domingo, 25 de dezembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - NATAL DO SENHOR - A ENCARNAÇÃO - 25.12.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – NATAL DO SENHOR – A ENCARNAÇÃO – 25.12.2016

Caros Leitores,

Então é novamente Natal. É curioso como essa festividade se repete a cada ano, porém sempre se mostra como algo novo, nenhum Natal é idêntico aos anteriores, tem-se aquela sensação de estar celebrando, a cada vez, uma festa inédita. Em nosso subconsciente, o Natal convida à renovação e os nossos pensamentos buscam se reinventar, como se a vida fosse de fato recomeçar. O Natal tem essa força extraordinária de mexer com a nossa acomodação e nos desafiar a “endireitar os caminhos e limpar as veredas”, como disse o profeta. O Natal nos convida a refletir sobre o admirável mistério da encarnação: Deus fez-se carne, isto é, tornou-se gente como nós. Os profetas diziam que isso aconteceria “na plenitude dos tempos” e isso significa que nós vivemos nesse tempo de plenitude, porque depois da encarnação de Cristo, a plena intervenção de Deus na história se tornou perene. Dali em diante, os tempos chegaram ao seu grau mais completo e dessa completude todos nós partilhamos. Talvez por isso o Natal sempre se apresente para nós como uma festa diferente.

As leituras litúrgicas contribuem para isso, trazendo fatos e reflexões para lá de inspirados, explicando com extrema clareza o fenômeno miraculoso da encarnação divina. Na primeira leitura, da Carta aos Hebreus, o seu autor, provavelmente um judeu convertido, procura demonstrar a continuidade da tradição hebraica em Jesus Cristo, com o objetivo de converter aqueles que, porventura, estivessem em dúvida sobre a sua messianidade. Ele inicia com uma afirmação taxativa e convincente: Jesus é a nova palavra, pela qual o Pai se comunica com a humanidade. Diz o texto: Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo. (Hb 1, 1-2). Isto é, a palavra de Deus transmitida através dos Profetas era uma forma de comunicação indireta com a humanidade. Mas nesses dias (os últimos, segundo ele, os tempos plenos), a Palavra de Deus foi transmitida diretamente por ele mesmo, sem intermediários. Agora o interlocutor não fala mais um discurso indireto: o Senhor disse..., ele agora fala na primeira pessoa: Eu vos digo... Não se trata mais do porta-voz, e sim do próprio mandante.

O texto não podia ser mais claro: Jesus fala com autoridade divina própria, não como um mensageiro, assim como foram os profetas. Mas, parece que ele não falou o discurso esperado pelos dirigentes do povo da aliança que, por isso, nele não acreditaram. Os chefes do povo hebreu, os sacerdotes puseram Jesus em prova por diversas vezes, na tentativa de certificar-se da sua origem, tendo ele sempre repetido aquilo que estava nas escrituras, especialmente em Isaías. Apesar disso, muitos não creram nele. O autor da epístola aos Hebreus tenta, através de uma argumentação bem construída, mostrar que em Jesus se consumam as profecias e, na pessoa dele, temos o esplendor da glória do Pai e a expressão do seu ser (Hb 1, 3). A palavra de Deus, transmitida por Cristo, é assim a palavra autêntica, aliás, Cristo é a própria palavra e, como tal, sustenta o universo, perdoa os pecados, coloca-se acima dos anjos, pois a nenhum dos anjos Deus se referiu dizendo “eu hoje de gerei”, somente para Cristo essa declaração foi ouvida.

Essa “teologia da palavra” está descrita, em sua forma mais perfeita, no prólogo do evangelho de João, que antigamente era lido no final de todas as missas, com o título de “último evangelho”. Tratando-se de um texto escrito já no final do primeiro século, tem-se uma perfeita síntese teológica do sentido do mistério da encarnação, reflexão que não aparece nos demais evangelhos, marcadamente descritivos. A leitura do texto de João demonstra o desenvolvimento da compreensão da doutrina de Cristo pelas primeiras comunidades, através das contribuições trazidas pelos “gentios” de cultura grega, sobretudo Paulo. Segundo os historiadores, João estava bastante idoso e tinha se estabelecido em Éfeso, onde era o líder da igreja local. Os seus seguidores fizeram-lhe diversos pedidos para que ele escrevesse o seu testemunho da vivência com Cristo, mas João havia se recusado a fazer isso antes. Porém, vendo se aproximar o fim dos seus dias, resolveu aceitar o desafio de escrever as suas memórias. Consta que não foi ele próprio o escritor, mas um secretário dele, a quem João teria ditado as palavras.

Antes de iniciar o trabalho de resgate de suas memórias, João e o escriba teriam feito uma semana de orações e jejum, preparando-se para a tarefa e pedindo a iluminação divina para que a composição dos fatos se desse com precisão e inteireza. Também há de se levar em conta que João, provavelmente, conhecia os demais evangelhos, os quais eram lidos nas catequeses das igrejas orientais, e ainda os escritos de Paulo. Acresça-se a isso o fato de que João foi testemunha ocular do que escreveu, diferente dos demais, que só ouviram falar. Por isso, o texto de João, além de ser mais elaborado, inclui diversas passagens de vida de Cristo, que não são relatadas nos demais textos.

João inicia assim (Jo 1, 1): “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.” Esta é a tradução atual da CNBB. No texto latino, temos: no princípio era o Verbo... no texto grego, temos: no princípio era o Lógos. Com o intuito de tornar o texto bíblico mais popular, sem perda do caráter teológico, a tradução oficial é a Palavra. Nesta pequena frase, João faz afirmações marcantes da doutrina teológica, que já se desenvolvera naquela época. De trás para frente, temos: a Palavra (o Verbo) é Deus, isto é, Cristo não é apenas um profeta, é mais do que um profeta, é o próprio Deus. A Palavra (o Verbo) estava com Deus, isto é, antes de se humanizar, a Palavra estava unida a Deus, a Palavra se fundia com Deus. Isso aconteceu desde o princípio, pois no princípio de tudo, a Palavra (o Verbo) já existia, isto é, a Palavra (o Verbo) não começou a existir apenas agora que se humanizou, mas já existia desde sempre. E no versículo 14, logo adiante, está a tradicional e conhecidíssima verdade: E a Palavra (o Verbo) se fez carne e habitou entre nós. E no versículo 11: a Palavra (o Verbo) veio para o que era seu, mas os seus não a reconheceram. Aqui é que entra a ligação direta do evangelho de João com a carta aos Hebreus: Jesus é a Palavra do Pai, não reconhecida pelos hebreus.

Todo esse hino sobre a Palavra tem seu ponto central na frase: “o Verbo se fez carne”. A Palavra de Deus veio habitar no mundo e se tornou um de nós. É interessante compreendermos a expressão grega, na qual o evangelho de João foi originalmente escrito. Diz assim: kai ó Lógos sarx egéneto. Só uma explicação rápida: Kai=preposição “e”; ó Lógos = o Verbo, a Palavra; Egéneto = forma passiva do verbo “gennaw” (gerar, produzir); Sarx é aqui o vocábulo chave. Traduz-se literalmente por “carne”, vindo daí o substantivo “encarnação”. Mas “carne” significa no grego bem mais do que este vocábulo da língua portuguesa. Em grego, existe a palavra “soma”, que significa “corpo”, porém, João preferiu usar a palavra “sarx” e isso tem um sentido teológico especial. Corpo é um nome mais genérico, que se aplica a inúmeros objetos, sendo sinônimo de matéria em geral. Todo ente material é corpóreo. Porém quando nos referimos a corpo vivo, colocamos carne em oposição aos ossos, portanto, num sentido bem limitado. Na língua grega, “sarx” significa o corpo inteiro feito de carne e osso, o corpo dos seres vivos, o corpo humano quando se refere às pessoas. Num sentido figurado, “sarx” significa “natureza humana”. Portanto, dizer que o Verbo tornou-se “sarx” quer dizer que a Palavra tornou-se gente, transformou-se em ser humano, encarnou-se, humanizou-se. Desse modo, quando a Bíblia se refere a “toda a carne” isso quer dizer todas as pessoas, as pessoas inteiras, não apenas os músculos, que constituem a parte carnal literalmente falando. O Credo fala na “ressurreição da carne”, não é na ressurreição dos corpos. Pode parecer uma distinção insignificante ou meramente retórica, mas não é. A ressurreição da carne significa a ressurreição da pessoa inteira, porém, não da sua materialidade. Daí porque a teologia não aceita a doutrina da “reencarnação”, porque ela confunde os conceitos de “soma” (corpo) e “sarx” (carne). Por isso, reencarnar não é sinônimo de ressuscitar, porque reencarnação equivale a reunir-se novamente o corpo com o espírito e não é esse o sentido do mistério da encarnação. A expressão “o Verbo se fez carne” deve ser entendida como a Palavra assumiu a natureza humana, virou gente e não como se um espírito tivesse adquirido um corpo. Atentem para a profundidade dessa distinção. Jesus Cristo não foi um espírito que adquiriu um corpo e depois livrou-se dele, com a morte. A Palavra encarnou-se, ou seja, adquiriu a natureza humana e nunca mais a deixou. Jesus Cristo continua encarnado, mesmo não tendo mais materialidade corpórea. Ao adquirir a natureza humana associada à natureza divina, Jesus passou a ter dupla natureza de forma permanente e é por isso que Ele é nosso modelo perene de perfeição, aquele perfil que, um dia, nós alcançaremos, pela salvação que Ele nos conquistou.

