COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO
COMUM – UVAS SELVAGENS – 08.10.2017
Caros Leitores,
Neste 27º domingo comum, o tema da
liturgia nos traz, mais uma vez, a imagem da vinha para representar o
povo de Deus, naquela época representado pela casa de Israel.
Curiosamente, no seu sermão contra os fariseus, Jesus repete quase
integralmente a mesma metáfora do profeta Isaías composta 700 anos
antes. Percebe-se uma nítida preferência de Jesus pelos
ensinamentos deste Profeta, que ele reproduz diversas vezes nos seus
discursos. Só que os doutores da lei, bitolados nas suas convicções
e conjeturas, nada entenderam. Por pouco, Jesus dava os “nomes dos
bois”. Mas essa atitude dos fariseus não é algo do passado, pois
isso também acontece conosco, quando nós estamos tão embevecidos
com a nossa soberba e autossuficiência, que não conseguimos ver a
mensagem de Deus através dos acontecimentos.
Na primeira leitura, o profeta Isaías
(cap 5) fala de Jerusalém usando a figura da vinha, construída pelo
seu proprietário, e arrendada a vinhateiros, que dela não cuidaram
devidamente. Resultado: em vez de produzir bons frutos, produziu uvas
selvagens. Para a nossa realidade, a figura do vinhedo não é tão
significativa, como é, por exemplo, para os gaúchos, donos dos mais
famosos vinhedos do nosso país. Por não ser uma realidade típica
do ambiente nordestino, a leitura do evangelho não proporciona uma
exata visão da metáfora usada por Jesus. Talvez se ele tivesse
comparado com um roçado de milho e feijão, fosse uma figura mental
mais apropriada para a nossa compreensão cultural. De todo modo, era
um assunto bastante comum para o povo de Israel, assim como o
arrendamento dessas plantações para agricultores, o que se tornava
um assunto bem familiar para eles. E nem era preciso grande esforço
para alcançar o sentido figurado da imagem, porque o Profeta
explicou bem claramente: “a
vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel, e o povo de Judá,
sua dileta plantação; eu esperava deles frutos de justiça —
e
eis injustiça; esperava obras de bondade —
e
eis iniquidade.”
(Is 5, 7) A época histórica do profeta Isaías foi um período de
grandes convulsões sociais e políticas, em que a nação hebraica
vivia em permanente ameaça de invasão por estrangeiros,
principalmente egípcios e assírios. O Profeta alertava para o
perigo da idolatria e consequente afastamento de Javeh, que ameaçava:
“vou
mostrar-vos o que farei com minha vinha: vou desmanchar a cerca, e
ela será devastada; vou derrubar o muro, e ela será pisoteada”
(Is 5, 5). Por fim, depois de tanto falar e não ser ouvido pelas
autoridades, consta que o profeta Isaías foi serrado ao meio, por
ordem do rei, sendo assim a sua morte. O que ocorreu logo depois foi
a derrota dos assírios para os babilônios e, por causa da aliança
que o rei de Israel havia feito com os assírios, os babilônios
invadiram Jerusalém e levaram o povo cativo. Aconteceu exatamente
como o Profeta anunciara.
Temos neste domingo um salmo
responsorial totalmente contextualizado com a primeira leitura, como
se fosse uma continuação desta. Consta ser esse um salmo de Assaf,
um personagem que viveu na época
pós-exílica,
quando ocorria a reconstrução de Jerusalém. O salmista personifica
a alma do hebreu arrependido, que compreendeu o castigo merecido do
exílio e agora pedia perdão a Javeh, prometendo não mais
afastar-se dele. “E
nunca mais vos deixaremos, Senhor Deus!/ Dai-nos vida, e louvaremos
vosso nome!/ Convertei-nos, ó Senhor Deus do universo,/ e sobre nós
iluminai a vossa face!/ Se voltardes para nós, seremos salvos!”,
diz ele, após ter feito uma súplica de arrependimento: “Voltai-vos
para nós, Deus do universo!/ Olhai dos altos céus e observai./
Visitai a vossa vinha e protegei-a!”
O texto do salmo reflete o ânimo predominante no povo hebreu,
naquele momento de retorno à terra prometida, liberto do cativeiro.
Consta, no livro das Crônicas (1Cro 16, 7) que Assaf foi encarregado
por Davi para ser o chefe dos cantores que vinham à frente da Arca
da Aliança, quando essa relíquia foi trazida de volta para
Jerusalém, após a libertação do povo e que os filhos dele foram
os cantores que levaram a Arca para o templo, já no tempo de
Salomão, após a restauração. Desse modo, a salmodia funciona, ao
mesmo tempo, como eco e como complementação da leitura do profeta
Isaías.
Temos na leitura do evangelho de hoje
(Mt 21, 33-43), outra parábola contada por Cristo, na tentativa de
ser entendido pelos fariseus e seus doutores da lei. Os dois domingos
anteriores trouxeram também parábolas similares, todavia, nessa
parábola da vinha, Jesus foi ainda mais claro e os fariseus
entenderam a história contada, só não compreenderam que aquilo
tinha a ver com eles. Eles já conheciam o discurso sobre a vinha,
feito pelo profeta Isaías, porque na condição de doutores da lei e
sacerdotes, a Torah era o seu livro de leitura diária na sinagoga,
não havia como não relacionar de imediato a parábola contada por
Jesus com a advertência do Profeta, em época histórica diversa.
