COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO
COMUM – O MAIOR MANDAMENTO – 29.10.2017
Caros Leitores,
Na liturgia deste 30º domingo comum, o
tema central enfoca a questão do maior mandamento da lei divina.
Desde a antiguidade bíblica, o profeta Moisés apresentou ao povo
hebreu a lista com os mandamentos, isto é, com as determinações
divinas para serem por eles cumpridas. O primeiro da lista é
exatamente o amor de Deus, conforme consta em Êxodo cap.20 e com
mais detalhes em Deuteronômio 6,5. No Antigo Testamento, eles são
listados em número de dez. No evangelho, Jesus os resume a dois. E
Santo Agostinho, nos seus comentários bíblicos, resume a um só:
ama e faze o que quiseres.
Na primeira leitura, extraída do livro
do Êxodo (22, 20-26), vemos que nas lições iniciais de Javeh ao
povo hebreu já constava o cuidado com o próximo, o amor ao próximo,
que Jesus iria enfatizar mais tarde. No trecho lido hoje, Javeh
instrui o povo a tratar bem os estrangeiros: “Não
oprimas nem maltrates o estrangeiro, pois vós fostes estrangeiros na
terra do Egito. Não façais mal algum à viúva nem ao órfão. Se
os maltratardes, gritarão por mim, e eu ouvirei o seu clamor.” (Ex
22, 20) O estrangeiro, nesse contexto, é a figura do próximo, que
só iria aparecer no evangelho. Não era esse o costume antigo, isto
é, tratar bem os estrangeiros. Esses eram potenciais inimigos, não
faziam parte do povo, por isso deviam ser tratados com reserva e de
forma diferente dos irmãos de sangue. Na Roma antiga, era assim
também o costume em relação aos não romanos. Os estrangeiros eram
excluídos da sociedade, não possuíam direitos, eram explorados em
seus serviços e não podiam reclamar dos maus tratos, porque não
tinham o sangue romano. E Javeh lembra ao povo: vós também fostes
estrangeiros na terra do Egito e sofrestes humilhações, por isso,
deveis ter um comportamento diferente dos povos pagãos. E diz mais:
o estrangeiro maltratado recorrerá a Mim e “minha
cólera, então, se inflamará e eu vos matarei à espada; vossas
mulheres ficarão viúvas e órfãos os vossos filhos”.
(Ex 22, 23) Ou seja, neste caso, Javeh se voltará contra o seu
próprio povo, para vingar os maus tratos feitos aos estrangeiros.
É interessante a liturgia chamar a
atenção para esse comportamento que não era comum na época e que
Javeh determinava para o seu povo. Digo determinava, porque isso era
um mandamento, não era um conselho, uma recomendação. E pairava
uma gravíssima ameaça contra quem não cumprisse. Curiosamente,
essa regra do “amor ao próximo” não foi bem assimilada pelos
fariseus doutores da lei, sendo necessário que Jesus viesse a
chamar-lhes a atenção para isso. Basta lembrar aquela famosa
parábola do “bom samaritano”, que foi contada por Jesus quando
um dos fariseus perguntou a Ele: quem é o meu próximo. Outra regra
interessante colocada nesse contexto é a não cobrança de juros dos
empréstimos aos estrangeiros. A usura era também regulada na
prática dos romanos de modo similar. Se o contrato de empréstimo
era entre romanos, era proibida a cobrança de juros; mas se fosse
entre um romano e um não romano, então aí podia. Os judeus também
não cobram juros entre eles próprios, no entanto, podia cobrar dos
estrangeiros. E daí que todos nós conhecemos a história do
enriquecimento dos judeus europeus no período anterior às guerras
mundiais, pela sua habilidade em negociar com os não judeus cobrando
juros, a ponto de despertar a ganância do governo “quebrado” da
Alemanha, após a depressão econômica de 1930, levando-os ao
holocausto. Por incrível que pareça, isso está na Torah deles,
porém sempre foram palavras mortas na hora de colocar em prática.
Até parece que sofreram a vingança do próprio Javeh, quando
prometeu que os mataria à espada, caso praticassem a usura.