Nesse espírito, quero renovar sinceros votos de Feliz Natal a todos.

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domingo, 18 de dezembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - O JUSTO JOSÉ - 18.12.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – O JUSTO JOSÉ – 18.12.2016

Caros Confrades,

Neste quarto domingo do Advento, a liturgia destaca a figura de São José, chamando-o de “o justo”, aquele que compreendeu e aceitou a maternidade de Maria. De início, ficou embaraçado, mas sem querer difamá-la, porque sabia das consequências severas que recairiam sobre ela, planejou deixá-la em segredo. Porém, o mensageiro celeste o tranquilizou e José assumiu com zelo e serenidade a sua missão de cuidador do Messias. São dois momentos críticos e opostos em que a virtude da justiça se revelou nas atitudes de José: a primeira vez, quando, na dúvida da gravidez misteriosa, decidiu não denunciá-la, porque não tinha motivos para duvidar dela; a segunda vez, quando, na certeza advinda com o aviso celeste, transmudou a dúvida em confiança. O Papa Francisco, no sermão de hoje, disse que São José nos ensina a confiar em Deus, quando ele se aproxima de nós.

Na primeira leitura, do profeta Isaias (Is 7, 10-14), lemos aquela famosa previsão sobre a futura vinda do Messias: uma virgem conceberá e parirá um filho, que terá o nome de Emanuel (Is 7, 14). O profeta Isaias é a leitura preferida para a liturgia do advento, por causa da sua precisão de detalhes sobre o futuro Messias. É sempre oportuno esclarecer um tema que já foi motivo de muitas discussões, sobretudo com crentes de outras igrejas, acerca da concepção virginal de Maria e também acerca do fato se Jesus teve (ou não) irmãos. A palavra latina “virgo”, da qual deriva a palavra virgem em português, é a tradução da palavra grega “parthenos”, que significa jovem. Desse modo, o termo “virgem”, no contexto bíblico não significa exatamente a virgindade no sentido biológico, mas no sentido da juventude da mulher. Era como se “virgem” fosse sinônimo de “jovem mulher”. Na hora da tradução para o latim, São Jerônimo utilizou o vocábulo “virgem” neste sentido de mulher jovem, pela falta de outra palavra mais adequada no latim. Porém, daí a hermenêutica bíblica tradicional passou a entender a palavra “virgem” no sentido da integridade corporal da mulher, desenvolvendo toda uma teologia acerca da virgindade, interpretação que vai contra a tendência costumeira do povo hebreu, pois num contexto histórico de espera do Messias, a mulher que permanecia virgem, portanto, sem chance de ter filhos, era considerada uma indigna por Javeh, já que ela nunca poderia ser a mãe do Messias. Desse modo, a profecia de Isaías quando diz uma “virgem conceberá” deve ser entendida como uma “jovem conceberá”. Polêmica à parte, o fato é que a concepção divina de Maria foi um fenômeno que intrigou José.

Tentemos imaginar a situação. José ainda não era casado com Maria, ainda não coabitavam, eram o que corresponde ao noivado, de acordo com o costume daquela época. Maria ainda estava passando por um “treinamento” para assumir as funções próprias do matrimônio. Os textos bíblicos não esclarecem como foi que José tomou conhecimento da gravidez: se foi Maria quem contou a ele ou se ele, José, percebeu. De um modo ou de outro, José sabia que não era ele o pai, então, cabia-lhe denunciar a noiva por mau comportamento perante os sacerdotes, mas José sabia que isso implicaria o apedrejamento de Maria por adultério, de acordo com a Lei de Moisés. José era justo e não queria fazer mau juízo sobre Maria, porém não entendia como aquela gravidez tinha ocorrido. Então, resolveu simplesmente abandoná-la, viajar para outras terras e seguir sua vida por lá. Só que isso era muito trabalhoso, afinal, mudar de domicílio não é fácil nos dias de hoje, devia ser mais complexo ainda naquela época. José se encontrava nesse dilema sobre o que fazer. Foi quando ele teve o sonho com o anjo, fato que é narrado por Mateus no evangelho deste domingo (Mt 1, 18-24). É interessante observar que a Bíblia relata diversos episódios em que Javeh fala com as pessoas em sonho, seja diretamente, seja através de um mensageiro. Esta palavra em grego, diz-se “angelos”, derivada do verbo “angelô” (anunciar, proclamar), que se transformou no latim em “angelus” e, em português, passou para “anjo”.

A bíblia relata sobre muitos personagens bíblicos que foram visitados por esses mensageiros (angelos), mas não descreve como é a aparência deles, porém, os artistas medievais se encarregaram de compor a sua figura como um ser masculino, de grande beleza, tendo as omoplatas desenvolvidas em forma de asas como os pássaros. E assim ficou criada a figura estereotipada do anjo que todos conhecemos. No entanto, não podemos nos esquecer que Lúcifer era também um anjo da corte celeste, apesar disso, a figura deste é retratada pelos mesmos artistas de uma forma totalmente diversa. Digo isso para que retiremos da nossa cabeça as imagens medievais, quando nos referimos aos mensageiros divinos. Por que razão não existem figuras femininas como anjos (ou anjas), apenas figuras masculinas? Evidentemente, entra aí toda a carga cultural do machismo, típico da cultura grego-romana. Apesar da sua feição marcadamente andrógina, no entanto, eles são apresentados sempre como seres masculinos, em coerência com a mesma cultura que afirma que somente os homens podem exercer os ministérios eclesiais. É o paradigma da masculinidade, ainda presente na Santa Madre Igreja.

Pois bem, mas voltando à história sobre o sonho de José, vemos uma diferença curiosa na forma como o mensageiro (anjo) apareceu a José e a Maria. No caso de Maria, ela estava desperta e dialogou com ele. No caso de José, ele estava dormindo e não participou da conversa, apenas recebeu a mensagem. É o caso de indagarmos se, efetivamente, um mensageiro lhe apareceu ou se ele apenas sonhou, foi apenas um sonho simples, da mesma forma como nós, muitas vezes, estamos com uma dúvida nos atormentando e, num sonho, vislumbramos uma solução. Aliás, se formos observar bem, nas diversas vezes em que um texto bíblico se refere a um mensageiro (anjo), em geral, a presença de um ser angelical não é de fato necessária, mas a situação se esclarece com uma explicação psicológica. O caso do sonho de José é um desses exemplos. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. A referência ao mensageiro fica mais por conta da tradição hebraica, ainda muito presente no cristianismo primitivo. E também devido ao estado de desenvolvimento científico da época, em que esses fenômenos psicológicos eram sempre considerados como manifestações divinas ou demoníacas. Disso podemos concluir, com alguma segurança, que a doutrina tradicional acerca dos anjos precisa ser repensada e redimensionada, dando-lhe uma compreensão mais realista e menos fantasiosa.

O caso da anunciação a Maria já foge a essa regra, por causa do diálogo que ela travou com o anjo até ser convencida e dar o seu aceite. Há uma intervenção divina na história, trata-se de algo realmente miraculoso na sua essência, algo para o qual apenas uma explicação da psicologia não seria suficiente. Isso é que torna diferente a atuação do “mensageiro” divino em certas situações em que há uma justificativa para a sua presença. Temos um exemplo bem típico no Antigo Testamento (Gn 32, 24), que narra a luta que Jacó teve com um anjo, pouco antes de sua reconciliação com Esaú. Porém, nem sempre o fato narrado justifica a presença física do “anjo”, mas pode ser resolvido de um modo mais prosaico, como quando estamos sonhando ou quando simplesmente temos um “estalo” na mente, aquilo que os psicólogos chamam de “insight”, uma descoberta inesperada e instantânea que a nossa mente produz, em situações emergenciais. Apenas para reforçar o que escrevi antes, acerca da necessidade de um estudo mais crítico e menos fanático sobre a angeologia.

E por último, uma breve referência à segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (Rm 1, 1-7), na qual Paulo destaca a descendência de Jesus da raça de David (em grego: ek spérmatos David) segundo a natureza humana, e predestinado como Filho de Deus em poder, segundo o Espírito. Curiosamente, o texto da CNBB traduz a palavra latina “praedestinatus” (predestinado) como “autenticado”. Por certo, essa tradução visa evitar o uso da palavra “predestinado” por causa da doutrina da predestinação, que não é acolhida pela teologia católica, substituindo-a por uma palavra mais amena: autenticado. No entanto, eu considero essa palavra perigosa na sua interpretação, porque traz subjacente a ideia do que não é original, mas uma cópia carimbada... sinceramente, tem certas traduções que aparecem nos textos oficiais da CNBB que complicam aquilo que deveriam explicar. Dizer que Jesus é autenticado como Filho de Deus com o poder do Espírito, a meu ver, deturpa o significado do texto paulino e dá a impressão de uma coisa subalterna, uma segunda via que se autentica para ter validade oficial. Com certeza, Jesus não precisa dessa autenticação.

Ao ensejo, envio antecipados votos de Feliz Natal.


domingo, 11 de dezembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3ª DOMINGO DO ADVENTO - O ÚLTIMO PROFETA - 11.12.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – O ÚLTIMO PROFETA – 11.12.2016

Caros Leitores,

O 3º domingo do Advento, denominado domingo “gaudete” (alegrai-vos), celebra a alegria da comunidade diante da próxima chegada do Senhor. O refrão latino antigo dizia: gaudete in Domino, iterum dico, gaudete. Alegrai-vos no Senhor, outra vez eu digo, alegrai-vos. Este é o tema dominante desta liturgia, que traz na leitura do evangelho o elogio que Jesus faz a João Batista: ele é muito mais do que um profeta, dentre os nascidos, ninguém é maior do que ele. E, nesse contexto, indiretamente se autodeclara o Messias, quando afirmou que foi sobre João que o profeta disse: eis que mando o meu mensageiro para preparar-te o caminho.

A primeira leitura, do profeta Isaias (35, 1-10), texto escrito no período final do cativeiro da Babilônia, expressa a alegria dos cativos ao serem libertados e retornarem a Jerusalém: “Dizei às pessoas deprimidas: 'Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a recompensa de Deus; é ele que vem para vos salvar'. Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um cervo e se desatará a língua dos mudos. Os que o Senhor salvou, voltarão para casa.” (Is 1, 4-10) Esta alegria do retorno dos cativos para casa é comparada com a alegria da Igreja pela chegada do Senhor, que se avizinha. A liturgia relembra a festa dos hebreus celebrando a sua libertação do cativeiro babilônico, fazendo alusão com o júbilo que deve tomar conta de todo o mundo cristão, com a chegada da libertação trazida por Cristo. Se aquela libertação terrena foi motivo de tão grande regozijo para os hebreus, então para nós, que recebemos de Cristo a salvação eterna, a alegria deve ser muito maior. A parte final do versículo 10 é bem sugestiva: “Eles virão a Sião cantando louvores, com infinita alegria brilhando em seus rostos: cheios de gozo e contentamento, não mais conhecerão a dor e o pranto.” Sião, a Jerusalém terrestre, é a manifestação prévia da Igreja de Cristo, da qual nós fazemos parte. A ela, nós nos dirigimos cantando louvores e com intensa alegria brilhando nos nossos rostos, tal como os hebreus libertados. O livro de Isaías, ao mesmo tempo em que descreve a tristeza do povo cativo, do meio para o fim, passa a retratar o grande contentamento daqueles que puderam voltar à sua terra. É uma leitura recorrente no tempo do advento, era também uma leitura preferida por Cristo, quando comparecia aos cultos na sinagoga e lhe era dada a palavra.

Na segunda leitura, retirada da carta de Tiago (Tg 5, 7-10), ele exorta os cristãos sobre a vinda do Senhor, que está próxima. Sabemos que, naquele tempo, tanto os apóstolos quanto as comunidades primitivas esperavam para “os próximos dias” o retorno de Jesus. Ao subir aos céus, ele havia prometido que retornaria em breve, então, a interpretação que os primeiros cristãos davam a essa passagem bíblica era totalmente literal: ele vai voltar dentro de poucos dias. No caso da exortação de Tiago, esta espera tinha outro sentido daquela referida pelo profeta Isaías, pois no tempo deste Profeta, o Messias ainda não havia vindo, portanto, ele se refere à sua chegada original. Mas na carta de Tiago, a espera é pelo seu retorno, para julgar o mundo. Daí percebermos uma certa ingenuidade e singeleza nas palavras de Tiago, no versículo 9: “Irmãos, não vos queixeis uns dos outros, para que não sejais julgados. Eis que o juiz está às portas.” Essa era uma compreensão recorrente entre os judeus convertidos, pois essa era também a maneira como os apóstolos haviam compreendido as palavras de despedida de Cristo, na Ascensão. Esta carta de Tiago não é dirigida a uma comunidade de gentios nem de uma determinada localidade, mas a todos os judeus da diáspora. A diáspora, ou dispersão dos judeus, ocorreu logo após a destruição de Jerusalém pelos romanos, levando-os a se espalharem por diferentes territórios da Ásia, África e sul da Europa. Em alguns destes locais, já existiam igrejas cristãs, sobretudo aquelas fundadas por Paulo, tendo sido até motivo de atritos. Na verdade, os judeus ficaram sem um território próprio e isso perdurou por vários séculos, pois eles somente voltaram a ter um local geográfico com a criação do Estado de Israel, após a segunda guerra mundial. Pois bem, a carta de Tiago reflete assim aquela ideia que era comum entre os primeiros cristãos, acerca da iminente volta de Cristo, para julgar os vivos e os mortos. Ficai calmos, porque o juiz está chegando, ninguém queira julgar uns aos outros.

No evangelho de Mateus (Mt 11, 2-11), lemos o episódio em que João Batista, encontrando-se preso a mandado de Herodes, ouviu falar de Cristo e enviou a ele alguns dos seus discípulos, a fim de recolher informações: “és Tu o que esperamos ou devemos esperar por outro?” Lembremos que João Batista já havia batizado Jesus no rio Jordão, portanto, já o conhecia, inclusive foi naquela ocasião em que o Espírito Santo apareceu, portanto, João Batista tinha conhecimento da existência de Jesus, que era também seu parente. Mas, mesmo assim, visto que estava preso e não podia fazer isso pessoalmente, enviou seus discípulos para se certificarem do fato. Não deixa de ser curiosa essa referência do evangelho à inquietação de João Batista sobre o Messias. Por certo, ele queria ter certeza do término de sua missão preparatória. João Batista tinha discípulos e era preciso que estes tivessem essa certeza também. Quiçá, o objetivo maior era tranquilizar os discípulos, pelo fato de encontrar-se preso. Portanto, eu entendo esse fato de João Batista enviar mensageiros para irem ter com Jesus como uma forma de dizer a eles algo assim: pronto, a minha carreira terminou, de agora em diante, vocês devem ficar com Ele. Sabemos que alguns discípulos de João Batista passaram a seguir Jesus Cristo. Daquela prisão onde se encontrava, João Batista não mais saiu, vindo a ser decapitado a pedido da concubina de Herodes, como forma de vingar-se dele, que havia censurado a sua vida marital com Herodes, por ser uma união ilegítima. A vingança da imperatriz não demorou a acontecer.

É interessante a atitude de Jesus diante das perguntas dos discípulos de João. Ele não respondeu de forma direta, mas apenas indiretamente, ao afirmar: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados.” (Mt 11, 4-5) Se observarmos bem, Jesus estava mandando o recado para João Batista mais ou menos nesses termos: vejam só, estão acontecendo aquelas coisas que o profeta Isaías dissera que iriam acontecer com a chegada do Messias. Isto é, para um bom entendedor (e João conhecia as escrituras), ali estava uma resposta claríssima. João deve ter, então, se despedido dos seus discípulos, porque a sua missão tinha sido encerrado e, certamente, os encaminhou para o seguimento de Jesus.

Mas o evangelista Mateus prossegue (11, 9) a história, contando o que Jesus falou aos seus ouvintes, após a saída dos discípulos de João: Vocês lembram de João, aquele que pregava no deserto? Vocês pensavam que ele era um profeta, pois eu vos afirmo que ele é mais do que um profeta. Aqueles que ouviam Jesus conheciam os Profetas da Israel e os reverenciavam, assim Jesus quis dar a eles uma noção da importância de João Batista. E citando o seu profeta preferido, Isaías, completou: “É dele que está escrito: 'Eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de ti'.” (Mt 11, 10) Com essa autodescrição, Jesus está, ao mesmo tempo, afirmando que João é o último Profeta e que Ele, Jesus, é o Messias. Em outra ocasião, Jesus havia utilizado outra passagem de Isaías para se identificar na sinagoga, perante os rabinos e os chefes do povo, quando foi convidado para fazer a leitura e escolheu um trecho de Isaias, conforme está relatado no evangelho de Lucas (4, 16). Após a leitura na qual Isaías falava sobre as qualidades do futuro Messias, Jesus disse: hoje se cumpriu essa escritura. Foi como se dissesse: Isaías estava falando a meu respeito. E complementando o elogio que fazia a João Batista, assim terminou o seu discurso: “de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do que João Batista.” (Mt 11,11) Vejam que Jesus exclui a si próprio dessa referência, fazendo assim uma alusão velada à sua divindade. Ele nunca falava de si mesmo diretamente, mas sempre de forma indireta. Porém, logo depois, Jesus faz um surpreendente elogio a todos nós, cristãos: “No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele.” Ou seja, Jesus coloca os seus seguidores (quer dizer, nos coloca) acima de João Batista, porque ele não chegou a ver a revelação e a salvação, que nós conhecemos através dos seus ensinamentos e a eles aderimos através do nosso batismo.

Que nós realmente façamos por onde sermos dignos desse escancarado elogio que Jesus nos fez.

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domingo, 4 de dezembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - COM A PÁ NA MÃO - 04.12.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – COM A PÁ NA MÃO – 04.12.2016

Caros Leitores,

Neste segundo domingo do advento, a liturgia introduz a figura de João Batista, considerado o último Profeta do Antigo Testamento, aquele que faz a transição do Antigo para o Novo. E a linguagem de João Batista é dura e ríspida contra as pessoas de fé dissimulada. Dirigindo-se aos fariseus e saduceus que vinham até ele a fim de receber o batismo, sem fazerem a conversão do coração, ele fulmina: toda árvore que não der bons frutos será cortada e lançada ao fogo. O Messias virá com a pá na mão, para limpar a sua eira. A palha seca será queimada num fogo que nunca se apaga. Daí o lema de sua pregação: convertei-vos enquanto é tempo, porque o dia está próximo. Dando prosseguimento ao tema iniciado no domingo anterior, acerca da vigilância permanente, temos neste domingo a advertência contra a simulação da fé. Não basta dizer “eu sou filho de Abraão” para obter a salvação, se essa afirmação for apenas da boca para fora. A verdadeira conversão vem de dentro, vem do coração.

