domingo, 22 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - O SONHO DE JOSÉ - 22.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – O SONHO DE JOSÉ – 22.12.2013

Caros Confrades,

Neste quarto domingo do Advento, a liturgia dá continuidade ao tema da anunciação do anjo a Maria, quando ela aceitou ser a Mãe de Deus, tema que foi abordado na festa da Imaculada Conceição. Agora, o foco da liturgia se volta para José, o esposo de Maria, que se viu embaraçado diante da notícia de Maria estar grávida sem ele ser o pai... foi necessário que o “anjo” do Senhor viesse acudi-lo e remediar a situação, através do sonho revelador.

Na primeira leitura, do profeta Isaias (Is 7, 10-14), lemos aquela famosa predição sobre a futura vinda do Messias: uma virgem conceberá e parirá um filho, que terá o nome de Emanuel (Is 7, 14). O profeta Isaias é aquele que melhor predisse a chegada do Messias, com extraordinária precisão de detalhes. Ao ler hoje esse trecho de Isaias, acerca da concepção virginal, lembrei-me de uma notícia lida na internet nesta semana, acerca de um fato curioso: nos Estados Unidos, cerca de 5% das jovens que engravidam são virgens, o que é um fenômeno atípico desde os tempos bíblicos. Faço menção disso aqui não para comparar com a concepção divina de Maria, mas para dizer que uma tal situação não algo assim tão incomum, embora sempre chame a atenção. Associado a este fato da concepção virginal, existe ainda outro comentário exegético acerca do termo “virgem”, que no contexto bíblico não significa exatamente a virgindade no sentido biológico, mas no sentido da juventude da mulher. Era como se “virgem” fosse sinônimo de “jovem mulher”. Na hora da tradução para o latim, São Jerônimo utilizou o vocábulo “virgem” neste sentido de mulher jovem, pelo fato de que as mulheres jovens, comumente, são virgens. Daí a hermenêutica bíblica tradicional passou a entender a palavra “virgem” no sentido da integridade corporal da mulher, desenvolvendo toda uma teologia acerca da virgindade e isso vai contra a tendência usual do povo hebreu, pois num contexto histórico de espera do Messias, a mulher que permanecia virgem, portanto, sem chance de ter filhos, era considerada uma indigna por Javeh, já que ela nunca poderia ser a mãe do Messias. Desse modo, a profecia de Isaías quando diz uma “virgem conceberá” deve ser entendida como uma “jovem conceberá”. Polêmica à parte, o fato é que a concepção divina de Maria foi um fenômeno que intrigou José, levando-o a cogitar mil alternativas, até ser tranquilizado pela “revelação angelical”.

Tentemos imaginar a situação. José era casado com Maria, mas ainda não coabitavam, de acordo com o costume daquela época. Maria ainda estava passando por um “treinamento” para assumir as funções próprias do matrimônio. Os textos bíblicos não esclarecem como foi que José tomou conhecimento: se foi Maria quem contou a ele ou se ele, José, percebeu a gravidez. De um modo ou de outro, José sabia que não era ele o pai, então, cabia-lhe denunciar a esposa por mau comportamento perante os sacerdotes, mas José sabia que isso implicaria o apedrejamento de Maria, de acordo com a Lei de Moisés. José era justo e não queria fazer mau juízo sobre Maria, porém não entendia como aquela gravidez tinha ocorrido. Então, resolveu simplesmente abandoná-la, viajar para outras terras e seguir sua vida por lá. Só que isso era muito trabalhoso, afinal, mudar de domicílio não é fácil nos dias de hoje, devia ser mais complexo ainda naquela época. José se encontrava nesse dilema sobre o que fazer. Foi quando ele teve o sonho com o anjo, fato que é narrado por Mateus no evangelho deste domingo (Mt 1, 18-24). É interessante observar que a Bíblia relata diversos episódios em que Javeh fala com as pessoas em sonho, seja diretamente, seja através de um mensageiro. A palavra “mensageiro”, em grego, diz-se “angelos”, derivada do verbo “angelô” (anunciar, proclamar), que se transformou no latim em “angelus” e, em português, passou para “anjo”, perdendo a relação com a raiz grega, devido à troca do G pelo J.

