domingo, 8 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - FESTIVIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO - 08.12.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – FESTIVIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO – 08.12.2013

Caros Confrades,

Neste segundo domingo do advento, a liturgia dominical cede lugar para a celebração da festividade da Imaculada Conceição de Maria. Trata-se de um dos dogmas católicos acerca de Maria, proclamado em 1854, pelo Papa Pio IX. Contudo, a tradição já acreditava nessa verdade desde os primeiros tempos do cristianismo. Quando em 431, no Concílio de Éfeso, foi proclamado o dogma de Maria Mãe de Deus (Teotokos), a crença na sua imaculada conceição já existia.

Hoje, vou iniciar este comentário de uma forma diferente. Vou reproduzir aqui trechos de um livro pouco conhecido: O Evangelho Secreto da Virgem Maria. Trata-se de um manuscrito descoberto na Itália, em 1864, que teria sido encontrado por uma monja espanhola no século IV, durante uma viagem que ela teria feito à Terra Santa. Trata-se de um evangelho apócrifo. Porém, apócrifo não significa falso, apenas que não foi oficialmente colocado na lista da Bíblia. A narração é toda na primeira pessoa e tem um aspecto intimista, diferente dos evangelhos canônicos. Seguem alguns trechos:
“Eu tinha 15 anos, fazia alguns meses que me tornara mulher. Aquele dia era um sábado, meu pai tinha ido à sinagoga para ouvir, como sempre, a leitura de um trecho da Torah e a explicação que dava o rabino. Joaquim disse a mim e à minha mãe que, naquela manhã, Asaf (o rabino) estava preocupado. As notícias que chegavam das cidades que abrigavam destacamentos romanos não eram boas. Comentava-se que na longínqua Jerusalém havia muita inquietação e que alguns rabinos haviam dito que a chegada do Messias poderia estar próxima.”
“Meu pai e José, meu querido primo e quase meu marido, voltaram juntos, subindo a encosta até a nossa casa, onde José deixou meu pai, não sem antes pedir-lhe que me saudasse em seu nome, o que sempre me fazia corar. Estamos em tempos sublimes, tempos de Deus, assim disse meu pai, dando por terminado o relato e indicando-nos em seguida o horário tardio, próprio para se deitar. Logo me encaminhei para o meu quarto mas não podia dormir. Assim, comecei a rezar. Sentia fortemente que, naquela noite, o Senhor esperava algo de mim. Minha resposta foi positiva. Disse-lhe que, por mim, as coisas se fariam segundo a sua vontade e não segundo os meus cálculos e previsões. Foi quando tudo ocorreu. Meu pequeno quarto se encheu de luz. Estava ajoelhada, com minha modesta roupa presa acima do joelho para não gastá-la, quando ele apareceu. Confesso que não me assustei. Nunca me ocorreu que fosse um enviado do maligno, pois a paz que dele emanava era representativa apenas de Deus. Porém, quando começou a falar, assustei-me um pouco, não porque sua voz fosse feia, mas o que me disse me deixou perplexa: Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo.” O que significava “cheia de graça”, pensei? Ele se deu conta e em seguida tentou tranquilizar-me: Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus.”

Interrompo aqui. Quem quiser ler o livro, procure na Editora Paulus. Agora, reporto-me à liturgia de hoje. A primeira leitura (Gn 3, 9-20) narra o diálogo de Deus com Adão e Eva, logo após terem comido do fruto proibido, no qual consta o trecho onde diz que a mulher irá esmagar a cabeça da serpente e essa é uma das imagens bíblicas relacionadas com o culto a Maria. Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 1, 3-6), temos a pregação do Apóstolo ensinando que nós somos filhos adotivos de Deus, por intermédio da encarnação de Jesus, que se deu através de Maria. Paulo não menciona essa última parte, ela fica apenas subentendida. E o evangelho de Lucas (1, 26-38) narra o mesmo episódio que transcrevi acima, retirado do evangelho secreto de Maria, ou seja, a visita do anjo.