Na primeira leitura, do extraordinário profeta Isaías, aquele que era o preferido nas citações de Jesus Cristo, vemos o traçado do perfil do futuro Messias (Is 11, 1-10): do tronco de Jessé surgirá um rebento e sobre ele repousará o Espírito do Senhor. Jessé é o pai do rei Davi. Davi havia sido o grande rei de Israel e formou, com Salomão, o período histórico mais próspero da vida daquele povo. O reinado de Davi foi decantado por muitos séculos como o melhor da história do seu povo. Ele foi sucedido por Salomão, que continuou com um reinado de muita prosperidade, porém os reis que vieram depois não prosseguiram na fidelidade a Javeh e o povo enfrentou muitas tentativas de domínio, até que ocorreu a derrota da Samaria para a Assíria, cujo rei Senaqueribe fez também o cerco de Jerusalém, vindo posteriormente a também dominá-la. O profeta Isaías vivenciou esses tempos conturbados, em que os governantes do povo se afastaram das promessas da Aliança, com enormes sacrifícios para o povo. Então, ele transmitia mensagens de conforto e esperança para a população, anunciando a vida do Messias, que descenderá da linhagem de Davi e fará retornar a paz e a prosperidade a Israel.

Ao traçar o perfil do futuro Messias, o Profeta não economiza palavras: “Ele não julgará pelas aparências que vê nem decidirá somente por ouvir dizer; mas trará justiça para os humildes  e uma ordem justa para os homens pacíficos.” (Is 11, 3-4). E para simbolizar a paz que o Messias trará para o povo, o Profeta utiliza imagens bastante significativas, mostrando que até os “inimigos naturais” viverão em harmonia: “O lobo e o cordeiro viverão juntos  e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o bezerro e o leão comerão juntos e até mesmo uma criança poderá tangê-los. A vaca e o urso pastarão lado a lado, enquanto suas crias descansam juntas; o leão comerá palha como o boi.” (Is 11, 6-7). Isaías escreveu isso cerca de 700 anos antes de Cristo e é absolutamente impressionante como essas figuras simbólicas se harmonizam com a doutrina que Cristo veio ensinar, dando ênfase total no amor a Deus e ao próximo, como sendo esta a regra básica da Escritura, aquela que todos devem seguir. O evangelista Lucas (4, 14) relata claramente aquele conhecido episódio do dia em que Jesus Cristo foi convidado para fazer a leitura na Sinagoga, uma leitura do livro de Isaías, e ao terminar de ler, declarou: “hoje se cumpriu essa profecia que acabaste de ouvir.” Ou seja, Cristo confirmou em público que as predições de Isaías se referiam à pessoa dele. Em outras palavras: Ele é o Messias de quem falava o profeta Isaías. Não precisa acrescentar mais nada.

Na segunda leitura, da carta do apóstolo Paulo aos Romanos (15, 4-9), percebemos ali implícita a questão dos judaizantes, isto é, daqueles cristãos convertidos do judaísmo e que afirmavam que para ser cristão, era necessário antes circuncidar-se, seguindo a lei de Moisés. Paulo explica, de forma bem didática, que o Messias veio não apenas para os judeus, mas também para os gentios e que agora não há mais que falar na lei de Moisés, porque Cristo trouxe uma nova lei: a lei do amor. Essa foi uma questão que deu muito trabalho a Paulo para conseguir apaziguar as partes divergentes, fazendo-se necessário que ele usasse de todo seu poder de convencimento, conforme se verifica nesse trecho (15, 8-9): “Cristo tornou-se servo dos que praticam a circuncisão, para honrar a veracidade de Deus, confirmando as promessas feitas aos pais. Quanto aos pagãos, eles glorificam a Deus, em razão da sua misericórdia.” Cristo vem anunciar a Boa Nova da salvação tanto para aqueles praticantes da circuncisão (judeus, que agora não precisam mais fazê-la) quanto para aqueles que não foram circuncidados. Aos primeiros, em razão do cumprimento das promessas da aliança com Javeh; aos outros, em razão de sua divina misericórdia. Não é necessário converter-se antes ao judaísmo, para tornar-se um seguidor de Cristo, porque a misericórdia divina supera essa distinção. E conclui esse raciocínio desse modo (15, 6): “Assim, tendo como que um só coração e a uma só voz, glorificareis o Deus e Pai do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por isso, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo vos acolheu, para a glória de Deus.” Com a Nova Aliança, não há mais que falar na lei anterior, pois ela já foi superada e assim não mais vale nem para os herdeiros da promessa nem para os novos convertidos, pois agora todos são um só coração e uma só voz.

No evangelho deste domingo, da autoria de Mateus (3, 1-12), surge a figura emblemática de João Batista, encerrando o ciclo profético e, ao mesmo tempo, abrindo a porta para aquele que é “mais do que um profeta”, pois não fala mais em nome de outrem, mas em nome próprio. No entanto, por estar ainda na perspectiva temática dos antigos Profetas, a linguagem de João ainda reflete aquela imagem de Deus furioso e tremendo, como era o padrão da imagem de Javeh no Antigo Testamento. Mateus diz que João foi anunciado pelo profeta Isaías, quando declarou que “uma voz clama no deserto: preparai o caminho do Senhor”. João pregava no deserto da Judeia, nas proximidades do rio Jordão e a sua figura exótica logo se tornou conhecida por toda a população da redondeza: um eremita que se vestia com couro de camelo, morando em abrigos naturais, alimentando-se de gafanhotos e mel do campo, cabelos e barba sem qualquer trato, alguns o tomavam como um louco, mas outros viam nele um homem de fé e o procuravam para ouvir a sua pregação. Fez inúmeros seguidores, alguns dos quais, posteriormente, tornaram-se discípulos de Cristo. Para aquelas pessoas que demonstravam sinceridade de propósitos, João aplicava o batismo da conversão. Mergulhar nas águas do rio Jordão era o símbolo de uma lavagem exterior e interior, o que implicava uma mudança de hábitos mas, sobretudo, a conversão do coração, dando cumprimento ao sentido mais exato da palavra “batismo”: um ato externo que simboliza uma mudança interna na pessoa.

Mas João Batista era extremamente ríspido com aqueles que ouviam as suas palavras e não mostravam convicção, como era o caso dos fariseus e saduceus, que o procuravam apenas por curiosidade. “Raça de víboras”, tradução literal do latim “progenies viperarum”, que é, por sua vez, tradução literal do grego “gennímata echidnon”. A tradução da CNBB diz “raça de cobras venenosas”, mas me parece desnecessário esse eufemismo, por isso, prefiro “víboras” mesmo. Continua João: vocês pensam que basta dizer que “sou filho de Abraão” para com isso obter a salvação? Pois tenham cuidado: o machado já está na raiz da árvore e toda árvore que não der bom fruto será cortada e jogada ao fogo. Meus amigos, precisamos refletir sobre a nossa vivência da fé cristã, para que não nos tornemos meros executores de atos religiosos externos, sem que o nosso coração esteja sintonizado e coerente com as nossas ações. Cai bem aqui aquela conhecida música antiga de Fernando Mendes: não adianta ir à igreja rezar e fazer tudo errado. Em outras palavras, era isso o que João Batista queria dizer. Não podemos agir como os fariseus e saduceus daquele tempo.

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domingo, 27 de novembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - HORA DE DESPERTAR - 27.11.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – HORA DE DESPERTAR – 27.11.2016

Caros Confrades,

Com a liturgia do 1º domingo do advento, dá-se o início ao ano litúrgico católico de 2017, antecipando-se ao ano civil, de acordo com o calendário eclesiástico. No domingo passado, tivemos o último domingo do ano litúrgico de 2016, com a celebração da festa de Cristo Rei. Os anos litúrgicos seguem uma sucessão de três conjuntos de leituras, distinguidos como anos A, B e C, para que as leituras não se repitam todos os anos. O ano que se inicia faz parte da série A, que segue preferencialmente o evangelho de Mateus para as leituras dominicais, que são complementadas com uma do Antigo Testamento e uma carta apostólica. Esta antecipação é necessária para que o tempo do Advento, que é dividido em quatro semanas, possa ser integralmente celebrado antes do Dia de Natal, que em 2016 ocorrerá num domingo, por isso o Advento começa um pouco mais cedo, ainda em novembro.

Já é bem conhecido por todos que a celebração do Natal em 25 de dezembro é apenas uma data simbólica, posto que o nascimento de Cristo deve ter ocorrido no mês de março. Porém, esta celebração do Natal de Jesus em 25 de dezembro já existe desde o século IV, isto é, há mais de 1.600 anos, não tem mais nenhuma relação com a festa pagã que antes existia nesta data, uma festa romana dedicada ao deus Saturno (saturnália), que se prolongava por uma semana, indo do dia 17 ao dia 24 de dezembro, período em que ocorre o solstício de inverno no hemisfério norte. Depois de tantos séculos em que a civilização ocidental associa o Natal de Jesus com o dia 25 de dezembro, não faria nenhum sentido propor uma mudança de data, para adequar ao período mais provável. Associado a esse simbolismo, o ano litúrgico se constitui com datas e períodos que rememoram os fatos comemorados, não devendo ser tomadas essas datas como corretas do ponto de vista histórico. Isso em nada compromete a grandeza e a importância das festas que comemoramos nessa época do ano. Apesar do grande esquema comercial que se incorporou ao Natal, nós cristãos devemos celebrar o tempo do advento com o espírito de verdadeira conversão, preparando a vinda do Senhor.