Na segunda leitura, da carta de Paulo
aos Tessalonicenses (1Ts 1, 5-10), o Apóstolo os exalta porque, pelo
seu comportamento, eles se tornaram modelo para as demais comunidades
da Macedônia e da Acaia. Diz Paulo: nem é mais preciso que eu diga
nada, porque “as
pessoas mesmas contam como vós nos acolhestes e como vos
convertestes, abandonando os falsos deuses, para servir ao Deus vivo
e verdadeiro ”
(1Ts 1, 9). A cidade de Tessalônica era a capital da Macedônia, um
importante porto comercial e um local estrategicamente colocado no
meio das grandes estradas romanas, de modo que para lá acorriam
muitas pessoas de diversificadas culturas, então Paulo tinha a
preocupação para que a semente do cristianismo ali lançada por ele
não fosse suplantada por essa variedade de povos e costumes. Daí o
seu motivo de felicidade quando soube, através de Timóteo e
Silvano, que os cristãos de lá continuavam firmes na fé e até
influenciavam os estrangeiros, servindo-lhes de exemplo. Uma outra
característica dessa carta é a crença que Paulo tinha, no sentido
de que o “retorno” de Cristo estava próximo, assim era o
entendimento de então, Jesus havia ressuscitado mas logo logo
retornaria. O próprio Paulo parecia acreditar que ele ainda estaria
vivo, quando Jesus retornasse. Por isso, lê-se no versículo 10:
“Jesus, que nos livra do castigo, está por vir”. Consta que essa
carta foi escrita por volta do ano 50 d.C., ou seja, nessa época a
doutrina cristã ainda era muito incipiente e muitas questões ainda
não estavam amadurecidas na reflexão teológica. Essa afirmação
sobre a vinda de Cristo era uma delas.
Na leitura do evangelho, retirada de
Mateus (Mt 22, 24-30), lemos outra disputa doutrinária entre Jesus e
os fariseus, que mais uma vez tentavam apanhá-lo em alguma
contradição e por isso testavam Seu conhecimento das escrituras.
Daí que diz o evangelista: para testá-lo, perguntaram: “Mestre,
qual é o maior mandamento da lei?” E Jesus, demonstrando que
conhecia a lei de Moisés melhor do que eles próprios, dá a
resposta que eles já sabiam: “Amarás
o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de
todo o teu entendimento!”
(Mt 22, 37). Essa frase está contida textualmente em Deuteronômio
6, 5 e eles queriam ver se Jesus dizia algo diferente, mas com essa
resposta, Jesus não os surpreendeu. A surpresa veio quando Ele
continuou e disse também o segundo mandamento, algo que eles nem
tinham perguntado: “Não procurem vingança nem guardem rancor
contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si
mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levitico 19, 18). Isso, sim, foi novidade
para eles, sobretudo quando Jesus completou a resposta dizendo: “Toda
a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.(Mt
22, 40). Talvez, eles esperassem que Jesus fosse citar os mandamentos
na sua forma tradicional, como eles (fariseus) costumavam fazer. E
Jesus outra vez os surpreende. O amor ao próximo já estava
determinado na Torah e eles, fariseus, não haviam se tocado para
isso. A religião era, para eles, uma relação puramente vertical
com Javeh, cada um por si, individual e privadamente. E a surpresa
foi ainda maior quando Jesus falou que o segundo mandamento era
semelhante ao primeiro. Não basta amar a Deus sobre todas as coisas,
se não somos capazes de amar o próximo como a nós mesmos.
Observemos que Jesus repete a lei
antiga, demonstrando que ela continuava em vigor, que Ele não veio
mudar a lei, e sim aperfeiçoá-la. E o aperfeiçoamento consiste
exatamente nessa nova visão da religião voltada para a comunidade,
para o próximo. Assim como se deve amar a Deus com todo o coração,
toda a alma e todo o entendimento, assim também se deve amar o
próximo. O Padre João Mohana, conhecido escritor maranhense que fez
sucesso literário nos anos 70, dizia uma frase, que eu acho muito
criativa e nunca esqueci: Deus mandou que nos amássemos, não que
nos amassemos. Um trocadilho bem interessante, que nos mostra o quão
difícil é amar o próximo, tão difícil que os fariseus haviam
“esquecido” esse trecho da lei, como se não fosse necessário. E
é imperativo observarmos também as três dimensões do amor a Deus
e ao próximo: com todo o coração, ou seja, o amor emotivo,
espontâneo, intuitivo; com toda a alma, ou seja, o amor
sobrenatural, divino transcendente; com todo o entendimento, ou seja,
o amor racional, esclarecido, voluntário e intencional. Os povos
antigos, que não tinham muito conhecimento sobre a anatomia humana,
pensavam que o ser humano tinha três “almas”, sendo que uma
delas se localizava no coração (fonte da emoção), outra se
localizava nos rins (fonte da agressividade) e outra na inteligência
(fonte da racionalidade). Assim era a doutrina de Platão, que
naturalmente não foi inventada por ele, mas sistematizada nos seus
escritos, algo que era comum nas culturas antigas. Com isso, devemos
entender que o nosso amor a Deus e ao próximo não admite reservas
nem limitações, mas deve envolver o nosso ser inteiro, com todas as
nossas forças e potencialidades.
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