Pois bem. Já foi objeto de discussão em diversas ocasiões, entre pessoas do grupo, acerca de um certo exagerado devocionismo, que ocorre nos meios católicos, em torno da figura de Maria, o que leva a desviar a atenção dos fiéis para mistérios centrais da religião. Para muitos fiéis, a devoção a Maria e aos Santos está acima da fé em Jesus Cristo e do conhecimento dos textos bíblicos. Recentemente, eu li a respeito de um grupo católico que promove uma campanha para que a Igreja Católica declare que Maria é co-redentora, conferindo a ela mérito similar à função redentora de Cristo. Proliferam no mundo todo relatos miraculosos sobre aparições de Maria a diversas pessoas, sendo as mais conhecidas Fátima e Lourdes, mas há também Guadalupe (comemorada nesta semana), Aparecida, Medjugorje, Loreto, além dos inúmeros títulos com os quais Maria é reverenciada. Nesse contexto, a religião católica torna-se mais mariológica do que cristológica, indicando uma real inversão dos valores do cristianismo, onde a figura de Cristo deve ocupar sempre o lugar de destaque.

Sem desmerecer a figura de Maria e a sua importância dentro da economia da salvação, devemos reconhecer que, de fato, existe uma exacerbação devocional da sua pessoa. E não apenas por parte dos fiéis leigos, mas também dentro da hierarquia. Embora os textos evangélicos sejam centrados na pessoa de Cristo e a menção ao nome de Maria se faça em poucas ocasiões, a tradição religiosa se encarregou de desenvolver-lhe todo um culto paralelo desde os inícios do cristianismo. Os dogmas relacionados à figura de Maria demonstram a força dessa tradição, que é invocada para fundamentar as verdades da fé: Maria Mãe de Deus, a Virgindade de Maria, a Imaculada Conceição de Maria, a Assunção de Maria. O primeiro foi proclamado no contexto da negação de alguns padres medievais sobre a maternidade divina de Maria, pois afirmavam que Maria era mãe de Jesus enquanto homem apenas. Os outros fundamentam-se exclusivamente na tradição.

A concepção imaculada de Maria é deduzida da sua condição de Mãe de Deus, por uma dedução lógica de que, para ser a Mãe de Deus, ela não devia ter pecado nenhum. A este se liga diretamente o dogma da Virgindade. E associado aos dois, o dogma cristológico de ser Jesus o Filho Unigênito, ou seja, Maria não teve outros filhos. E indiretamente associada a tudo isso está a doutrina teológica católica que, desde os primeiros tempos, encara com pessimismo tudo que se relaciona ao sexo, a ponto de Sto Agostinho ter sugerido que o pecado de Adão e Eva teria sido um pecado sexual. A moral católica considera, ainda hoje, que o sexo se destina exclusivamente à procriação, sendo permitido apenas com essa finalidade. E na sequência disso, repudia qualquer outra finalidade da sexualidade, bem como rejeita qualquer método ou medicamento que, de alguma forma, impeça, vede ou obstacule a concepção. A supervalorização da virgindade de Maria, o título de Sempre Virgem Maria, exerce uma pressão subliminar dentro do catolicismo acerca da exclusão da sexualidade, sobretudo em relação às mulheres. Estas sempre foram mais tolhidas no seu comportamento, ao longo da história, diferentemente dos homens que, mesmo estando submetidos aos mesmos paradigmas sexuais, contudo sempre obtiveram maior tolerância neste aspecto. Chegou ao ponto de Freud, no século XIX, colocar como motivação principal para uma série de doenças que afligia as mulheres daquele tempo, como relacionadas à repressão sexual, criando o termo “histeria” para designar um certo tipo de comportamento psicótico típico das mulheres. Vale lembrar que “hystera”, em grego, significa “útero”, donde se supunha que tinha origem essa doença ligada à sexualidade.

Quero deixar claro que as ideias apresentadas acima não significam que, da minha parte, haja qualquer restrição às verdades de fé proclamadas acerca de Maria. Eu não me coloco do lado dos não-católicos, que consideram Maria uma mulher como as outras, eu creio que ela foi especial, não tenho dúvidas disso. No entanto, sou honesto em admitir que o exagero devocional que a tradição cultural criou acerca da personalidade de Maria se põe como obstáculo a uma mais adequada vivência do cristianismo. Que Maria nos ensine a compreender essas verdades, dentro da mais autêntica dimensão da nossa fé.


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