As leituras litúrgicas deste primeiro domingo recomendam a vigilância e a prontidão, porque ninguém sabe o dia em que o Senhor virá. A primeira leitura, de Isaías (Is 2, 1-5), narra uma visão tida pelo Profeta sobre Jerusalém, em cujo monte está firmemente estabelecida a casa do Senhor: de lá, vem a palavra do Senhor. Para lá, acorrerão as nações e os povos todos. O nome “Jerusalém” significa “cidade da paz” e esse simbolismo está contido na visão do Profeta, segundo a qual os seus habitantes “transformarão suas espadas em arados e suas lanças em foices: não pegarão em armas uns contra os outros e não mais travarão combate ” (Is 2, 4) Esta visão do profeta Isaías, transportada para os dias de hoje, aplica-se à Igreja de Cristo, firmemente estabelecida no monte da casa do Senhor, referindo-se ainda, numa visão de futuro, à Jerusalém celeste, onde se encontra Cristo ressuscitado. O Cristo que nasce menino na festividade do Natal é o mesmo que se encontra glorioso na Jerusalém celeste. O simbolismo do seu (re)nascimento a cada ano nos convida a também internamente reavivar em nós mesmos o espírito cristão que se formou em nosso íntimo pelo batismo e que se consolidou na nossa formação religiosa, pela qual somos chamados a dar testemunho dos ensinamentos que recebemos. No advento, a cada ano, Cristo quer renascer em cada um de nós e, para isso, Ele requer nossa disponibilidade e nossa participação. O verdadeiro natal é o que deve ocorrer no coração de cada crente, onde devemos montar o verdadeiro presépio para acolher o que vai nascer. A Belém dos nossos dias deve ser encontrada no coração de cada cristão, que se prepara para celebrar a festa do Natal. Daí o tema deste domingo ser, como diz o apóstolo Paulo na sua carta aos Romanos, a hora de despertar.

Passando, então, à segunda leitura, da Carta aos Romanos (Rm 13, 11-14), o Apóstolo exorta os cristãos de Roma para que se dispam das ações das trevas e se revistam das armas da luz, porque a salvação está bem mais próxima, com a chegada de Cristo, que se avizinha. Ele, com certeza, faz essas referências aos Romanos numa época em que as festas da saturnália ainda eram muito populares, com suas orgias, comilanças e licenciosidades, e recomenda: “Procedamos honestamente, como em pleno dia: nada de glutonerias e bebedeiras, nem de orgias sexuais e imoralidades, nem de brigas e rivalidades.” (Rm 13, 13) Tudo isso era o que realmente as pessoas faziam naquelas festas pagãs, as quais são representadas nos dias de hoje com o carnaval. Porém, os cristãos não devem proceder iguais a eles, mas devem dar o exemplo de filhos da luz. Recordemo-nos ainda que Paulo pregava em Roma nos tempos de Nero, quando o cristianismo era uma religião proscrita e os cristãos eram tidos como inimigos do Estado Romano, precisando reunir-se às escondidas, para a celebração dos seus cultos religiosos. Paulo pregava nas catacumbas e apenas secretamente visitava as residências dos cristãos romanos, correndo o risco de ser denunciado e preso, como de fato o foi por diversas vezes. Mas o risco valia a pena, porque divulgar o cristianismo em Roma, a capital do mundo de então, significava muito para a propagação de sua doutrina. A prova está em que, quando Constantino decretou a liberdade religiosa, grande parte da comunidade romana já era adepta do cristianismo, embora não demonstrassem publicamente.

A leitura do evangelho é retirada de Mateus. Lemos hoje o texto do cap. 24, 37 a 44, no qual Jesus fala aos discípulos sobre a sua vinda nos últimos tempos. Assim como nos tempos de Noé, quando ocorreu o dilúvio sem ninguém esperar, assim também será a vinda gloriosa de Cristo. Por isso, todos devem estar despertos, porque na hora em que menos se esperar, o Filho do Homem virá. Sorrateiro como um ladrão, o Filho do Homem surpreenderá muita gente dormindo. Ninguém sabe quando será este dia, ou melhor, ninguém sabe quando será o seu dia. Na atualidade, a reflexão teológica prefere interpretar esses discursos escatológicos de Jesus de forma diferente do que tradicionalmente se entendia, isto é, não como um fenômeno coletivo, de proporções globais, mas como um evento privado que acontece na vida de cada pessoa. De fato, o Senhor já se encontra na sua glória e, em vez de ser Ele que venha ao nosso encontro, nós é que nos dirigiremos ao encontro dele. Vejamos o texto do evangelho: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada.(Mt. 24, 40-41) Se o evento final fosse de ordem generalizada, como ensinou a catequese tradicional, todos seriam arrebatados simultaneamente, não faria sentido um ser levado e outro deixado. Se o final dos tempos fosse ocorrer como um grande cataclismo de proporções gigantescas, como entenderam os artistas da Renascença e assim pintaram nos seus quadros clássicos, não ocorreria de alguém ser poupado, mas a destruição alcançaria a todos. Será mais lógico concluir que essa arrebatação para prestar contas das suas ações deverá ocorrer em nível histórico e individual. Por isso é que cada um deve estar sempre vigilante, pois ninguém sabe o dia nem a hora em que isso ocorrerá.

Portanto, o ensinamento de Paulo sobre a hora de despertar não se refere a um tempo abstrato e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé em Cristo deve ser renovada a cada dia, e o período do advento é o tempo mais propício para que despertemos a nossa consciência para essa realidade inafastável, que é o fim dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. A contagem da nossa vida em meses e anos nos dá a medida para cada um avaliar a chegada ao final da carreira, quando deveremos estar com a fé robustecida e a esperança sempre renovada. Neste tempo do advento, a liturgia nos leva a fazer esta reflexão realista, não como forma de intimidação ou aterrorização, mas como exercício de vivermos conscientes e centrados nos nossos compromissos de cristãos.

Aproveitemos o tempo do advento para renovar a cada dia a nossa fé na divina promessa.

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domingo, 20 de novembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 34º DOMINGO COMUM - FESTA DE CRISTO REI - 20.11.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 20.11.2016.

Caros Leitores,

O 34º domingo comum encerra o ano litúrgico e também o Ano Santo da Misericórdia, com a celebração da festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta comemoração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, no período que intermediou as duas grandes guerras mundiais e num momento de grande descrença nas religiões e a consequente ascensão do ateísmo no mundo. Fazia pouco tempo que o comunismo havia triunfado na União Soviética e havia aquele temor de disseminação por outros países, gerando incômoda situação de insegurança. A intenção do Papa era mostrar Jesus como um rei pacífico, que não tem interesse em exercer o poder político e econômico, mas reina com a prática da caridade, com a dedicação ao serviço, com atitudes de humildade. Conforme Jesus mesmo dissera, diante de Pilatos, “o meu reino não é deste mundo”. E aos discípulos, ele havia dito: “aquele que quer ser o maior dentre vós, seja o mais disposto a servir”. Nos tempos atuais, a referência à figura do rei perdeu muito a sua força devido a ser um personagem que não faz parte da nossa realidade, não combina com o momento político mundial, no qual os reinos são praticamente inexistentes. O conceito do reino, portanto, passa para o campo do simbolismo e da utopia, no sentido do reino da paz e da concórdia, para a construção do qual todos os cristãos somos convocados.

Passando às leituras litúrgicas de hoje, vemos na primeira leitura, um trecho do segundo livro de Samuel (2Sm 5, 1-3), no qual é narrada a unção de Davi como rei de Israel, na presença dos anciãos representantes de todas as tribos. O rei Davi é uma das figuras mais emblemáticas do Antigo Testamento, juntamente com o filho dele, Salomão, outro grande governante, os dois fizeram histórias e lendas junto ao povo de Israel. Tão simbólica foi a missão do rei Davi que os profetas anunciaram que o Messias tão esperado de Israel nasceria de uma família da sua estirpe. Com efeito, tanto José, esposo de Maria, quanto ela própria eram da “casa de Davi”. As profecias antigas diziam que o Messias nasceria de uma mulher descendente de Abraão, da tribo de Judá e da família de Davi. Portanto, essa leitura do segundo livro de Samuel relaciona a realeza de Davi com a realeza de Cristo. Cristo é rei por ser descendente do mais importante rei de Israel. Essa é a ligação feita pelos teólogos desde a Idade Média, o que se justificava bem naquela época, em que a realeza era a forma de governo dominante, praticamente a única existente. E dentro da regra da hereditariedade, para alguém ter direito ao trono real, era necessário demonstrar que era descendente de um rei.