Percebe-se, pela leitura, que os fariseus ficaram indignados com a
reação daqueles “vinhateiros rebeldes”, pois sugeriram que eles
deviam ser castigados com morte violenta e a vinha devia ser entregue
a outros operários. Porém, a sua mente preconceituosa contra Jesus
não permitia que eles enxergassem, na pessoa deste, a figura do
“filho do dono da vinha”. E assim, a história contada por Jesus
entrou nos ouvidos deles como “história de trancoso”, como se
Jesus estivesse apenas testando o senso de justiça deles.
O evangelista Mateus, no versículo 39,
coloca na boca de Jesus a previsão do que iria acontecer com Ele,
algum tempo depois, por ação dos fariseus instigando o povo: “Então
agarraram o filho, jogaram-no para fora da vinha e o mataram.”
Outra vez, a figura da vinha representava a cidade de Jerusalém,
para fora da qual Jesus foi levado a fim de ser crucificado. E ainda
segundo o evangelista Mateus, Jesus teria encerrado dizendo que: o
reino de Deus será tirado de vocês e será
entregue a outro povo, que produzirá bons frutos”. (vers
43) Na minha opinião pessoal, diria que essa parte final não deve
ter feito parte da parábola original contada por Jesus aos fariseus,
porque assim Ele estaria sendo direto demais e até grosseiro, esse
não era o estilo de Jesus. Parece-me mais um “comentário” feito
pelo evangelista por ocasião da produção do seu texto, pois aquele
evangelho se destinava aos convertidos de Antioquia, um grupo
composto por judeus da diáspora e por pagãos de outras
nacionalidades, todos afastados do judaísmo tradicional. Por isso,
Mateus faz questão de salientar que o reino de Deus, que outrora
havia sido prometido aos judeus (leia-se fariseus), agora havia sido
retirado deles e passado para os outros povos. Como se sabe, as
palavras de Jesus não foram escritas na hora em que ele falava, mas
foram guardadas na mente e na fé dos seus seguidores, que se
encarregaram de divulgá-la, após a sua morte e ressurreição. Por
isso, não se pode entender o texto do evangelho como se fossem
palavras literalmente pronunciadas por Jesus, mas sim como
testemunhos das verdades por Ele ensinadas.
Meus amigos, aproveito o espaço para
fazer uma referência à memória litúrgica do Seráfico Patriarca
São Francisco, celebrada na semana que passou. Esta
é, de longe, a grande festa religiosa do nordeste, fazendo ecoar em
diversas localidades o hino “cheio de amor, as chagas trazes do
Salvador.” É curioso como algumas pessoas têm uma vida breve,
porém muito fecunda. São Francisco viveu apenas 44
anos e foi canonizado logo dois anos após sua morte. Quantas
realizações fez ele em tão curto espaço de tempo vivido, quanta
densidade na sua biografia e nos seus exemplos e ensinamentos. A
imagem do santo pobre e humilde se encaixou muito bem no tipo
cultural do povo nordestino, de modo que a empatia foi instantânea e
profunda. Está fazendo cerca de um século que os primeiros frades
chegaram nas terras nordestinas (ao Maranhão, final do século XIX e
ao Ceará, início do século XX), trazendo a bandeira de São
Francisco e a sua presença cativante e amiga. Nós somos testemunhas
vivas e herdeiros dessa formação franciscanista, que cada um
incorporou ao seu modo. Os diversos santuários e as diversas obras
sociais espalhadas por diferentes cidades atestam a presença
vibrante do franciscanismo no meio da sociedade nordestina. É certo
que não foi apenas no nordeste que se desenvolveu a devoção a São
Francisco, mas é também certo que é no nordeste onde essa devoção
tem seus adeptos mais fervorosos e suas marcas mais visíveis. Basta
lembrar a gigantesca estátua de São Francisco, em Canindé, que
deve ser a maior do mundo erguida para este Santo. Isso mostra, numa
dimensão material, o tamanho da credibilidade que São Francisco tem
entre o nosso povo.
E pensar que ele, na sua sincera
humildade, não pretendia jamais tal popularidade nem tanta fama. No
entanto, nele se cumpriu aquilo que Maria falou quando recebeu a
saudação do anjo: pôs os olhos na humildade de sua serva e por
isso todas as gerações me chamarão bem-aventurada. A vida de São
Francisco e a obra dos seus seguidores vem comprovar, sem nenhuma
dúvida, que Deus exalta os humildes. O nosso Papa Francisco é uma
pessoa que, no nosso tempo, incorpora a alegria e a humildade
franciscanas, fato que vem conquistando a simpatia de pessoas das
mais diversas origens e crenças ao redor do mundo. É a prova de que
o carisma franciscano continua atual e ativo, numa época em que o
mundo tanto necessita de pessoas com esse perfil. São Francisco,
rogai por nós.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário