, temos cartões magnéticos, chips e códigos criptografados, tudo com o objetivo de garantir a autenticidade da comunicação. Pois bem, no caso de Jesus, essa segurança da comunicação se fazia pelos milagres que ele realizou. Os chefes do povo hebreu, os sacerdotes puseram Jesus em prova por diversas vezes, tendo ele sempre conseguido encontrar uma saída estratégica. Apesar disso, muitos não creram nele. O autor da epístola aos Hebreus tenta, através de uma argumentação bem construída, mostrar que em Jesus se consumam as profecias e, na pessoa dele, temos o esplendor da glória do Pai e a expressão do seu ser (Hb 1, 3). A palavra de Deus, transmitida por Cristo, é assim a palavra autêntica, aliás, Cristo é a própria palavra e, como tal, sustenta o universo, perdoa os pecados, coloca-se acima dos anjos, pois a nenhum dos anjos Deus se referiu dizendo “eu hoje de gerei”, somente para Cristo essa declaração foi ouvida.

Essa teologia da palavra está descrita, em sua forma mais perfeita, no prólogo do evangelho de João. Essa síntese teológica é tão apropriada que, na liturgia antiga, antes do Concílio Vaticano II, esse trecho do evangelho de João era lido em todas as missas, no final da cerimônia, com o título de “último evangelho”. Após o Concílio, com a reforma litúrgica, essa leitura foi retirada. A título de informação, é importante lembrar que este evangelho foi escrito por volta do ano 100 d.C., ou seja, após todos os outros, que foram escritos entre os anos 60 e 70 d.C. João era o discípulo mais jovem e também o que viveu por mais tempo, tendo falecido de causas naturais, enquanto os demais foram martirizados. Além disso, João era o “discípulo amado” e provavelmente Cristo teria conversado com ele assuntos que não falara aos demais. Foi a ele que Jesus confiou Maria, sua mãe, quando estava pregado na cruz. João é o único evangelista que, com certeza, testemunhou os fatos e conviveu diretamente com Cristo. Marcos e Lucas não tiveram essa convivência e sobre Mateus, embora tenha sido um dos doze, existem dúvidas acerca da autoria do texto do evangelho que lhe é atribuído. Portanto, João é o único dos evangelistas que, com certeza, viveu ao lado de Cristo.

Segundo os historiadores, João já estava bastante idoso e tinha se estabelecido em Éfeso, onde era o líder da igreja local. Os seus seguidores fizeram-lhe diversos pedidos para que ele escrevesse o seu testemunho da vivência com Cristo, mas João havia se recusado a fazer isso antes. Porém, vendo se aproximar o fim dos seus dias, resolveu aceitar o desafio de escrever as suas memórias. Consta que não foi ele próprio o escriba, mas um secretário dele, a quem João teria ditado as palavras. Antes de iniciar o trabalho da escrita, João e o escriba teriam feito uma semana de orações e jejum, preparando-se para a tarefa e pedindo a iluminação divina para reunir na sua memória os fatos com precisão e inteireza. Também há de se levar em conta que João conhecia os demais evangelhos, os quais eram lidos nas catequeses das igrejas orientais. Por isso, o texto de João, além de ser mais elaborado, inclui diversas passagens de vida de Cristo, que não são relatadas nos demais textos. E também é de se considerar que, na época da escrita desse evangelho, a evolução doutrinária cristã estaria já bastante mesclada com a filosofia grega, tendo com isso um maior embasamento teórico e conceitual. Daí a característica marcante e diferenciada do evangelho joanino.

João inicia assim (Jo 1, 1): “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.” Esta é a tradução atual da CNBB. No texto latino, temos: no princípio era o Verbo... no texto grego, temos: no princípio era o Lógos. Com o intuito de tornar o texto bíblico mais popular, sem perda do caráter teológico, a tradução oficial agora é a Palavra. Nesta pequena frase, João faz afirmações marcantes da doutrina teológica que já se desenvolvera naquela época. De trás para frente, temos: a Palavra (o Verbo) é Deus, isto é, não é apenas um profeta, é mais do que um profeta, é o próprio Deus. A Palavra (o Verbo) estava com Deus, isto é, antes de se humanizar, a Palavra estava unida a Deus, a Palavra se fundia com Deus. Isso aconteceu desde o princípio, pois no princípio de tudo, a Palavra (o Verbo) já existia, isto é, a Palavra (o Verbo) não começou a existir apenas agora que se humanizou, mas já existia desde sempre. E no versículo 14, logo adiante, está a tradicional e conhecidíssima verdade: E a Palavra (o Verbo) se fez carne e habitou entre nós. E no versículo 11: a Palavra (o Verbo) veio para o que era seu, mas os seus não a reconheceram. Aqui é que entra a ligação direta do evangelho de João com o texto da carta aos Hebreus: Jesus é a Palavra do Pai.

Todo esse hino sobre a Palavra tem seu ponto central na frase: o Verbo se fez carne. A Palavra de Deus veio habitar no mundo e se tornou um de nós. É interessante compreendermos a expressão grega, na qual o evangelho de João foi originalmente escrito. Diz assim: kai ó Lógos sarx egéneto. Só uma explicação rápida: Kai=preposição “e”; ó Lógos = o Verbo, a Palavra; Egéneto = forma passiva do verbo “gennaw” (gerar, produzir); Sarx é aqui o vocábulo chave. Traduz-se literalmente por “carne”, mas significa bem mais do que este vocábulo da língua portuguesa. Em geral, quando nos referimos a carne colocamos em oposição aos ossos, portanto, num sentido bem limitado. No grego, sarx significa o corpo inteiro feito de carne e osso, o corpo humano quando se refere às pessoas. Num sentido mais figurado, significa “natureza humana”. Portanto, dizer que o Verbo tornou-se “sarx” quer dizer que a Palavra tornou-se gente, transformou-se em ser humano, humanizou-se. No hebraico, assim como no grego, quando se fala a expressão “toda a carne” isso quer dizer todas as pessoas, não apenas os músculos, que constituem a parte carnal propriamente falando. Por isso, a expressão “o Verbo se fez carne” deve ser entendida como a Palavra transformou-se em um de nós, assumiu a natureza humana, virou gente. Atentem só para a profundidade dessa afirmação. Quando nós falamos, a nossa palavra é apenas um som, que se propaga no ar até certa distância, depois desaparece. Mas a Palavra de Deus é tão poderosa, tão enorme, que se transforma em alguém, se consolida em outro Ser igual a Ele (desde o princípio) e, nos últimos tempos, transformou-se também em pessoa humana, passou a ter uma existência histórica, desceu da sua grandeza imensa e veio mostrar-se em carne e osso. A Palavra: Jesus é a própria palavra do Pai vivendo entre nós, mesmo após ter deixado a sua forma humana e retornado apenas à forma divina. Essa comunicação perfeita do Pai conosco é, de fato, a primeira autêntica mensagem transmitida do infinito para a história, é o e-mail divino inaugurando a era das comunicações, através de uma mensagem perfeita.

Nesse espírito, quero renovar sinceros votos de Feliz Natal a todos.


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