Logo nos primórdios do cristianismo, o evangelista Mateus buscava demonstrar, através das citações genealógicas, o vínculo familiar que unia Cristo ao rei Davi, afirmando assim o cumprimento das profecias. Mateus faz isso de uma forma bastante cuidadosa, quando no seu texto (Mt 1, 1-17) detalha a listagem genealógica de Jesus, elencando três períodos de 14 gerações, a partir de Abraão até chegar a Ele. De Abraão a Davi são 14 gerações, de Davi até o cativeiro da Babilônia, outros 14, e do final do cativeiro até o Messias são mais 14 gerações. De acordo com os biblistas, isso tem uma explicação matemática, porque a correspondência das letras hebraicas do nome de Davi com os números, somando-as, dá 14 como resultado. A soma é assim: em hebraico, escreve-se Dawid, com w. Na numerologia hebraica, o D=4 e o W=6; as vogais não existiam no hebraico, por isso não entram na soma. Então, o total será D+W+D=4+6+4=14. Como se pode perceber, a numerologia também faz parte da Bíblia e Mateus devia ser um especialista na matéria.

Temos na segunda leitura um trecho da carta aos Colossenses (Cl 1, 12-20), na qual Paulo faz um grande discurso apologético acerca da divindade de Cristo. “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele.” (2Cl 1, 15-16) Observa-se que Paulo não economiza nos qualificativos, ao contrário, faz uma suprema exaltação da figura de Cristo, embora não use o título de rei. Jesus é o princípio de todas as coisas e o primogênito dentre os mortos e alcançar a glória da ressurreição. O texto de Paulo é um autêntico hino à realeza de Cristo, sem citá-la. Com certeza, Paulo escreveu isso sem conhecer o texto do evangelho de Mateus (as cartas de Paulo são mais antigas), pois talvez se o tivesse conhecido, teria mencionado também a ascendência real de Cristo na sua origem terrena. O discurso de Paulo se direciona para a ascendência de Cristo no plano divino, mostrando a estreita relação d'Ele com o Pai: “porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres.” (2Cl 1, 19-20) Portanto, embora não mencione a palavra rei”, Paulo deixa isso subentendido nos vários conceitos utilizados para realçar a Sua personalidade divina. Nesse contexto, Paulo também relaciona a figura de Cristo como Cabeça da Igreja, cujo corpo somos nós, criando assim a doutrina do corpo místico de Cristo, largamente aplicada na teologia e na catequese.

No evangelho de Lucas (Lc 23, 35-43), lemos um trecho da narrativa dos eventos relativos à paixão de Cristo, quando Ele dialoga com os ladrões crucificados ao Seu lado. Enquanto um deles escarnece, desafiando-O a salvar-se e a salvar também os outros dois condenados, o outro repreende o comparsa e confessa seu arrependimento, pedindo que Jesus o acolha no Seu reino. Esse diálogo é bem conhecido, porque é repassado na liturgia da Semana Santa e foi sempre muito reproduzido também na catequese tradicional. Uma curiosidade, que me vem à mente sempre que leio esse texto é de imaginar como esse diálogo tornou-se conhecido, se é que, de fato, existiu. Sabemos que os apóstolos haviam debandado e, junto à cruz, estavam apenas João, Maria e algumas mulheres, que olhavam à distância. Pois bem, João, que estava presente, não relata esse diálogo nos seus textos. Os outros dois evangelistas, Marcos e Mateus, apenas se referem aos malfeitores crucificados com ele, sem mencionarem o diálogo, que só aparece no texto de Lucas. De que modo Lucas teria obtido tal informação? Ora, sabe-se que Lucas, sendo médico, cuidou de Maria por muito tempo e ouviu dela relatos intimistas referentes à vida dela própria e de Jesus, que os outros escritores não tomaram conhecimento. Por essa linha de raciocínio, podemos deduzir como probabilidade que tal diálogo tenha sido escutado e memorizado por Maria, mãe de Jesus, que posteriormente o segredou a Lucas. Não me parece crível que algum dos soldados, que participaram da execução, tenha se preocupado com isso. E se João tivesse prestado atenção nesses detalhes, certamente também os teria relatado. Mas muito provavelmente o olhar e o ouvido da Mãe captaram coisas que passaram despercebidas a todas as outras pessoas. É impressionante essa capacidade que as mães têm para perceber mensagens até subliminares no comportamento dos filhos.

Meus amigos, apesar de discordar desse aparato que a liturgia atribui à figura de Cristo como rei, entendo que Ele é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz, que Ele vem nos trazer todos os dias, ensinando-nos a viver em fraternidade e harmonia. É disso que a sociedade precisa e compete a nós, cristãos, dar exemplo público dessa fraternidade e harmonia de Cristo nas nossas vivências cotidianas.

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domingo, 13 de novembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - NÃO É O FIM - 13.11.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – NÃO É O FIM – 13.11.2016

Caros Keitores,

A liturgia deste 33º domingo comum, o penúltimo do ano eclesiástico, nos convida a refletir sobre aquelas coisas que ocorrerão no final dos tempos, o que nós aprendemos no catecismo com o nome de “novíssimos”, a segunda vinda de Cristo. Numa leitura apressada, parece que Jesus quer nos aterrorizar, falando de catástrofes, guerras, epidemias, que antecederão o final dos tempos. Contudo, é necessário perceber com outra mentalidade a descrição desses acontecimentos, que já foram motivo de deixar muita gente com insônia.

Na verdade, as leituras litúrgicas nos convidam a ter vigilância e prudência, como características reais da vida do cristão, crente na promessa de Cristo de que retornará no final dos tempos e, como não se sabe quando nem como será tal apoteose, deve-se estar sempre preparado. A conhecida descrição evangélica dos últimos tempos já foi objeto de interpretações variadas ao longo da história, em diversas ocasiões, as pessoas perceberam, nos fatos do seu tempo, a identificação com as predições de Cristo. Se observarmos os fatos contemporâneos, até parece que a leitura bíblica está se referindo ao tempo atual. Sempre que alguma notícia sobre fatos inesperados ou incompreensíveis é divulgada, os “profetas” e “videntes” tentam identificar neles as catástrofes previstas por Cristo. Porém, o próprio Cristo disse que somente o Pai sabe quando será isso e nem ao Filho Ele o revelou. Portanto, qual desses profetas e videntes é mais sabido do que o Filho? Com efeito, quando Jesus falou aquelas coisas terríveis, referia-se à dominação romana na Palestina, à destruição de Jerusalém, às perseguições dos primeiros cristãos, ou seja, quando o evangelista Lucas escreveu seu evangelho, tais fatos já tinham realmente acontecido. Jesus, porém, havia afirmado: isso não é o fim, ou seja, essas perseguições não irão destruir a sua doutrina nem dizimar seus seguidores.

É interessante observar que, desde o Antigo Testamento, já havia presságios dos Profetas acerca de maus agouros. Na primeira leitura, do profeta Malaquias (Ml 3, 19-20), ele se refere ao “dia, abrasador como fornalha, em que todos os soberbos e ímpios serão como palha; e esse dia vindouro haverá de queimá-los, diz o Senhor dos exércitos, tal que não lhes deixará raiz nem ramo.” (Ml 3, 19). Desde que os Patriarcas antigos narraram que houve outrora uma grande inundação (dilúvio) e o mundo todo sucumbiu debaixo da água, as pessoas criaram a ideia de que, da próxima vez, o mundo seria destruído pelo fogo. Isso é uma crença muito antiga, mas ainda recorrente na nossa cultura religiosa popular. No ano de 1910, quando estava se aproximando da terra o cometa Halley, pelos poucos conhecimentos daquela época sobre esse fenômeno cósmico, as pessoas viam aquela imensa “bola de fogo” se tornando cada vez maior e ficaram esperando apenas o momento final da destruição da terra. De repente, aquela luz se desfez, porque a terra atravessou a cauda gasosa do cometa. Em 2012, algumas pessoas afirmaram que o mundo acabaria no dia 21 de dezembro e citavam complexos cálculos matemáticos para justificar isso, nada aconteceu. Prevalece, assim, a palavra de Jesus: não é o fim.

Na segunda leitura, de Paulo aos Tessalonicenses (2Ts 3, 7-12), o Apóstolo bate cabeça com aquela comunidade, onde se havia espalhado a informação de que Jesus “estava para chegar”, na sua segunda vinda, e assim as pessoas já nem queriam mais trabalhar e viviam à toa, apenas aguardando o momento. Paulo manda-lhes um recado desaforado: eu (Paulo), que até poderia me prevalecer da função de pregador para obter o sustento pela comunidade, me dedico ao trabalho dia e noite, a fim de obter o meu sustento, então, quem não quer trabalhar, também não deve comer. Diz ele: “Bem sabeis como deveis seguir o nosso exemplo, pois não temos vivido entre vós na ociosidade. De ninguém recebemos de graça o pão que comemos. Pelo contrário, trabalhamos com esforço e cansaço.” (2Ts 3, 7-8). Uma interpretação falsa da promessa de Cristo estava atrapalhando a vida daquela comunidade, o que Paulo tentava esclarecer na sua correspondência. Conforme vimos no domingo passado, essa comunidade deu muito trabalho a Paulo. Circulou por lá uma carta anônima, que era atribuída a Paulo e muito o preocupou porque continha ensinamentos equivocados. Foi de lá que Paulo teve de sair fugido, porque os judeus, a quem ele desagradara, o procuravam para matá-lo. Enfim, uma comunidade trabalhosa, onde as pessoas tinham dificuldade em compreender a doutrina cristã, mesmo tendo recebido toda instrução de Paulo. Situações parecidas ocorrem ainda hoje, quando vemos pessoas que leem a Bíblia mas, em vez de buscar retirar da leitura o seu sentido mais coerente e produtivo, apegam-se a detalhes insignificantes, que deturpam a mensagem.

