COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO
COMUM – O CIDADÃO E O CRISTÃO - 22.10.2017
Caros Leitores,
Neste 29º domingo comum, as leituras
litúrgicas põem em destaque a nossa vida cotidiana e chamam a nossa
atenção para a nossa conduta de cristãos, que deve ser exemplar
tanto quanto como cidadãos. Uma atitude não deve colidir com a
outra. Enquanto cristãos, temos o mandamento de Cristo para seguir;
enquanto cidadãos, temos as normas governamentais para obedecer. Por
mais que os valores éticos e a credibilidade dos nossos
representantes políticos estejam abalados, a nossa responsabilidade
de cristãos e de cidadãos nos recomenda que devemos ter sempre em
vista o país na sua integridade, independentemente de simpatias,
antipatias, preferências ou rejeições. O respeito aos dirigentes
do país, mesmo quando demonstrada sua indignidade, é um dever que
se impõe a nós, cristãos, como corolário da nossa fé.
A primeira leitura, do livro do profeta
Isaías (45, 1-6), refere-se ao imperador persa Ciro II, como o
governante ungido por Javeh sem que ele próprio soubesse disso,
porque Javeh o havia escolhido para ser o libertador do povo de
Israel. Com efeito, Ciro
derrotou os exércitos de Nabucodonosor, dominou
a Babilônia
e deu a liberdade aos hebreus. A habilidade militar de Ciro II fez
dele o monarca do maior reino que se viu naquele tempo, além de ter
sido um rei tolerante com os inimigos vencidos, dado o seu bom
coração. Tudo isso fez com que os hebreus vislumbrassem
na pessoa dele um enviado de Javeh e, ao retornarem para a Palestina,
tornaram-se
seus
aliados
políticos, fazendo com que o reinado dele ganhasse ainda maior
território. Conforme já tive ocasião de comentar alhures, o livro
do profeta Isaías, a partir do cap 45, é chamado pelos biblistas
como “deutero
Isaías”, ou “2º
Isaías”, pois os fatos que aborda são historicamente posteriores
à morte de Isaías. No caso, Isaías morreu no ano 681 a.C.,
enquanto o reinado de Ciro II teve início em 559 a.C. e a libertação
dos hebreus cativos se deu em 539 a.C., ou seja, mais de um século
após a morte de Isaías. O deutero Isaías foi escrito pelos
discípulos do profeta, dando continuidade ao seu vaticínio. Em
várias passagens anteriores, Isaías havia prenunciado a libertação
do povo, quando chegasse o momento escolhido por Javeh. Então, os
seus discípulos quiseram mostrar que o Profeta havia acertado suas
previsões.
Durante
muito tempo, os estudiosos acreditaram que o texto completo houvesse
sido escrito por Isaías, mas a crítica histórica que começou a
organizar os livros da Bíblia, a partir do final do século XIX,
confrontando os relatos bíblicos com os fatos da história
universal, chegou a essa distinção entre o proto Isaías (1º
Isaías),
escrito pelo Profeta mesmo, e o deutero Isaías, escrito por seus
discípulos. Na fé do povo hebreu, o grande império que Ciro II
veio a formar, mesmo ele não sendo crente em Javeh, no entanto, isso
mostra mais
ainda
o poder de Javeh, que é insuperável por qualquer outro deus.
“Armei-te
guerreiro, sem me reconheceres, para que todos saibam, do oriente ao
ocidente, que fora de mim outro não existe. Eu sou o Senhor, não há
outro.”
Santo Agostinho, interpretando essa tradição hebraica de sempre
perceber a presença de Javeh nos eventos históricos, mostrando a
ação divina através desses acontecimentos, criou uma doutrina
conhecida como “teologia da história”, que está no seu livro A
Cidade de Deus, uma grande contribuição dele para a
cultura ocidental.
Na
leitura do evangelho (Mt 22, 15-21), lemos aquele famoso diálogo de
Jesus com os fariseus, acerca da moeda do tributo. Temos lido, nesses
domingos sucessivos, diversas altercações de Jesus com os fariseus,
narradas por Mateus sempre com a finalidade de mostrar a dureza dos
seus corações e para justificar o fato de que o evangelho fora
anunciado aos pagãos, porque aqueles para quem a mensagem se
destinava, recusaram-se a recebê-la. Por diversas vezes, os fariseus
armaram ciladas para apanharem Jesus em algum passo em falso e essa
foi uma das mais ardilosas que eles tramaram. De fato, eles colocaram
Jesus num beco sem saída, porque qualquer resposta que Ele desse
seria comprometedora. O povo hebreu amargava o fato de estar dominado
pelos romanos e uma das consequências dessa dominação era o
pagamento de pesados impostos. Pagar imposto ao imperador romano era
uma humilhação para os hebreus, além de que era uma sangria na
economia da região. Vários protestos se levantaram contra o
pagamento desses impostos, sendo que o grupo mais revoltado com essa
situação eram os zelotes, que tentavam convencer o povo a sonegar,
porém esse era um risco enorme e o castigo para os sonegadores era
cruel. Consta que Judas Iscariotes pertencia ao grupo dos zelotes e
tinha a ideia de que Cristo lideraria uma grande rebelião do povo
contra os romanos, expulsando-os do seu território. Teria sido esse
o motivo pelo qual Judas se aproximou de Jesus e também teria sido
esse o motivo pelo qual, no final das contas, entregou Jesus aos
romanos e depois suicidou-se, porque ficara desiludido quando
percebera que Jesus não planejava revolta nenhuma.
Então,
nesse contexto político de grande insatisfação, se Jesus dissesse
que não era para pagar os tributos, Ele estaria se pondo contra os
romanos e os fariseus teriam um motivo forte para acusá-lo. E se ele
dissesse que o tributo era lícito, atrairia para si a ira do povo
que o seguia, porque todos tinham aquele pagamento como iníquo e
injusto. Porém, Jesus percebeu desde logo o embuste em que queriam
lançá-lo e os desmascarou de uma forma totalmente inesperada: se
vocês usam a moeda romana, então paguem aos romanos o que eles
cobram; por outro lado, se vocês dirigem suas orações a Javeh,
então façam isso com a mesma fidelidade. E os fariseus, como se diz
no popular, tiveram que enfiar a viola no saco e sair pra cantar em
outra freguesia. Eu me referi, há pouco, ao livro de Santo Agostinho
“A Cidade de Deus”, pois bem, lá ele coloca as coisas mais ou
menos nos seguintes termos: nós somos cidadãos do mundo e também
cidadãos do céu, um fato está inteiramente incluído no outro, não
há como separar. E nem é isso necessário, porque a nossa salvação
é alcançada a partir da nossa vida na comunidade e nós não
precisamos deixar de ser cidadãos para ser cristãos. A nossa
cidadania celeste é construída junto com a nossa cidadania terrena,
uma não obstrui nem substitui a outra. Ao contrário, elas se
sustentam reciprocamente. O que Jesus quer de nós é que vivamos a
nossa cidadania civil exercitando nela os deveres e compromissos da
nossa fé. Nós não somos cristãos apenas quando vamos à igreja,
quando rezamos o terço, quando damos esmolas, quando fazemos leitura
espiritual, etc. No nosso dia a dia do trabalho, das relações
sociais, dos círculos de amizade, das atividades de lazer, em tudo o
nosso comportamento deve demonstrar a nossa opção de vida e de fé
cristã.
Vivemos
um período político conturbado
e grandemente
vulnerável e preocupante, em que a massa popular oscila entre a
dúvida e a polarização de opiniões. Muitas lideranças cristãs,
sejam clérigos ou leigos, assumem por vezes posições de extremismo
tendendo seja para o extremismo conservadorista ou para a recíproca
oposta. E a imprensa, assim como as mídias sociais em
geral,
divulgam incessantemente informações duvidosas e ardilosas,
contribuindo para tornar o ambiente social mais inseguro e confuso.
Outros partem para um absenteísmo irresponsável, do tipo “não
votar em ninguém” ou boicotar o processo eleitoral. Jesus nos
mostra, na narração de Mateus, que o cristão deve ser esperto e
estar
atento
ao momento político, enxergando-o com clareza e serenidade, buscando
alternativas válidas e factíveis, evitando os extremos e as
abstenções. Trata-se de uma atitude sem
dúvida difícil de se fazer com equilíbrio, sobretudo por causa da
falta de confiabilidade das informações
que circulam, mas o nosso compromisso de fé nos impele a buscar
incessantemente e com sã consciência descobrir as melhores
alternativas dentro das atuais circunstâncias, posto que nunca
estaremos vivendo uma situação ideal na sociedade. Devemos,
portanto, obter os melhores resultados com os recursos disponíveis.
O
domingo de hoje é celebrado como o “dia das missões”, dia de
rendermos uma homenagem especial àqueles bravos religiosos europeus,
que acompanhavam as esquadras dos navegantes, dos quais a história
registrou poucos nomes, mas bastante conhecidos: Frei Henrique de
Coimbra, franciscano português, e os jesuítas espanhóis Manoel da
Nóbrega e José de Anchieta. Graças ao seu ardor missionário, a
religião cristã chegou até nós e ajudou a moldar a nossa cultura
e a nossa sociedade. Um grande “viva” para eles.
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