Os personagens bíblicos que foram visitados por esses mensageiros (angelos) não descrevem como é a aparência deles, porém, os artistas medievais se encarregaram de compor a sua figura como um ser masculino, de grande beleza, tendo as omoplatas desenvolvidas em forma de asas como os pássaros, por causa da sua grande agilidade de deslocamento. E assim ficou criada a figura estereotipada do anjo que todos conhecemos. No entanto, não podemos nos esquecer que Lúcifer era também um anjo da corte celeste, apesar disso, a figura deste é retratada pelos mesmos artistas de uma forma totalmente diversa. Digo isso para que retiremos da nossa cabeça as imagens medievais, quando nos referimos aos mensageiros divinos. Por que razão não existem figuras femininas como anjos (ou anjas), apenas figuras masculinas? Evidentemente, entra aí toda a carga cultural do machismo, típico da cultura grego-romana. Apesar da sua feição marcadamente andrógina, no entanto, eles são apresentados sempre como seres masculinos, em coerência com a mesma cultura que afirma que somente os homens podem exercer os ministérios eclesiais. E o mais curioso é que a grande maioria dos cristãos, em vez de lembrar dessa matriz cultural para explicar o machismo presente nos textos bíblicos, faz o oposto, ou seja, utiliza os próprios textos bíblicos para justificar o machismo eclesiástico.

Pois bem, mas voltando à história sobre o sonho de José, vemos uma diferença curiosa na forma como o mensageiro (anjo) apareceu a José e a Maria. No caso de Maria, ela estava desperta e dialogou com ele. No caso de José, ele estava dormindo e não participou da conversa, apenas recebeu uma informação. É o caso de indagarmos se, efetivamente, um mensageiro lhe apareceu ou se ele apenas sonhou, foi apenas um sonho simples, da mesma forma como nós, muitas vezes, estamos com uma dúvida nos atormentando e, num sonho, vislumbramos uma solução. Aliás, se formos observar bem, nas diversas vezes em que um texto bíblico se refere a um mensageiro (anjo), em geral, a presença de um ser angelical não é de fato necessária, mas a situação se esclarece com uma explicação psicológica. O caso do sonho de José é um desses exemplos. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. A referência ao mensageiro fica mais por conta da tradição hebraica, ainda muito presente no cristianismo primitivo. E também devido ao estado de desenvolvimento científico da época, em que esses fenômenos psicológicos eram sempre considerados como manifestações divinas ou demoníacas. Disso podemos concluir, com alguma segurança, que a doutrina tradicional acerca dos anjos precisa ser repensada e redimensionada, dando-lhe uma compreensão mais realista e menos fantasiosa.

O caso da anunciação a Maria já foge a essa regra, por causa do diálogo que ela travou com o anjo até ser convencida e dar o seu aceite. Há uma intervenção divina na história, trata-se de algo realmente miraculoso na sua essência, algo que apenas uma explicação da psicologia não seria suficiente. Isso é que torna diferente a atuação do “mensageiro” divino em certas situações em que há uma justificativa para a sua presença, enquanto em outros casos a referência ao “mensageiro” é apenas intuída ou suposta. E em geral isso ocorre quando o fato está relacionado a um sonho. Deus Pai instruiu José através de um sonho, assim como muitas vezes nos instrui em situações de dúvida, apontando-nos uma solução viável, seja quando estamos sonhando ou quando simplesmente temos um “estalo” na mente, aquilo que os psicólogos chamam de “insight”, uma descoberta inesperada e instantânea que a nossa mente produz, em situações emergenciais.

E para não deixar passar, faço uma breve referência à segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (Rm 1, 1-7), na qual Paulo destaca a descendência de Jesus da raça de David (em grego: ek spérmatos David) segundo a natureza humana, e predestinado como Filho de Deus em poder, segundo o Espírito. Curiosamente, o texto da CNBB traduz a palavra latina “praedestinatus” (literalmente, predestinado) como “autenticado”. Deliberadamente, penso eu, a tradução evita usar a palavra “predestinado” por causa da doutrina da predestinação, que não é acolhida pela teologia católica, substituindo-a por uma palavra mais da cultura contemporânea: autenticado. No entanto, eu considero essa palavra perigosa no seu entendimento, porque traz subjacente a ideia do que não é original, mas uma cópia carimbada... sinceramente, tem certas traduções que aparecem nos textos oficiais da CNBB que complicam aquilo que deveriam explicar. Dizer que Jesus é autenticado como Filho de Deus com o poder do Espírito, ao meu ver, deturpa o significado do texto paulino e dá a impressão de uma coisa subalterna, uma segunda via que se autentica para ter validade oficial. Com certeza, Jesus não precisa de autenticação.

Ao ensejo, envio a todos sinceros votos de Feliz Natal.


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