Na leitura do evangelho de Lucas (Lc 21, 5-19), Jesus faz aquela famosa previsão da destruição do templo de Jerusalém, que era entendida pelos judeus como a maior desgraça que lhes poderia acontecer. “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.'” (Lc 21, 6) Esse fato histórico se deu no ano 70, quando o exército romano invadiu Jerusalém e destruiu o templo. No entanto, perguntando os ouvintes a Jesus quando aquilo iria ocorrer, ele respondeu evasivamente: “cuidado para não serdes enganados...” (Lc 21, 8), porque muitas pessoas irão dizer que o tempo está próximo, mas não acreditem nessa gente. Muitas coisas irão acontecer: guerras, revoluções, tsunamis, terremotos, desastres ambientais, mas as piores são aquelas coisas perpetradas pela maldade dos homens: “'Um povo se levantará contra outro povo, um país atacará outro país. Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu.” (Lc 21, 10-11). Neste final de semana, teremos uma lua cheia especial (super lua) e é bem provável que ocorram destruições na orla marítima, como tem sido noticiado nos meses anteriores, atingindo vários pontos turísticos do litoral, inundando e destruindo construções. Muitas pessoas talvez venham a associar esses fatos naturais com a leitura do evangelho, quando na verdade, sabe-se que essas catástrofes estão relacionadas com o mau uso dos recursos naturais pelos países ricos, causando desequilíbrio na atmosfera, levando grandes secas à nossa região e, por outro lado, causando inundações em outras paragens. Essa crença ainda é comum, por causa daquela vetusta catequese tradicional, que apelava sempre para a ameaça aos castigos de Deus, como forma de convencer as pessoas a praticarem o bem. Mas Jesus continua nos exortando: ainda não é o fim.
Precisamos, portanto, compreender esse trecho do evangelho em concordância com os versículos que vêm a seguir, pelos quais Jesus diz que, antes que isso aconteça, a nossa fé passará por provações. “Antes, porém, que estas coisas aconteçam, sereis presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas e postos na prisão; sereis levados diante de reis e governadores por causa do meu nome. Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé.” (Lc 21, 12-13) Meus amigos, no sentido histórico, Jesus se referia aí às perseguições pelas quais passariam os Apóstolos e os primeiros cristãos, como de fato a história documentou. Mas no sentido trans-histórico, o texto se refere a nós, hoje. A nossa fé está a enfrentar contínuas provações, perseguições, ameaças dentro e fora do ambiente religioso. Faz poucos dias, no exame nacional do ensino médio (ENEM), o tema da redação proposto para os alunos foi a intolerância religiosa, demonstrando uma clara preocupação do Ministério da Educação com essa conduta que afeta a todos nós, que temos fé e que, muitas vezes, não sabemos respeitar a fé alheia. Nesta semana, o Papa Francisco visitou uma igreja protestante, em Roma, de surpresa e foi recebido com a maior festa. Foi a primeira vez que um Papa visitou um templo protestante e isso só lhe trouxe muitos elogios e ainda mais prestígio internacional. O exemplo do Papa Francisco deve servir de modelo não apenas para os cristãos, mas para todos os crentes das mais diversas fés, e o seu testemunho só está a confirmar aquilo que Jesus falou no evangelho: isso não é o fim.

Portanto, meus amigos, a narrativa de Cristo nos convida a sermos vigilantes e prudentes, exortando-nos a não nos deixarmos impressionar com as ameaças externas, pois o inimigo pode estar no meio de nós: o nosso orgulho, a nossa falta de misericórdia, a nossa soberba, a intolerância, o desamor. Essas são as reais ameaças que nos perseguem continuamente e é em relação elas que devemos estar sempre vigilantes.

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domingo, 6 de novembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - OS BEM AVENTURADOS - 06.11.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – OS BEM AVENTURADOS - TODOS OS SANTOS – 06.11.2016

Caros Leitores,

Neste domingo, celebramos a memória litúrgica da festa de Todos os Santos e Santas, transferida do dia 1 para hoje, conforme acordo entre a CNBB e o Governo. O evangelho de hoje rememora as bem-aventuranças ditadas por Jesus no famoso e carismático “sermão da montanha”, no qual ele inverte a ordem daquilo que o “mundo” considera felicidade e mostra que ser feliz, isto é, ser bem-aventurado é ser santo. Ser fiel nas coisas simples, ser solidário em todas as ocasiões, ser amável e respeitoso só contribui para a melhora geral da vida na sociedade. Sem dúvida, é disso que todos nós mais precisamos, na vida urbana dos nossos dias.

Na semana passada, tivemos em Juazeiro do Norte mais uma edição da concorrida romaria de finados, instituída pelo Padre Cícero e que conta com o apoio irrestrito dos Frades Capuchinhos, que sempre prestigiam e atendem fraternalmente a todos os fiéis. Até o nosso querido Frei Roberto, do alto dos seus 95 anos de idade, esteve ali animando e interagindo com os romeiros. No meu modo de entender, esse grande afluxo de pessoas que por ali passam todos os anos está totalmente ligado com a imagem da imensa multidão, descrita no texto de João, lido na liturgia de hoje, tanta gente que ninguém podia contar. No primeiro plano, João coloca os 144 mil assinalados, representantes das tribos de Israel. Antes do trabalho catequético de Paulo, o apóstolo dos estrangeiros (gentios), estimava-se que a mensagem de Cristo devia ser seguida por aqueles que eram herdeiros da promessa, pois foi para eles que, num primeiro momento, Jesus Cristo pregou. Mas, com a pouca adesão no meio judaico, a fé cristã ganhou mesmo foro e entusiasmo no meio da “grande multidão formada por todos os povos e nações”. E os nossos romeiros são o exemplo mais evidente da concretização dessa memorável profecia joanina.

Em certo trecho lido hoje do Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: quem são essas pessoas? João não soube responder e o próprio ancião completou: São os que vieram da grande tribulação, lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só podiam ser esses brasileiros nordestinos, que saíram da grande tribulação da seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados ciceronianos. Fico imaginando a grandiosa festa que acontecerá no horto de Juazeiro quando o Papa, em dia não muito distante, proclamar a santidade do Padre Cícero, agora que já não existe mais nenhum óbice canônico, com a retirada das penalidades que lhe haviam sido impostas. Todos sabemos que o povo já proclamou santo o Padre Cicero, independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico. Mas quando o reconhecimento oficial acontecer, então a comemoração deverá ser inenarrável. Aguardemos.

Meus amigos, podemos afirmar que a romaria é uma forma de manifestação visível da autêntica comunhão dos santos: a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala de uma multidão que ninguém podia contar. Pois bem, ele não estava exagerando. Somente o contingente de romeiros de Juazeiro já seria suficiente para confirmar a previsão apocalíptica. Se acrescentarmos as outras milhares de comunidades de igrejas cristãs presentes nos diversos lugares do planeta, vamos concluir que incontável é pouco. E se considerarmos ainda as comunidades cristãs separadas, que o Papa Francisco está em busca de reunir, como fez há poucos dias junto à comunidade luterana da Suécia, vamos compreender quão realista foi a profecia de João, pois dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.

A segunda leitura, que também é da autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro, “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo 3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo, que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada divina. Essa verdade de fé é descrita na teologia como a tensão do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém, ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer, no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim explica essa doutrina: “A salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado, futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”. Achei interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas cristãs, prega-se a justificação do fiel em Cristo, mas o teólogo explica que o conceito de salvação vai muito além da simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a passagem da carta de João citada acima (3, 2). Esse conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como encobertas por um véu, como diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” [1Coríntios 13].

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem-aventurados. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, bem aventurados = 'beati' (plural de beatus) é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. O cântico litúrgico da festa de hoje, reproduzindo uma passagem do cap. 3 do Livro da Sabedoria, identifica os conceitos de “justo”, “feliz” e “santo”: a vida dos justos está nas mãos de Deus, “Depois de terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, pois Deus os provou e achou dignos de si.” (Sb 3, 5). Aqui se encaixa o conceito de “felizes os que sofrem, porque serão consolados”. Lembro que o Frei Higino costumava dizer, nas suas conferências, repetindo um bordão de São Francisco: um frade triste é um triste frade. A felicidade, a santidade, a bem-aventurança, a justiça estão sempre de mãos dadas. Ser santo não é isolar-se de todos e passar o dia rezando e meditando, sem viver na comunidade. Assim seria muito fácil alcançar a santidade. O grande desafio da santidade é aturar as maledicências, as incompreensões, a má vontade de algumas pessoas com quem convivemos e ainda assim mantermos a serenidade, a alegria e o bom humor. Fazendo assim, nem é necessário desfiar as contas do rosário seguidas vezes para alcançar o patamar da autêntica santidade.

O Papa Francisco, como sempre surpreendente, neste domingo celebrou a missa na Basílica de São Pedro com a presença de diversos prisioneiros e ex-prisioneiros de diversos países, incluindo os respectivos familiares e funcionários que trabalham nos presídios, dentro das comemorações do Jubileu do Recluso, até consagrou hóstias fabricadas por prisioneiros de Milão. Em Roma, o Dia de Todos os Santos é celebrado na data própria, 1 de novembro, mas a missa de hoje do Papa ainda se situa no contexto da comunhão dos santos, pois afinal os reclusos (considerando aqui aqueles que estão conscientes do seu erro e desejam emendar-se) também são chamados a fazer parte da “grande multidão” narrada no Apocalipse. A lembrança dos excluídos não pode nos passar despercebida no dia em que se comemora a festa de todos os santos, porque todos somos chamados para a santidade e, mesmo aqueles que eventualmente se desviaram do caminho, não foram segregados desse chamamento. Aproveitemos a data para repensar o nosso conceito de santidade.

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domingo, 30 de outubro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 31º DOMINGO COMUM - CORRIGIR COM CARINHO - 30.10.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 31º DOMINGO COMUM – CORRIGIR COM CARINHO – 30.10.2016

Caros Leitores,

A liturgia deste domingo nos convida a refletir sobre a atitude que devemos ter para com aqueles irmãos que erram, aqueles que procedem mal e causam transtornos e dificuldades nas relações interpessoais. Na antiguidade, havia duas categorias de pessoas, que eram consideradas pecadores públicos e todos os evitavam: as prostitutas e os cobradores de impostos. De acordo com a tradição do povo hebreu, essas pessoas estavam irremediavelmente perdidas e nem podiam disfarçar as maldades que cometiam. No entanto, Jesus mostrou com suas atitudes uma outra maneira de nos relacionarmos com os irmãos 'pecadores', como é exemplificativo o episódio do seu encontro com Zaqueu, narrado no evangelho.

Na primeira leitura, extraída do livro da Sabedoria (Sb 11,22 – 12-2), vemos uma imagem de Javeh misericordioso, que de todos tem compaixão, que fecha os olhos para os pecados dos homens, a fim de que se arrependam. Diz o escritor sagrado: “A todos, porém, tu tratas com bondade, porque tudo é teu, Senhor, amigo da vida… É por isso que corriges com carinho os que caem e os repreendes, lembrando-lhes seus pecados, para que se afastem do mal e creiam em ti, Senhor.” (11,26-12,2) Este livro, cuja autoria é atribuída pela tradição a Salomão, embora haja controvérsias, reproduz a histórica cultura dos hebreus numa época de grande influência do pensamento grego materialista e imanentista no ambiente dos judeus residentes nas cidades de língua grega, muitos dos quais renegavam as suas origens para aderirem à nova cultura. O que se observa de mais curioso na leitura deste livro é a imagem de Javeh compassivo, diferente daqueloutra figura transmitida em outros textos antigos, mostrando um Deus irritado e vingativo. O autor sapiencial destaca a misericórdia de Javeh e o cuidado especial que ele dedica aos que se desviam do bom caminho, numa alusão antecipada da conduta que Cristo iria praticar com aqueles mais desprezados da comunidade judaica. E o hagiógrafo justifica essa atitude misericordiosa de Javeh da seguinte maneira: “Sim, amas tudo o que existe, e não desprezas nada do que fizeste; porque, se odiasses alguma coisa não a terias criado.” (11, 24) Jesus Cristo, tempos depois, faz uma outra afirmativa nesse mesmo sentido, quando explica: “Os sãos não necessitam de médico, mas os enfermos, sim. “(Mt 9, 12) As pessoas que, por algum motivo, vieram a desviar-se dos seus compromissos cristãos não devem ser alijados e evitados, mas atraídos de novo para o núcleo do rebanho.

Na segunda leitura, retirada da carta 2 de Paulo aos Tessalonicenses (1,11 – 2,2), o apóstolo exorta delicadamente os cristãos daquela cidade sobre certas inverdades que ali foram divulgadas, numa espécie de carta a ele atribuída, contendo informações duvidosas acerca da vinda de Cristo, fato que perturbou alguns fiéis e os levou até a abandonarem os trabalhos só esperando a vinda de Cristo. Assim, ociosos, dedicavam à maledicência e à preguiça. O Apóstolo chama a atenção deles para que prossigam regularmente com as suas atividades, porque a vinda de Cristo deve ser aguardada como um fato da vida ordinária, não se justificando o afastamento das atividades próprias de cada um, pois isso tramaria contra os ensinamentos do próprio Cristo. Naquela comunidade, havia um grande contingente de judeus adversários do cristianismo, que espalhavam notícias falsas e conseguiam convencer os cristãos de fé vacilante. Porém, Paulo sabia que não podia adotar críticas drásticas, pois isso contribuiria para uma maior divisão interna dos fiéis. Por isso, ele usa palavras bem cordiais para advertir os mais incautos e desse modo reconquistar-lhes a confiança. Diz ele, no cap. 3, 14-15 (não incluído na leitura de hoje): “Se alguém desobedecer ao que dizemos nesta carta, marquem-no e não se associem com ele, para que se sinta envergonhado; contudo, não o considerem como inimigo, mas chamem a atenção dele como irmão.” O nosso povo sertanejo tem um ditado popular, que bem se encaixa nesse contexto: “quem quer pegar a galinha, não diz xô”. A advertência ao irmão que errou não pode chegar ao ponto de distanciá-lo ainda mais do verdadeiro caminho.

Na leitura do evangelho de Lucas (19, 1-10), essa atitude de perdão compassivo da parte de Jesus está exemplarmente mostrada no episódio envolvendo Zaqueu, o cobrador de impostos de Jericó. Os publicanos, como eram chamados esses profissionais, eram odiados pela população das cidades judaicas dominadas pelos romanos, porque os consideravam traidores do povo, visto que estavam a beneficiar o inimigo com suas cobranças, além de eventualmente praticarem a extorsão e até de se apropriarem do que recolhiam. A figura do cobrador de impostos é escarnecida em todas as épocas históricas, como exemplo de arrogância, ganância, insensibilidade, desfaçatez, arbitrariedade, todos os tipos de maldades. Zaqueu não foi o único desses profissionais aos quais Jesus deu uma atenção especial. Mateus também era publicano e Jesus o interpelou de forma inapelável: segue-me! E ele se tornou um dos doze discípulos. No caso de Zaqueu, a iniciativa foi deste ao querer conhecer Jesus.

Há uma curiosidade etimológica a ser destacada aqui, em relação ao nome de Zaqueu, que se escreve em hebraico “zakkay” e significa puro, justo. Contraditoriamente à sua profissão, o seu nome indicava as virtudes que ele devia possuir, embora estas ficassem obscurecidas pela sua atividade rotineira. Mas Jesus sabia o que se passava na sua alma, quando ele subiu na figueira, para poder vê-Lo, já que era de baixa estatura e havia grande multidão ao redor de Jesus, naquela sua passagem por Jericó. Zaqueu não podia perder aquela oportunidade, pois não sabia quando isso iria acontecer novamente, porém jamais esperava vê-Lo assim tão de perto, tencionava olhar de cima da figueira e passar despercebido de Jesus e da multidão. Qual não foi o seu espanto, quando Jesus o chamou pelo nome e ordenou que descesse. Como Jesus sabia o nome dele, pois nunca o tinha visto? E a sua surpresa maior ainda estava por vir, quando Ele falou: hoje vou hospedar-me na tua casa. Zaqueu tinha consciência fama associada à profissão que exercia e não se sentia digno de aproximar-se de Jesus, quanto mais de recebê-lo na própria casa. O autoconvite de Jesus para visitar a casa de Zaqueu desmontou totalmente as suas estruturas psicológicas: eu não sou digno disso, vou ter que fazer algo para merecer, algo em retribuição a tamanha distinção. E então declarou: vou distribuir metade dos meus bens para os pobres e retribuir em quádruplo para quem eu tenha fraudado. E Jesus arrematou: hoje entrou a salvação nesta casa, porque também este homem é filho de Abraão.

Meus amigos, a imagem de Zaqueu simboliza o arrependimento do pecador diante da misericórdia de Deus. Se Jesus tivesse aplicado a ele uma repreensão, como provavelmente os fariseus esperavam, quando Jesus mandou que ele descesse, a reação de Zaqueu teria sido de distanciamento e de raiva. No mundo religioso hipócrita dos fariseus, não havia espaço para um pecador público. Eles deviam pensar que, naquela cidade, havia tantas pessoas boas, honradas e dignas, que poderiam muito bem hospedar Jesus e se sentiriam sumamente prestigiadas com isso. Porque Jesus vai escolher a casa de um publicano para visitar e hospedar-se? Pois é, dentro da lógica humana (e do próprio Zaqueu, que não imaginava que isso fosse acontecer), ele estaria excluído dos “bem-aventurados” referidos no sermão da montanha, mas dentro da lógica de Cristo, a ele foi ofertada a salvação e ele muito que aceitou.

O Papa Francisco, no sermão para os fiéis que estavam na Praça de São Pedro, fez o seguinte comentário, a propósito desse evangelho: Não existe profissão ou condição social, não há pecado ou crime de qualquer gênero que possa cancelar da memória e do coração de Deus um filho sequer. “Deus recorda, sempre, não esquece nenhum daqueles que criou; Ele é Pai, sempre à espera vigilante e amorosa de ver renascer no coração do filho o desejo de retornar à casa. E quando reconhece este desejo, mesmo que simplesmente manifestado, e tantas vezes quase inconsciente, imediatamente põe-se a seu lado, e com o seu perdão lhe torna mais leve o caminho da conversão e do retorno.O convite que Jesus fez a Zaqueu, ignorando que ele era um pecador público e, como filho de Abraão, era também digno da salvação, enche de esperança a todos nós, que ainda estamos na “grande tribulação” e, portanto, sujeitos às maiores adversidades no cumprimento fiel à nossa vocação cristã. A atitude de Cristo é a certeza de que, em qualquer circunstância, ele não levará em consideração as nossas fraquezas, mas a intensidade da nossa fé.

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